segunda-feira, 31 de agosto de 2020

CRIAÇÃO: o amor fecunda o universo

Amigos e amigas,

De 01 de setembro a 04 de outubro, acontece o período de oração e ação em favor da nossa Casa Comum.
Trata-se do programa "Tempo da Criação", com o lema: "Jubileu da Terra: novos ritmos, nova esperança".
Incentivado pelo Papa Francisco e pelo Conselho Mundial das Igrejas, milhares de cristãos e de instituições religiosas de
diferentes denominações, estarão envolvidos nesta celebração global, ajudando a inspirar a todos para atuarem em
favor do cuidado para com a Criação, que está sendo continuamente destruída, sobretudo em nosso país.
Neste "Tempo da Criação" e em meio à crise que sacode nosso mundo, devemos nos despertar diante da urgente
necessidade de curar nossas relações com a Criação e as relações entre nós, muitas vezes carregadas de ódios,
intolerâncias, violências... Trata-se da "ecologia integral": todas as expressões de vida estão inter-conectadas, são
inter-dependentes; por isso, devem ser cuidadas. Quem ama, cuida.
Para mais informações, podem entrar nos sites: - movimento católico global pelo  -  www.seasonofcreation.org
Por isso, nos próximos cinco domingos, além da reflexão dominical, segue mais um roteiro de oração, inspirado na
"Laudato sí", para ajudar a entrar em sintonia com este "Tempo da Criação", tanto no nível pessoal como comunitário.
Um abraço a todos(as)
Pe. Adroaldo sj


 

Tudo está relacionado, e todos nós, seres humanos, caminhamos juntos como irmãos e irmãs numa peregrinação maravilhosa, entrelaçados pelo amor que Deus tem a cada uma das suas criaturas e que nos une também, com terna afeição, ao irmão sol, à irmã lua, ao irmão rio e à mãe terra (Laudato Si’, n. 92).

 

O núcleo da experiência bíblica é a tomada de consciência do Amor divino presente e atuante no mundo. Este mistério primordial da relação de Deus com a Criação constitui o centro mesmo da Revelação.  A Criação aparece então como um grande gesto de Amor e todas as expressões de vida tornam-se a história da fidelidade desse Amor gratuito. A Criação é obra do Amor exagerado de Deus.

E foi do transbordamento do Amor divino que brotou a vida, pois o Amor é sempre criativo, original: ele cria e re-cria continuamente e desencadeia um movimento expansivo em direção à plenitude.

E o Amor de Deus é irradiante e expansivo; por isso, tudo está habitado e perpassado por esse Amor.  Tudo está inter-ligado, conectado e enredado pelo Amor. É o Amor que nos faz sentir a inter-depen-dência, pois ele mantém inter-conectados os fios da vida.

Tudo é dom do Amor; o Amor está presente em tudo; ele continua trabalhando e re-novando tudo, e em tudo encontramos vestígios dele.

Assim, um universo que é fecundado pelo Amor de Deus é um universo abençoado, salvo e seguro.

O amor é a força maior existente na Criação, nos seres vivos e nos humanos. Porque o amor é uma força de atração, de união e de transformação. O amor é a expressão mais alta da vida que sempre irradia e pede cuidado, porque sem cuidado ela definha, adoece e morre.

 

- O que é que nos une? O que é que nos põe em relação uns com os outros?

É a “comunidade universal de vida”, isto é, tudo o que existe, tudo o que vive e que tem sentido pelo fato de estar em relação, em comunhão, desde o mais ínfimo ser ao mais elevado.

Pertencemos a uma comunidade cósmica de vida tal como foi criada e sustentada por Deus.

Há uma interação entre nós, seres humanos, e a natureza. Nosso corpo e nosso cérebro são compostos das mesmas partículas que tecem o brilho das galáxias que ardem nas profundezas siderais. Impossível estabelecer uma nítida separação entre o ser humano e o universo.

Somos quem somos somente na relação e por nossa relação com todas as criaturas e com o próprio planeta.  Os acontecimentos da evolução estão inter-relacionados.

