quinta-feira, 31 de outubro de 2013

FESTA DE TODOS OS SANTOS E SANTAS



SANTIDADE: capacidade ilimitada de paixão.

“Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus” (Mt 5,12)

No dia em que a Igreja faz memória de todos os Santose Santas, a liturgia escolhe sabiamente o evange-lho das Bem-aventuranças. A sabedoria deste texto, surpreendente e genial, está no fato de apresentar um projeto de realização total, de felicidade sem limites. O Evangelho que nos foi confiado é um pro-grama para alcançar a felicidade, a vida ditosa, prazerosa, bem-aventurada.
Na boca de Jesus brilha sempre a palavra chave: “Felizes”.
As nove bem-aventuranças apresentam nove promessas de felicidade plena, nove situações que conduzem a essa felicidade, já a partir desta vida. São nove promessas de esperança. O que está em nossas mãos são as situações de fato, as nove condições para viver o Reino de Deus.
Trata-se, com efeito, de uma felicidade que transcende este mundo. E que, por isso, é para sempre e sem limitação alguma. É essa a condição daqueles que a Igreja considera e venera como santos(as).

Também é preciso levar em conta que as bem-aventuranças falam da felicidade, não no singular, mas no plural. Ou seja, Jesus não fala da felicidade do indivíduo, mas da felicidade relativa à comunidade.
A felicidade não é uma questão meramente individual, mas essencialmente social; a felicidade não se consegue isoladamente, mas comunitariamente.
Em outras palavras, o que Jesus afirma é que a felicidade de cada um está em intima relação com a felicidade dos outros, com quem cada um convive.

Mas, o que mais nos surpreende é que, re-lendo e saboreando as nove bem-aventuranças, nos encontra-mos com o inesperado: nenhuma delas indica práticas relacionadas com a religião. Elas indicam condutas relacionadas com a vida, com esta vida, com as condições e atitudes a partir das quais se pode fazer algo eficaz para que esta vida seja mais humana, mais leve, mais feliz.
Aqui está a surpreendente novidade do projeto oferecido por Jesus. Ele não promulgou mandamentos, nem um código de moral, muito menos uma lista de proibições; simplesmente anunciou bem-aventuran-ças. Ou seja, passamos de uma ética de “deveres e obrigações” para uma ética de “felicidade e ventura”.
Joaquim Jeremias disse que o Sermão da Montanha não é Lei, mas Evangelho, de tal forma que a diferença entre um e outro é esta:“A Lei põe o ser humano diante de suas próprias forças e pede-lhe que as use até o máximo; o Evangelho situa o ser humano diante do dom de Deus e pede-lhe que converta verdadeiramente esse dom inefável em fundamento de sua vida. Dois mundos”.

Jesus compreendeu que o meio mais eficaz e mais direto para nos aproximar de Deus, e para que cada um se realize como ser humano que é, não é estabelecer proibições, mas fazer propostas que mais e melhor se harmonizem com nossa condição humana, com aquilo que mais desejamos.
A experiência histórica nos ensina que os mandatos e as proibições tem cada vez menos força para modificar a vida das pessoas.  Todo mandamento e toda proibição tem certos limites, aos quais alguém se ajusta e assunto encerrado. Enquanto que a proposta da felicidade contém em si uma busca sem limites.
E é aí que se constata até onde chega a generosidade de uma pessoa, a fé e a entrega de alguém a uma causa que se leva a sério.
As bem-aventuranças vão muito mais além de tudo o que os mandamentos significam; elas não se fixam em alguns limites que não podem ser transgredidos, mas marcam algumas metas que nunca chegaremos a alcançar em plenitude. Não são a negação que estabelece o que não se pode fazer, mas a afirmação que nos dá vida e nos deixa profundamente felizes.
Por não serem leis, nem mandamentos, as bem-aventurançasnão despertam sentimentos de culpa.

