segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Caminho aberto a outros caminhos

 

 

“Começo da boa notícia de Jesus Cristo, Filho de Deus” (Mc 1,1)

 

Ao longo deste novo ano litúrgico, nós cristãos seremos inspirados pelo evangelista Marcos a viver, de modo sempre criativo e novo, o seguimento de Jesus. Seu Evangelho dá a arrancada inicial com este título: “Começo da boa notícia de Jesus...” Estas palavras nos permitem vislumbrar o que encontraremos em todo o relato de Marcos. O “começo” é um título que abrange e orienta tudo: o livro inteiro de Marcos deve ser ouvido como “boa notícia” sobre Jesus Cristo; boa notícia que desconcerta, que alimenta esperança e que abre um novo sentido para a nossa existência.

Com Jesus “começa algo novo”. É a primeira coisa que Marcos quer deixar clara. Todo o anterior pertence ao passado. Jesus é o começo de um caminho novo e de um tempo inconfundível. No relato, Jesus dirá que “o tempo se cumpriu”. Com Ele chega a boa notícia de Deus.

Isto é o que experimentaram os primeiros cristãos. Quem se encontra vitalmente com Jesus e mergulha um pouco em Seu mistério sabe que começa uma vida nova, algo que nunca havia experimentado anteriormen-te. Uma sensação de libertação, alegria, segurança e desaparecimento dos medos. Em Jesus, ele se encontra com “a salvação de Deus”.

 

Causa-nos assombro este início tão solene do evangelho de Marcos, que formula um apelo concreto, como se fosse a condição única para continuar com a leitura: “preparai o caminho do Senhor, aplainai suas veredas”. Esta Palavra, sempre oportuna, nos é presenteada neste tempo de Advento e nos recorda que, para acolher o Senhor, é preciso sair dos lugares estreitos, das posições fechadas, das ideias fixas..., e “fazer estrada” com o Deus Peregrino. Aqui está a verdadeira identidade dos seguidores de Jesus: os “adeptos do caminho” At 9,2 – assim eram conhecidos os primeiros cristãos.

O(a) seguidor(a) de Jesus é aquele(a) que descobre que não pode deixar de caminhar. Seguro(a) daquilo que lhe falta, percebe que cada lugar por onde passa é ainda provisório e que a demanda continua. E esse impulso interior, que é o seu desejo, o(a) faz ir além, atravessar fronteiras e “perder” seus lugares que davam a sensação de segurança. “O místico não habita em parte alguma, ele é habitado” (Michel de Certeau).

 

“Fazer caminho” não significa apenas deslocamento geográfico. As travessias nunca são apenas exteriores. Não é simplesmente na cartografia do mundo que o ser humano anda. Isso significa não perceber a profun-deza do seu ser; “deslocar-se”, querendo ou não, implica uma mudança de posição, uma expansão do próprio olhar, uma abertura ao novo, uma alteração do ângulo habitual, uma adaptação a realidades, tem-pos e linguagens, um encontro com o diferente, um diálogo tenso ou deslumbrado, que deixa necessaria-mente impressões muito profundas.

A experiência do caminho é a experiência de fronteira e do espaço aberto que o ser humano precisa para ser ele próprio. Nesse sentido, a viagem é uma etapa fundamental da descoberta e da construção de si mesmo e do mundo. É a sua “alma” que perambula, descobre cada detalhe do mundo e olha tudo de novo como da primeira vez. A travessia é uma espécie de propulsor desse olhar novo e contemplativo. Por isso, é capaz de introduzir na sua vida e nos seus planos, na sua organização, elementos sempre inéditos que podem facilitar aquela transformação radical que, em vocabulário cristão, chamamos “conversão”.

A con-versão supõe movimento e implica itinerância, capacidade para sair do espaço conhecido e atrever-se a pisar onde ainda não há confirmação de solo seguro. Conversão e movimento, porque o imperativo está no plural - “preparai!” -,  convidando-nos a encontrar com outros para realizar a missão à qual somos enviados; assim, nos convertemos em rastreadores da melhor senda, aquela que possibilita o cruzamento com outros caminhos, o encontro e o diálogo.

 

Estamos decididos a percorrer os caminhos novos que a novidade de Deus nos apresenta?

Ou nos entrincheiramos em estruturas caducas que perderam a capacidade de resposta?