É um desafio, para a experiência de oração, assumir que o mundo é um santuário que deve ser respeitado e cuidado, que é a morada de tudo, que foi a morada do Filho de Deus, e que continuará sendo a morada da Humanidade e da Criação.

 

A fé na Criação diz que no princípio do processo da evolução do cosmos há um amor criador. Os textos ligados à Criação falam de Deus como Pai, mas também como Mãe; devemos integrar, nesta visão de Deus criador, a dimensão feminina da Mãe Divina que sofre dores de parto e gera o Universo como ato de amor. Todo o Universo é um suspiro do amor misericordioso.

No poema da Criação (Gen 1) o verbo usado para “criar” (“qaná”) pode ser traduzido por gerar; a  criação é uma espécie de parto divino. Deus diminui a si mesmo para que o Universo possa nascer.

A Palavra criadora e amorosa de Deus gera e sustenta toda a Criação. Isso significa que a ação criativa de Deus não diz respeito apenas à origem do mundo, mas à uma relação de aliança com esse Universo hoje. Não foi uma vez que Deus criou, mas continua permanentemente a “gerar”, a “dar à luz” tudo o que e-xiste. Acreditar na Criação é ver por trás de cada ser do Universo o amor de Deus nele presente e atuante.

Para a Bíblia, a natureza é sagrada, porém não é divina. É de Deus e manifesta Deus. Podemos sempre encontrar Deus no contato com a natureza, mas ela é criatura e sacramento, não a divindade em si mesma; a natureza também é mãe geradora. Conforme o Gênesis, Deus dá à terra e ao mar capacidade para gerar vegetais, animais e peixes, segundo a sua espécie. A criação não é só criada. É co-criadora, participa do ato criador de Deus. Por participação, é também divina.

A Bíblia insiste que é criação de Deus para salientar que toda ela depende de um amor que a ordena. Esse amor é que a tornará ecológica, isto é, casa comum para todos os seres vivos.

 

A Criação não se completa com a chegada do ser humano, embora a criação do homem e da mulher ocupe o centro do segundo relato do Gênesis (Gen. 2). Deus cria a humanidade da argila da terra, indi-cando que a natureza do ser humano é a mesma da terra. O ser humano tem uma relação visceral com a terra (em hebraico: “adamá”), de onde veio e para onde volta. E o sentido de tudo é a vida.

Deus não criou o ser humano para ser senhor absoluto da criação, mas para “cultivar e guardar a criação” (Gen 2,15) com carinho e ser para com as outras criaturas como Deus é: amor e ternura.

A visão bíblica sobre a criação revela que existe uma pertença mútua, um parentesco cósmico, uma irmandade universal entre todos os seres. Fora de Deus, tudo é criatura. Todos os seres da terra são criaturas de Deus. Todos tem impresso em seu ser mais profundo a marca do seu Criador, uma dignidade própria e maravilhosa. Por isso o Universo é sagrado e é lugar de contemplação e encontro íntimo com o Criador. O Universo é o teatro da glória de Deus, isto é, da manifestação da presença divina.

 

Por isso, no primeiro relato da criação, o cume está na instituição do “sétimo dia”, o shabat, o descanso divino ou, em termos mais precisos, a plenitude da relação gratuita e amorosa do Divino com o Universo.

O termo “shabat” significa descanso e, ao mesmo tempo, plenitude, realização profunda.

Isso significa que a realização mais profunda das pessoas e da natureza está na gratuidade, não no seu aspecto utilitário. O sentido da celebração do sábado é novamente se conceber a si mesmo, e à criação, como parceiros da aliança de Deus. O sábado é completude da criação: o repouso, a festa, o coroamento da criação. O sábado faz o casamento entre Deus e a criação.

A instituição do sábado é um dos elementos mais ecológicos de toda a Bíblia. “O ano sabático é uma política ambiental de Deus com suas criaturas e com a terra” (J. Moltmann).