Aqueles que se deixam conduzir pela dinâmicadas bem-aventuranças nesta vida, tem garantida a pro-messa de felicidade sem fim, à qual denominamos vida eterna. É, em definitiva, a Vida de todos os san-tos(as).Sersanto(a) é fazer das Bem-aventuranças a pauta de seu viver.
Por isso, ser santo(a) é ser humano por excelência, é ter a audácia de reinventar o humano; é resgatar a paixão por um ideal de vida e por um sonho; paixão pela vitória da esperança; paixão pela humanidade,paixão pelo mundo, paixão pelo Reino...enfim, paixão por Deus.

A festa de hoje realça uma forma de santidade, muitas vezes esquecida:a santidade da vida comum,da resposta à Providência divina em meio às rotinas do tempo, uma caridade tecida nos pequenos gestos...
Diante de uma realidade que ameaça o ser humano pelo anonimato, pelo artificialismo, pela massificação, o(a) santo(a)injeta no interior das “veias” deste mundo a Graçatransfiguradora do Amor.
O chamado universal à santidade nos faz confiar profundamente na vida cotidiana, ou seja, no dia-a-dia da vida familiar, no exercício da profissão, nas relações da vida social, nas decisões éticas, na ação cidadã, no campo dos direitos humanos, no campo da economia, na presença ativa da política, no mundo da cultura, no diálogo com os meios de comunicação, na navegação pela internet... como“lugares agraciados” de encontro com Deus e manifestações explícitas de compromisso cristão.

Não tem porque a santidade ser aquela que está acompanhada de virtudes heroicas, mas aquela que se expressa numa vida cotidianamente heroica; os santos vivem intensamente e colocam em prática o chamado de Deus para viver e dar vida a outros. Quer-se dizer, com isso, que santa é a vida e santo é defendê-la; fascinante é ver enormes esforços para propiciá-la.
O santo(a) sente-se cativado, envolvido, amado, entusiasmado, sintonizado, habitado por Deus de tal maneira que seus olhos, gestos, suas atitudes, palavras, seu coração, sua existência transbordam Deus.
Para humanizar nosso tempo, os(as)santos(as) revelam atitudes e critérios que nos fazem mergulhar de cheio nos desafios e problemas que afligem grande parte da humanidade. Os santos, de hoje e de sempre, não são encontrados nos pacíficos ambientes dos templos ou dentro dos limites da instituição eclesial, mas nas encruzilhadas da pobreza e da injustiça, nas “periferias existenciais”, em perigosa proximidade com o mundo da violência e da marginalidade, em situações de risco, onde a luz do amorbrilhará mais do que nunca.
Num mundo em que nem todos são capazes de grandes façanhas ou de alcançar sucessos, Deus nos deu a aptidão de encontrar a grandeza no dia-a-dia. Temos apenas que ser santos o bastante para que possa-mos reconhecer o milagre no ritmo da vida.
“Os santos são muito corriqueiros, eles são absolutamente encardidos nas suas vidas.
O que às vezes chama a atenção são dons especiais, de milagres, de levitação,
mas fora disso a santidade é um passeio no cotidiano” (Adélia Prado).

A santidade, portanto, como paixão expansiva, implica uma pitada de santa loucura capaz de romper com o que é considerado “normal” ou aceito pela sociedade excludente e desumanizadora na qual vive-mos. O santo(a) é, na essência, uma presença transgressora, subversiva e inesperada... que denuncia e interpela as barreiras e fronteiras impostas pela sociedade.
Somos santos(as). Não somos santos porque sejamos irrepreensíveis, senão simplesmente porque so-mos, e vivemos, nos movemos e somos sempre em Deus e Deus em nós, também quando nos sentimos mediocres e inclusive fracassados.

Esta é a vocação fundamental à qual somos todos chamados, enquanto seguidores de Jesus Cristo. Ser santo(a)  é ser dócil para “deixar-nos conduzir” pelos impulsos de Deus, por onde muitas vezes não sabemos e não entendemos. Seus caminhos não são os nossos caminhos.

Texto bíblico:Mt 5,1-12

Na oração: Rezar as dimensões da vida que estão paralisadas, impedindo-lhe viver a dinâmica das bem-aven-
turanças.Viver a santidade no cotidianoé “arriscar-se” em Deus; é navegar no oceano da gratui-
dade, da compaixão, da solidariedade, da justiça...