Caminhar é sair do centro, das seguranças, da acomodação... e ir em busca das surpresas, das novas descobertas; implica arriscar, ter ousadia, não ter medo de fazer a travessia para o outro lado. Somos passageiros, um Caminho aberto à vida de Deus que permanece, caminho que anuncia e prepara a Vida. Por isso precisamos, mais do que nunca, da figura do profeta; autênticos profetas que, sem medo e partindo de sua experiência de Deus, nos ajudem a encontrar o verdadeiro caminho; pessoas que por sua dedicação e experiência pessoal possam lançar alguma luz nesse emaranhado de caminhos que se entrecruzam e que a imensa maioria são sendas perdidas que não levam a lugar nenhum.

A humanidade deveria ser caminho de vida, jamais caminho de morte.

 

 

Caminhantes somos, todos no mesmo percurso, no mesmo vôo, no mesmo barco.

Mas temos esquecido nossa condição de nômades do tempo e da vida, peregrinos de Deus, pensando que podemos construir, com a ajuda do mesmo Deus, uma casa permanente sobre o mundo, um “tabernáculo” perpétuo onde repousar, seja na forma “sacral” (nossas seguranças religiosas), seja na forma secular (nossos sistemas econômicos-sociais). Mas, as condições dos tempos e, de um modo especial, a experiência mesma do evangelho, nos fizeram descobrir que somos nômades do tempo e peregrinos de Deus, para além de todas as formas e estruturas que fomos criando ao longo da história.

Ser nômade do tempo significa caminhar (voar, navegar), leves de equipagem e por itinerários que ainda não foram percorridos por ninguém, não como aves migratórias que vão e voltam por rotas pré-fixadas na mesma evolução do tempo, pelas estações e pelos ventos da terra. Somente nós, seres humanos, somos verdadeiros nômades da criação, pois para continuar existindo precisamos abrir, por terra, mar e ar (ou seja, por nós mesmos, no interior de nossa humanidade), os caminhos que ainda não existem, pois nós mesmos os traçamos.

 

Caminhantes somos, e assim o tempo do Advento nos leva para fora dos pequenos lugares de refúgio que fomos edificando (nossas torres de Babel) para amar, viver e morrer no descampado, como Jesus, enquanto buscamos e esperamos a cidade futura. Assim, caminhamos com Ele, sabendo que nem o olho viu e nem o ouvido ouviu o que poderemos olhar e escutar se continuamos caminhando com Jesus.

Neste Advento, não somos simples espectadores, mas, sim, criadores de futuro, ou seja, de nós mesmos, em Deus. Unidos por uma esperança compartilhada, queremos ser pessoas de Advento, sabendo que nossa história não está escrita nem fixada ainda, mas que nós mesmos vamos traçando-a, enquanto Deus percorre seu caminho em nós e por nós. Como cristãos cremos que nossa vida não está escrita, mas que precisamos escrevê-la, nós em Deus e com Deus. Por isso “somos advento”; vivemos em “estado de advento”.

 

Texto bíblico: Mc 1,1-8

 

Na oração: - Orar é entrar na Tenda do Senhor, que é o pró-

                      prio coração: peregrinação interior, mobilidade...

- Deus “passa” e nos coloca em movimento; a oração é “fazer estrada com Deus”, caminhar na mesma direção, entrar no ritmo d’Ele, deixando-nos “ser conduzidos”.

- Para onde você sente que Deus vai lhe conduzindo? Há alguma coisa que o aprisiona? 

- Recordar medos, entraves, obstáculos... que limitam sua vida interior, impedindo-o(a) fazer-se peregrino(a)

- Quê eventos inesperados no caminho transformaram sua vida? O quê realmente causou impacto? Era algo planejado? Em quê aspectos da vida você pode “sair” dos terrenos conhecidos? Você já se arriscou alguma vez?

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

ADVENTO: “sentir o tempo”

 

 

“Ficai atentos, porque não sabeis quando chegará o momento” (Mc 13,33)

 

Com o Advento, iniciamos mais um novo “tempo litúrgico”. Qual o sentido dos tempos litúrgicos?

Podemos representá-los graficamente, visualizando um círculo onde começamos com o Advento, percorre-mos os “tempos” da vida de Jesus, com suas celebrações mais importantes, e o “tempo comum”, que culmi-na com a festa de Cristo Rei.

Acaso não é assim o grande círculo da vida? Tempos para gestar a vida, para trazê-la à luz, para alimentá-la e cuidá-la, “tempos comuns” para descobrir a inspiração do viver cotidiano, buscando o sentido de tudo o que fazemos e o que acontece ao nosso redor; às vezes, estes tempos são áridos e cinzentos, outras vezes, iluminantes e coloridos; tempos com a marca da solidão e da perda e tempos de primavera em que a vida brota de novo... Podemos dizer que nós, como num espelho, nos vemos no tempo litúrgico, para compreen-der e inspirar nossa vida a partir de “Jesus” e da “comunidade cristã”.