 

A Aliança com Deus é ligada à relação com a terra. Nessa visão de aliança, a Bíblia destaca que a criação tem uma bondade estrutural: “Deus viu tudo o que tinha criado e viu que tudo era muito bom” (Gen. 1,31). Em toda a Bíblia, a terra aparece sempre como aliada do ser humano; ela nos ensina a viver com a água, com a terra e com todos os seres do Universo uma relação de aliança, não de dominação arbitrária e exploradora. Os profetas do Primeiro Testamento insistiram em que quando o povo guarda a aliança com Deus e respeita a terra, esta fica fértil e generosa. Quando as pessoas rompem a aliança com Deus e se afastam d’Ele, a terra fica estéril.

Uma leitura deformada do livro do Gênesis deu margem a uma ruptura de harmonia com todos os seres da terra. “Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra e subjugai-a! Dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que se movem pelo chão” (Gen. 1,28).

O termo “subjugar” (“kabas”), na maior parte dos textos bíblicos é usado no sentido de “amparar”, “proteger”. Da mesma forma, o verbo hebraico usado para “dominar” (“radah”), é um termo usado para expressar o caminhar do pastor com o seu rebanho, conduzindo-o às pastagens, protegendo-o contra o ataque dos animais selvagens. “Dominar”, portanto, vem do latim “dominus”, que significa “senhor”.

Dominar significa exercer o senhorio sobre as demais criaturas, e este exercício do senhorio deve ser exercido à maneira do “senhor”, que é o próprio Deus. A narrativa da Criação nos mostra como Deus exerce o senhorio em relação à Criação: ele a cria, ordena o seu crescimento e a sua evolução, garante a sua continuidade, cuida dela e a abençoa.

Assim, o exercício do senhorio, ou a dominação, por parte do ser humano, deve significar respeito à ação criativa divina, contribuir com o crescimento e a evolução da natureza em todas as suas dimensões, cuidado com o meio ambiente e fazer dele uma fonte de bênçãos, ou seja, de comunhão com ela e, a partir dela, harmonia interior, comunhão com as outras pesso-as e caminho de conhecimento e estreitamento de rela-ções com o próprio Criador.

 

Textos bíblicos: Gen 1  Dan 3,51-90   Sl 136(135)

                         

Na oração: Durante o tempo de oração deixe que seu senti-

                    mento de “irmandade universal” se expresse como gratidão, assombro, louvor, admiração...

 

 

A CORREÇÃO FRATERNA INSPIRADA PELO AMOR


 

“Se o teu irmão pecar contra ti, vai corrigi-lo, mas em particular, a sós contigo!” (Mt 18,15)

 

Como pessoas, somos seres sociais, comunitários. Todas as dimensões de nossa existência são vividas socialmente: família, povo, Igreja, comunidades, associações, partidos políticos, etc... Desde o nascimento até à morte, somos para e com os demais.

Saber se relacionar com os outros é uma necessidade fundamental da pessoa humana; esta, revela sua matu-ridade e se realiza humanamente quando se abre às relações interpessoais e descobre o prazer de conviver.

Jesus veio restabelecer um novo tipo de relações, e nos motiva a colocá-las em prática e estendê-las em todos os nossos encontros.

A vida de relação também ocupa o centro da comunidade cristã, que é pensada e vivida como mistério de comunhão e de missão, fundada na relação com Deus, comunhão de Pessoas e fundamento de nossa frater-nidade. Tal fundamento dá vida e equilíbrio às realidades comunitárias, onde a atenção recíproca ajuda a superar a solidão, a comunicação favorece a corresponsabilidade, o perdão cicatriza as feridas e cada pessoa é motivada a sair de si para viver o compromisso com o outro.

Cremos no “Deus dos laços”, das conexões e das relações criativas. Deus, já desde o princípio, faz resplandecer seu rosto trinitário na expressão “façamos o ser humano à nossa imagem e semelhança”. Ele deixou sua pegada de amor recíproco e compartilhado em cada ser humano.

Por isso, para curar na raiz os males que provocam as falsas relações e as forças desagregadoras, temos de aprender do Deus trinitário o segredo de um amor oblativo, de um esvaziamento recíproco de nossos egos, a fim de que nossos laços fraternais também sejam alimentados por um amor expansivo.