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Evangelho Lc 18,1-8.


SALVAI-NOS DA RIGIDEZ!

 

“Numa cidade havia um juiz que não temia a Deus...” (Lc 18,2)

 

Na tradição bíblica, as viúvas são, juntamente com os órfãos e os estrangeiros, o símbolo das pessoas mais indefesas, as mais pobres entre os pobres. A viúva, de modo especial, é o símbolo por excelência da pessoa que vive só e desamparada; ela não tem marido nem filhos que a defendam e não conta com nenhum apo-io social. É nesta situação de total abandono que sua vida se converte em um grito: “Faze-me justiça!”.

A conduta e o ensinamento de Jesus foram radicalmente “contraculturais” com relação à mulher. Ele foi um autêntico reformador e inclusive revolucionário. Com sua presença e sua linguagem Jesus visibiliza o mundo vital das mulheres; ao tirá-las do seu anonimato e trazendo-as à luz, Jesus realça e louva os traços característicos da mulher. Na parábola, a viúva é apresentada como modelo de atitude diante de Deus pela sua persistência, pela sua coragem frente a um juiz surdo à voz de Deus e indiferente ao sofrimento dos oprimidos. Ela não desiste, continua lutando por si mesma e por seu direito à vida, indo ao juiz dia após dia.

 

Lucas apresenta a parábola como uma exortação a orar sem nunca desistir. O Mestre conta a parábola de forma tão envolvente que as pessoas, sobretudo aquelas que perderam toda esperança por ajuda e cura, são novamente encorajadas. Ao despertar nos ouvintes a alegria sobre o poderoso juiz, cuja resistência é vencida pela viúva, convida as pessoas a lidarem de forma diferente com uma situação aparentemente desesperadora. Deus não é surdo aos seus gritos.

Nesse sentido a oração do seguidor de Jesus é “eficaz” porque nos faz viver com fé e confiança no Pai e em atitude solidária com os irmãos. A oração é “eficaz” porque aumenta nossa fé e nos faz mais humanos; abre os ouvidos do coração para escutar a Deus com mais sinceridade, vai purificando nossos critérios e nossa conduta daquilo que nos impede ser irmãos. Ela sustenta nosso viver cotidiano, reanima nossa esperança, fortalece nossa fragilidade, alivia nosso cansaço.

Aquele que aprende a dialogar com Deus e a invocá-Lo “sem nunca desistir”, vai descobrindo onde está a verdadeira eficácia da oração e para quê “serve” rezar. Simplesmente para viver.

 

Podemos interpretar também a parábola do juiz e da viúvacomo uma imagem do nosso interior: lugar da nossa intuição que nos diz que possuímos um brilho divino, que somos seres originais, filhos e filhos de Deus. Nosso interior representa os sonhos que carregamos durante nossa vida, que nos diz que nossa vida é preciosa e que nele se expressa algum aspecto de Deus.

Mas, nosso interior carrega também um tribunal com um juiz frio e insensível, que, numa postura arro-gante, nos julga de forma excessivamente dura, e, às vezes nos condena e rejeita constantemente; ele emite juízos taxativos, cortantes, condenatórios, alimentando em nós sentimentos de culpa e impotência.

Ele tem o catálogo de leis nas mãos e é implacável mesmo diante dos mínimos deslizes, distribuindo prêmios (poucos) e castigos (abundância).

Em cada um de nós o instinto de julgar está enraizado profundamente; podemos até dizer que todos nascemos portadores de uma cátedra de juiz. Muitos cultivam ardorosamente esta vocação de juiz e encontram abundantes ocasiões para praticar juízos, sobre si mesmos e sobre os outros, submetendo-se a um horário esgotador. Daí a proliferação de “tribunais ambulantes e permanentes”.

No Evangelho, nos encontramos com algumas expressões categóricas que nos convidam a abandonar este ofício bastante perigoso. Muitos, com seu amadurecimento, ficam persuadidos de que existem coisas mais importantes a fazer do que dedicar-se a serem juízes.

Embora se trata de uma grave enfermidade, esta “síndrome de juiz” é curável. Existem muitas terapias que podem arrancar a cadeira do juiz e desalojá-lo de seu ofício.

 

Na parábola da viúva e do juiz injusto Jesus nos mostra como podemos conviver com o juiz interior. Como a viúva, nós nos vemos ameaçados por um inimigo – pode ser um inimigo interior ou exterior ou um padrão de comportamento que não nos permite viver com serenidade e paz.

Nesse contexto, o juiz representaria nosso juiz interior, que nos despreza continuamente e nos julga desprezíveis por termos ideais tão altos ou exigências tão ambiciosas para nós mesmos.

Nessa interpretação, a oração também passa a ser o lugar onde nosso interior encontra justiça, onde o juiz interior é desapoderado. Na oração nos tornamos cientes da nossa dignidade como seres humanos, que fomos criados por Deus e que Ele julga capaz de realizarmos nossos desejos.Por meio dela, entramos em contato com a imagem única e singular que o Pai tem de nós, toda auto-depreciação e auto-condenação se dissolvem durante esse momento.

 

Se orarmos com essa parábola em mente, a nossa oração adquire uma força diferente.

Nesse sentido, a oração é o espaço onde a dimensão feminina é despertada através do seu clamor, da sua insistência e perseverança.

 

O ser humano carrega em si amor e agressão, razão e emoção, gentileza e dureza, juiz e viúva, animus e anima – parte masculina e parte feminina da alma.

Muitas vezes vivemos apenas um polo e recalcamos o outro. Enquanto este permanecer nas sombras terá um efeito destrutivo. A arte da humanização consiste na reconciliação da viúva com o juiz interior. Muitos ficam chocados quando, apesar de todo esforço para serem pessoas amáveis e gentis, descobrem em si lados insensíveis, antipáticos, julgadores, ofensivos...

Jesus nos apresenta a oração como caminho para esvaziar o ofício do nosso juiz interior. No espaço da oração experimentamos nosso direito à vida; ali encontramos paz, ajuda e cura. Ao mesmo tempo, a oração nos leva ao espaço interior do silêncio, onde o juizé desarmado de sua arrogância.

Com o juiz silenciado, acabam-se os ressentimentos, as violências interiores, os sacrifícios, os juízos, os sentimentos de culpa...  Morre o “juiz” das proibições, das ameaças, dos castigos e da perpétua vigilância sobre nossos atos e intenções. Com isso, nossa vida torna-se mais leve, os medos se vão e a harmonia toma assento em nosso coração.

 

A parábola nos causa uma transformação, questiona nossa vivência, abrindo espaço para experiências novas. Jesus descreve essa viúva sem perspectivas, como mulher que não desistiu de si mesma. Orar, por-tanto, significa: não desistir de si mesmo.

Ao mesmo tempo, Jesus revela a imagem de umDeus desprovido de dogmatismos, um Deus desprovido também de controle e arbitrariedade. O Deus de Jesus não é um juiz com um catálogo de leis que tem necessidade de mandar, controlar, verificar... Basta-lhe a misericórdia, a compaixão...

A misericórdiade Deus constitui a resposta à indigência e ao clamor do ser humano. Ela oferece a possibilidade de pôr de lado o julgamento e a condenação. O passado de erros e fracassos é substituído pelo presente de aceitação e perdão.

Onde não há misericórdia, não há sequer esperança para o ser humano.

Enquanto o Reino de Deus estiver no nosso meio, o juiz interior não tem nenhuma chance, estamos sãos e salvos, livres dos seus juízos, de suas expectativas e exigências, de suas acusações e sentenças. Nesse espaço ninguém pode nos ferir, nenhum inimigo tem acesso, seja ele interior ou exterior.

 

Texto bíblico:Lc 18,1-8

 

Na oração: “tomar consciência” dos momentos em que o “juiz interior” emite

seus “pareceres de morte”, seja na relação consigo mesmo ou com os outros.

sábado, 5 de outubro de 2013

Evangelho Lc 17,5-10.