 

O evangelho deste domingo é um texto significativamente comunitário. Mateus emprega, pela primeira vez aqui, o termo “irmão”, para fazer referência às pessoas que faziam parte da comunidade cristã, e mostra costumes que, seguramente, faziam parte da organização e do modo de vida das primeiras comunidades.

O relato reflete, a partir da memória destas comunidades mateanas, a importância que o cuidado das relações interpessoais tinha para aqueles(as) que professavam a fé em Jesus Cristo. Por isso, o evangelista põe na boca de Jesus o que conhecemos como correção fraterna, o perdão e a oração em comum.

O ponto central do relato (a correção fraterna) é “ganhar” o irmão. Jesus buscou salvar sempre o que estava perdido. A finalidade de sua vida não foi a de condenar ou castigar, mas “ganhar” o irmão, encontrar a ovelha perdida, acolher o filho perdido, receber no Reino o bom ladrão.

Isto nos recorda a necessidade do diálogo e da compaixão em nossas relações humanas. Relações que são, em definitiva, o eixo principal de nossa vida comunitária e eclesial. De nada servem as reuniões, celebrações ou projetos que realizamos se não cuidamos, concretamente, da relação com os outros, com as irmãs e irmãos que o Senhor nos presenteou como companheiros(as) de caminho.

 

Jesus, com suas palavras, mostra mais uma vez compreensão e firmeza, sensatez e liberdade. A correção fraterna, em qualquer grupo, se torna difícil. Talvez seja uma das atitudes que mais nos custa viver com maturidade. Mas, a correção se torna simples quando brota do carinho e da humildade, quando está permea-da pelo amor e pela misericórdia. Afinal, somos humanos e todos cometemos equívocos em algum momento da vida. Esta correção busca, a partir do coração, não humilhar, mas sustentar o(a) irmão(a) nas dificuldades.

E isto é assim porque lhe mostra o mal que fez para que possa crescer e ser melhor pessoa.

A “correção fraterna” é gesto humilde que não humilha, porque é discreto e silencioso. A correção fraterna “não faz ruído”; por isso Jesus convida a corrigir a sós com o ofensor e só em último caso, recorrer à comunidade.

Corrigir com amor não significa pôr o(a) outro(a) de joelhos para que reconheça as suas faltas; a correção nasce de um coração “educado” pela Misericórdia divina e se manifesta externamente com uma atitude mansa e condescendente. Esse Amor é uma força poderosa, não se rende diante do mal, porque é sempre capaz de redescobrir o bem ou de salvar a intenção do outro, de ativar novamente nele a esperança...

A correção fraterna é mais um estilo de vida que um ato ligado a uma transgressão. É um modo de pôr-se diante do outro e de sua fraqueza, mas que não se realiza exclusivamente depois da queda; antes, pode às vezes impedir essa queda porque é um estilo de bondade, compreensão, magnanimidade, estilo de quem não presta atenção ao que o outro merece nem se escandaliza com sua miséria. "Devemos corrigir como pecadores(as)”,  não como “justos(as)”.

 

O cristianismo é tão revolucionário que exige do ser humano não apenas a grandeza de compreender e desculpar o ofensor, mas a capacidade de amá-lo.

 

Corrigir é ter esperança naquele que ofende, acreditar em sua humanidade, oculta sob a sua fragilidade.

O ser humano é muito mais que um ato falho ou uma decisão equivocada. É reconhecer sua liberdade de ser, de abrir uma nova possibilidade para sua vida e de reiniciar-se a si mesmo.

A pessoa misericordiosa salva e redime só enquanto ama: quer o bem do(a) outro(a) e se entristece com seu mal, sente o dever de fazer alguma coisa por ele(a). Trata-se da motivação mais nobre e verdadeira de sentir-se responsável pelo(a) outro(a).

Sua correção é fundamentalmente uma mensagem de estima e confiança no(a) outro(a), crer na sua amabilidade. Quem corrige está convencido de que o(a) irmão(ã) é melhor que aquilo que aparenta ser.