O TRABALHO É A FÉ QUE SE FAZ VISÍVEL

“Somos simples servidores: fizemos o que devíamos fazer” (Lc 17,10)

Os apóstolos, depois de um tempo de convivência com Jesus, se dão conta de que lhes falta algo para poder compreender as exigências d’Ele. Por isso, suplicam: “aumenta nossa fé”.
Como de outras vezes e como bom “pedagogo”, Jesus não responde diretamente à petição dos apóstolos. Quer dar a entender que a não é questão de quantidade, mas de autenticidade.Além disso, a não pode ser aumentada a partir de fora; ela tem que crescer a partir de dentro, como o insignificante grão de mostarda que, embora diminuto, contém vida exatamente igual que a maior das sementes.
A não é algo que se “tem” ou “não se tem”; a fé é um caminho, é uma “travessia” em direção a largos horizontes; e um desejo eternamente insatisfeito; é uma confiança continuamente renovada, um compro-misso sem final.
A não é um ato nem uma série de atos,nem uma adesão a uma série de verdades teóricas que não podemos compreender, mas uma atitude pessoal fundamental e total que imprime uma direção definitiva à existência. Na Bíblia, a é equivalente à confiança em uma pessoa, acompanhada da fidelidade.
Nesse sentido, a fé é uma vivência em Deus; por isso não tem nada que ver com a quantidade.

Jesus denuncia a dos seus discípulos, que parece frágil, de pouco fôlego, incapaz de manifestar aquela força que muda a vida, o modo de pensar, de sentir e de agir.
A supõe o des-centramento de si mesmo e o reconhecimento de Deus como centro da própria vida, numa atitude de confiança incondicional; ela abre para o ser humano o horizonte infinito de Deus. Crer significa deixar Deus ser totalmente Deus, ou seja, reconhecê-lo como a única razão e sentido da vida.
É esta experiência de fé que desata as ricas possibilidades latentes em nosso interior. Com a imagem da amoreira que é transplantada, Jesus nos está dizendo que o dinamismo de Deus está já atuante em cada um de nós e nos possibilita viver profundas mudanças (sair de um lugar estreito, limitado... e lançar-se a outro lugar amplo, desafiante...). A fé é experiência expansiva da própria vida, movida pela graça de Deus.Aquele que tem confiança em Deus, poderá desatar toda essa energiade vida.
Essa vida é o que de verdade importa. Por isso, crer em Deus é também confiar em cada ser humano e em suas possibilidades para alcançar sua plenitude humana.

Que alimentemos, portanto, dentro de nosso coração, estaviva, forte e eficaz. que se visibiliza no serviço por pura gratuidade; ou, segundo S. Paulo, a fé que se realiza“pela prática do amor” (Gal. 5,3).
E Jesus ilustra isso com a pequena parábola do “simples servo”.Parábola dirigida àqueles que confiam em suas obras e exigem uma recompensa de Deus. Daí o perigo da soberba religiosa: comparar-se com os outros, colocando-se acima deles e fazendo-se o centro.
No Reino de Deus, somos todos servidores;nele não se trabalha por recompensa. Já é um privilégio podermos colaborar na obra o Senhor. A parábola revela que o trabalho a serviço do Senhor já é uma graça e a recompensa não pode ser exigida; ela é dom.
Não podemos fazer desse serviço uma “carreira”, com promoções, honrarias e prêmios. No mundo em que vivemos, a mínima prestação de serviço exige uma gratificação específica. Tudo tem um preço. Nossa mentalidade exclui todo espírito de serviço gratuito.
As “obras boas” não são um crédito que podemos apresentar a Deus; são, antes, a manifestação de que temos acolhido o amor de Deus e o manifestamos aos outros. Confiar em Deus é também incompatível com a confiança nos próprios méritos. Aqueles que passam a vida acumulando méritos não confiam em Deus, mas em si mesmos. A Salvação “por pontos” é totalmentecontrário ao evangelho.
Há aqui o princípio ético que deve reger a conduta do cristão, diante de Deus e diante dos outros. É a atitude da inteira disponibilidade, a intensidade do compromisso, sem queixas, sem comparações e nem exigências. Uma ética e uma espiritualidade assim revelam um profundo e inexplicável humanismo.

Por isso, crer no Deus que “atua em tudo e em todos” implica estar sintonizado com Ele, trabalhando na mesma direção, fazendo as mesmas obras que Ele está fazendo para tornar este mundo mais habitável.
Cremos no “Deus que trabalha sempre” e em tudo nos associa, em comunhão com Ele, a seu trabalho constante de transformação deste mundo, na fronteiramesma onde se tece a novidade da história.
Trabalho que se faz com amor;“o trabalho é a fé que se faz visível”.
Nesse sentido, “somos servidores e nada mais, fizemos o que devíamos fazer”.
Não está correta a tradução: “somos servos inúteis”. Se o servo fosse inútil, o senhor não lhe pediria serviço algum. Pelo contrário, ele é extremamente útil. Seu trabalho tem muito valor aos olhos do senhor. Mas o servidor não é nenhuma personalidade de destaque. Ele não está acima do senhor, Ele faz seu trabalho; é servidor, e nada mais. Mas serve.
Ao situar nosso trabalho cotidiano na linha da colaboração com a atividade criadora de Deus, do serviço à humanidade, da construção de um mundo fraterno..., isso nos ajuda a não convertê-lo em um meca-nismo ou dinâmica de auto-centramento, de busca exclusiva e muitos vezes compulsiva de nós mesmos e de nossos interesses e benefícios; ao mesmo tempo, nos faz evitar, em nosso modo de trabalhar, atitudes e ações de domínio, de manipulação, de cobrança dos outros...

São vários outros elementos que contribuem para fazer de nosso trabalho uma “experiência espiritual”:
a pureza de motivações (por que faço isso? para quem faço?), a capacidade de “contemplar”, a agilidade no “eleger”, o crescer em gratuidade e relativização de si mesmo, o deixar-se ajudar, a capacidade de agradecer.
A atitude de gratidão (consciência viva daquilo que cada dia recebemos e nos é dado) nos faz viver nosso trabalho como serviço e o liberta radicalmente de suas dimensões de rotina, de carga..., e o vai situando na linha de uma experiência profundamente “espiritual”: dupla experiência de agradecer e ajudar.
Quando vivemos nosso trabalho a partir da gratidão, o esforço que o mesmo trabalho exige brota de um modo mais natural, mais espontâneo...; por isso, “cansa” menos, “desgasta” menos...
Se vivemos a partir da gratidão, ficamos menos “dependentes” da compensação que os outros poderiam dar à nossa entrega ou ao nosso serviço.

Encontramos aqui o fundamento para uma teologia do trabalho: o trabalho, seja ele qual for, é reden-tor, se a motivação é evangélica, se ele está orientado para o Reino. Não é o trabalho que nos faz impor-tantes, mas somos nós que fazemos qualquer trabalho ser importante, quando ele é realizado na perspec-tiva do Reino de Deus. Todo trabalho é nobre, seja ele o de cinzelar estátuas ou o de esfregar o chão.
A alegria do trabalho está no fato de perceber o sentido e a intenção presentes nele. Afinal, somos chamados a “trabalhar na obra do Senhor”, somos seus “servidores”.
A verdadeira “experiência espiritual ”é estabelecer com o “Deus da Vida” uma relação “desinteres-sada”, isto é, uma relaçãona e a partirda gratuidade; é passar do “Deus mérito” ao “Deus do dom”, do “Deus juiz” ao “Deus Pai-Mãe”, do “Deus ameaça” ao Deus de “bondade escandalosa” que nos  desafia a sermos criativos em sua obra. Daqui brota a dimensão contemplativa do trabalho, pois este passa a ser “templo” do encontro com Deus trabalhador e de colaboração com os outros.

Texto bíblico:Lc 17,5-10

Na oração: Precisamos alimentar uma outra relação
com o trabalho no sentido de assumi-lo como cooperaçãocom o Deus trabalhador e com tan-tas pessoas tocadas pela sua graça. Uma relação que permita nos distanciar das cargas, ativismos, tarefas estressantes... e viver o trabalho com humor e criatividade.
* Seu trabalho cotidiano: ativismo ou “ação discernida”? Busca de recompensas ou espaço de colaboração

com o Deus trabalhador?