Por isso, a correção é aquela energia escondida nas palavras de Jesus:

           Vai e não peques mais”.  Força que realiza aquilo que diz.

 

No momento da correção fraterna, que é um momento de parto e de libertação, dá-se ao(à) outro(a) o direito de “ser um outro”, não o(a) aprisionando numa única possibilidade de ação e de decisão errada.

Tal correção é muito mais uma atitude de vida que pede um olhar mais amplo sobre o(a) outro(a), contem-plá-lo(a) a partir de outra perspectiva. É enxergar no(a) outro(a) não o mal que fez, mas sua verdadeira identidade de filho(a) de Deus.

Correção expansiva, que abre futuro; faz emergir outros recursos latentes na pessoa; é impulso de vida, pois destrava e coloca a pessoa em movimento, impulsionando-a a ir além de si mesma.

Na realidade, a correção fraterna deve fazer parte de nossa vida cotidiana, das relações familiares, de amizade, relações comunitárias... Ela não se restringe a um ato pontual mas deve se tornar um “modo de viver” no qual a outra pessoa é mais importante para nós que os atos equivocados que realiza. Por isso, buscamos seu bem, seu crescimento, seu desenvolvimento como pessoa, a partir do amor verdadeiro.

Bem vivida, a correção é das experiências mais enriquecedoras para ambas pessoas, porque o desafio não é só para aquele(a) que deve acolher a correção, mas também para aquele(a) que a realiza, pois, para este(a) implica maturidade, amor, bondade, liberdade e espírito de discernimento. Igualmente, este(a) deve ter consciência de que todos são “santos(as) e pecadores(as)” e, portanto, todos necessitam de pessoas amigas que as façam ver, com maior claridade, se desviaram do caminho por alguma causa.

Como costuma acontecer em tudo o que é humano, quem melhor sabe propor a correção fraterna é quem já a experimentou em sua própria pele e saboreou o bem que isso traz.

 

Podemos concluir afirmando: fazem parte da comunidade dos(das) seguidores(as) de Jesus, aqueles(as) que perdoam e se deixam perdoar, aqueles(as) que acolhem a mútua correção fraterna. Mas, aqueles(as) que negam o perdão (dar e receber), acabam se afastando da mesma comunidade.

Não é a comunidade em si que exclui o “irmão que pecou”, mas é este que se auto-exclui, porque não é capaz de entrar no fluxo do perdão.

Aqui aparece a grande novidade: a comunidade cristã é capaz de regular-se e criar comunhão a partir da autoridade do perdão do evangelho.

O centro é o perdão, sempre oferecido, acima da lei, como graça fundante.

 

Texto bíblico:  Mt 18,15-20

 

Na oração: Olhar cada uma das pessoas com quem convive. Dar-se conta daquilo

                     que sente para com cada uma delas, como as trata, como as acolhe...

Contemplar o outro respeitando-o em seu modo de ser, de agir, de pensar, de falar,

                     ajudando-o a ser mais humano no seu modo de ser, de pensar, de viver...

Observar e descobrir seus valores, suas riquezas, sua originalidade, sua profundidade; lentamente, mas com um

                    olhar sereno e profundo... tentar descobrir “algo mais” presente em cada pessoa com quem convive (família, trabalho, comunidade);  vê-la com os olhos do coração: imagem de Deus, amada por Deus,  templo do Espírito, presença de Deus no mais profundo de seu ser.

 

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

NA VIDA DE JESUS, A CRUZ REVELA SEU SENTIDO

 


“O que poderá alguém dar em troca de sua vida?” (Mt 16,26)

 

O evangelho deste domingo é continuação daquele do domingo passado; também hoje, Jesus e seus discípulos se encontram em Cesaréia de Filipe, fora do território da Palestina. O que Mateus relata da boca de Jesus, nem sequer é aceitável para os seus seguidores. Jesus tinha acabado de felicitar a Pedro por expressar pensamentos divinos. Agora o critica duramente por pensar como os homens. A diferença é enorme e só umas linhas de distância, no mesmo evangelho.

Como Pedro, também nós, seguidores(as) de Jesus, ficamos escandalizados com a cruz. Nenhum de nós teria escolhido para Jesus esse caminho. Onde fica a imagem do Messias vitorioso, Senhor ou Filho de Deus?

Apesar das palavras de Pedro, no domingo passado, sua atitude diante do anúncio da paixão e morte de Jesus demonstra que, nem ele e nem os outros discípulos, entenderam o que significava a pessoa e a missão do Mestre de Nazaré. Queriam segui-lo, mas sem as consequências do seguimento.

Para compreender Jesus, é preciso deixar de pensar como os homens e começar a pensar como Deus; é deixar de ajustar-nos a este mundo e entrar em sintonia com o modo original de ser e de viver do próprio Jesus; é transformar-nos pela renovação da mente e abertura do coração.

Para aceitar a mensagem de Jesus, temos de mudar radicalmente nossa imagem de Deus.

 

Quê significado tem para nós, hoje, a morte de Jesus na Cruz? Não é fácil entrar na dinâmica da Cruz. Mas, por outra parte, é impossível compreender a mensagem de Jesus sem compreender a Cruz. Ela é expressão de uma vida doada; por isso se converteu no “sinal chave de nosso seguimento”.

A vida é constantemente chamada a ser Páscoa. Porque, só na vitória da vida entregue, ela ganha sentido, avança, como uma torrente que rega terras secas, ávidas de água, como um fogo que, na noite mais escura, traz uma luz que permite vislumbrar a vida oculta.

A vida é movimento e, portanto, energia expansiva. Podemos consumi-la em benefício do ego (falso eu) e então vem o fracasso. Podemos re-orientá-la em benefício dos outros e da causa do Reino; e então, consu-má-la, dando-lhe plenitude. Pois, só uma vida consumada faz fecunda a morte.

Alguém já teve a ousadia de afirmar que a morte é mais universal que a vida; todos morrem, mas nem todos sabem viver, porque incapazes de re-inventar a vida no seu cotidiano. Por isso, viver é uma arte; é necessário re-criar a vida no dia-a-dia, carregá-la de sentido.

A morte do falso eu é a condição para que a verdadeira vida se libere.

O “depois da vida” é um grande encontro onde seremos perguntados: “o quanto você viveu sua vida?”

 

De fato, aqueles que mais desfrutam da vida são os que deixam a segurança do conhecido e se dedicam apaixonadamente à missão de comunicar vida aos outros. Ter apego à própria vida é destruir-se; entregar a vida por amor não é frustrá-la, mas levá-la à sua completude. Aqui há uma inversão na lógica natural das coisas; ganha-se quando perde, vive-se quando morre, multiplica-se quando divide.

Estranhas atitudes estas que Jesus propõe, tão contrárias em uma cultura como a nossa que nos apresenta a apropriação e a acumulação como meta da existência. Ele, imperturbável, apresenta sua alternativa: perder, vender, dar, deixar, não armazenar, não reter avidamente, desapropriar-se, esvaziar-se, partilhar...

Perder-ganhar, morrer-viver, entregar-reter, doar-receber..., parecem dimensões ou realidades contraditó-rias, mas captar a profundidade da verdade contida nesta “contradição aparente” é descobrir o Evangelho.

“Morrer”, “perder”, “entregar”, “renunciar”... é este instante de ruptura, onde toda uma vida incubada, trabalhada no silêncio e no sofrimento, marcada de alegrias e tristezas, vitórias e fracassos, desponta luminosa para a vida eterna. Pois vida é um contínuo despedir-se e partir; ela nos desaloja de nossos “lugares estreitos” e nos faz caminhar em direção a novos horizontes.

A vida aumenta quando compartilha e se atrofia quando permanece no isolamento e na comodidade.

 

A morte do falso eu é a condição para que a verdadeira Vida se liberte. É preciso passar pela morte do que é terreno, caduco, transitório (aderências afetivas, apegos desordenados...) para deixar emergir a vida interior, a vida divina, a vida de Deus em nós.

O essencial não é encontrar um caminho para alcançar a imortalidade, mas aprender a “morrer em Cristo”.

Como Jesus encarou a Cruz? Ele não buscou a cruz pela cruz. Buscou a fidelidade à sua missão que consistia em evitar a proliferação de cruzes, para si mesmo e para os outros. Pregou e viveu o amor e revelou as condições necessárias para que esse amor se tornasse realidade nas relações entre as pessoas.

Jesus anunciou a boa nova da Vida e do Amor e se entregou por ela. Quem ama e serve não cria cruzes para

os outros; é o egocentrismo e a maldade que geram cruzes.

A realidade, dividida e conflituosa, se fechou à proposta de Vida apresentada por Jesus, impondo-lhe cruzes em seu caminho e finalmente O levantou no madeiro da Cruz.

Nela mesma, a cruz é aquilo que limita a vida (as cruzes da vida), que nos faz sofrer e dificulta nosso caminhar, por causa da má vontade humana (carregar a cruz de cada dia); ela é a corporificação do ódio, da violência e da exclusão humana. Mas Jesus continuou amando, apesar do ódio; continuou investindo sua vida a serviço da vida, apesar da cultura de morte na qual se encontrava. Assumiu a cruz em sinal de fidelidade para com o Pai e para com os seres humanos. Por isso, na vida de Jesus a Cruz é salvífica.

Nesse sentido, a cruz de Jesus não é um “peso morto”; ela tem sentido porque é conseqüência de uma opção radical em favor do Reino. A Cruz não significa passividade e resignação; ela nasce de sua vida plena e transbordante; ela resume, concentra, radicaliza, condensa o significado de uma vida vivida por Jesus na fidelidade ao Pai. que quer que todos vivam intensamente.

 

“Renunciar a si mesmo” e “carregar a sua cruz”, é entrar em sintonia e comunhão com Jesus, assumindo, com seu mesmo espírito, os sofrimentos que se seguem a uma adesão concreta e responsável à sua pessoa e à sua causa. É este seguimento fiel que nos introduz na cruz genuína d’Aquele que foi fiel até o fim.

A partir desta atitude de seguimento precisamos entender esse “renunciar a si mesmo” que Jesus pede ao discípulo. “Renunciar a si mesmo” não significa mortificar-se, castigar-se a si mesmo e, menos ainda, anular-se ou autodestruir-se. Nunca se deve confundir a cruz com atuações masoquistas, nunca alimentadas por Jesus. “Renunciar a si mesmo” é descentrar-se, sair de seus próprios interesses, para fixar a existência na pessoa de Jesus, a quem deseja seguir. É libertar-se de si mesmo para aderir radicalmente a Ele.

A mortificação tem um lugar importante na vida de quem segue a Jesus. Não qualquer mortificação, mas aquela que vai libertando a pessoa de seu egocentrismo, de sua comodidade ou de sua covardia para seguir mais fielmente a Ele. Buscar sofrimento para “agradar a Deus” não tem sentido; é tortura inútil, que alimenta nosso “ego” e nos afunda numa espiritualidade doentia.

A cruz tem sentido quando é consequência de uma opção autêntica de vida em favor da vida: por exemplo, quando sofremos por levar adiante uma causa justa, por defender as pessoas que são vítimas das estruturas sociais, políticas e econômicas injustas, por as-sumir a radicalidade na vivência do amor, lutan-do contra toda expressão de ódio, preconceito, intolerância..., por evitar o mal e denunciar uma injustiça, etc.

A cruz salva quando aponta para a vida.

 

Texto bíblico:  Mt 16,21-27

 

Na oração: - “Fazer memória” de tantas mulheres e

                       homens que se associaram à Cruz de Jesus, na solidariedade com os pobres, na fidelidade à vida evangélica, na descida aos porões das contradi-ções sociais e políticas, às realidades inóspitas, aos ter-renos contaminados e difíceis, às periferias insalubres, onde os excluídos deste mundo lutam por sobreviver. Ali se encontraram com o Crucificado, o “Justo e Santo”, identificado com os crucificados da história.

- Recordar as cruzes que apareceram na sua vida por causa da fidelidade ao Evangelho.