 

Vivemos hoje tempos conturbados, tensos...; partilhamos um momento de grande inquietação social, de aridez espiritual, de drama sanitário, de distúrbios existenciais, de profundos dilemas morais...

No entanto, resistimos! Em meio às sombras, perplexidades, contradições, provocações e promessas, que constituem o atual momento histórico, queremos expressar a fé no futuro da nossa vida.

Ainda que soframos ventos contrários e as nuvens se adensem no horizonte, sabemos e confessamos com o profeta Jeremias, e pela graça do Espírito, que “há esperança de um futuro” (31,17).

Para cada momento histórico sempre foi válido o alerta de Guimarães Rosa: “Viver é muito perigoso”.

A liturgia deste primeiro domingo de Advento se atreve a proclamar de novo sua esperança, como uma grande trombeta, que não chama para a morte, mas para a vida.

A esperança é um princípio vital, expresso na sábia constatação de que “enquanto há vida, há espe-rança”. Mesmo diante de desafios quase intransponíveis, consideramos possível ser de outro modo, inven-tamos e reinventamos opções, criamos novas saídas... e, sem cessar, sonhamos com o “mais” e o “melhor”. A esperança cristã destrói os “germes de resignação” da sociedade moderna e combate a “atrofia espiritual” dos satisfeitos. Por isso, a esperança cristã tem os pés plantados no “hoje” da nossa história, inspirando o esforço de transformação deste mundo marcado por muitos sinais de morte.

É ela que introduz na sociedade a sede de justiça e o compromisso de humanização.

Aquele que vive com esperança se sente impulsionado a fazer o que espera.

Nesse sentido, o futuro esperado se converte em projeto de ação e compromisso.

 

Ao adentrarmos, mais uma vez, no tempo do Advento, sentimos ressoar, no mais íntimo, a voz do Mestre da Galiléia, que nos convida a estar vigilantes e atentos, a viver despertos...

E temos muitas frentes abertas: superar o medo que nos paralisa, renovar a esperança no sentido da vida, avançar com a comunidade para uma nova Igreja em saída, ser as mãos de Jesus no mundo para curar, consolar, repartir o pão... Tempo para despertar e cuidar da “casa” que foi confiada à nossa responsabilidade.

A “vigilância”, de que fala o evangelho, é o outro nome para a atitude de “atenção”.

Para Simone Weil “a atenção é uma prece”, pois ela nos mobiliza para uma aliança com o “hoje” da vida; se não formos prudentes e generosos para manter os olhos bem abertos sobre o presente, perderemos a possibilidade do encontro com o surpreendente. Viver tem a marca da simplicidade, que precisamos redescobrir, despojando-nos de todas as cataratas existenciais que bloqueiam a visão, para deixar-nos conduzir pelo fluir contemplativo. Estamos muitas vezes alienados da vida, separados dela por uma muralha de discursos, de ideias vazias, de esperanças confusas...  Com o olhar contemplativo, podemos perfurar esse muro e deixar-nos impactar pelo novo que se revela do outro lado.

 

Somos seres “desejantes”. O instigante tempo do Advento ativa em nós os desejos mais nobres e oblati-vos, nos fazem ultrapassar a barreira do imediato e entrar no movimento que nos impulsiona a ir além, a entrar em sintonia com Aquele que vem e, ao mesmo tempo, já está presente. Desejar o encontro com “Aquele que vem” nos sensibiliza a perceber presente “Aquele que é”.

Por isso, o evangelho de hoje nos apresenta uma imagem sugestiva, que reúne no desejo duas atitudes importantes: o tempo da espera e o permanecer em vigília, ambas vivido no “estar despertos”.

A espera e a vigília da vinda plena do Senhor não nos afastam da realidade presente. Pelo contrário, faz-nos encarnar mais lucidamente nela.

Nesse novo tempo litúrgico, a comunidade cristã permanece à escuta dos passos de Deus, em nosso mundo,

 

em nossa vida. Porque o novo, não vem de fora, mas o sentimos e o tocamos por dentro.

Aquele que espera o encontro com o Senhor começa a ler a história como história redentora; descobre os momentos de inovação; é capaz de ver as libertações sendo gestadas no silêncio; conecta com as promessas ainda abertas e pendentes: a nova aliança, o novo povo, o novo êxodo, o Messias...

A atitude de vigília nos faz descobrir os sinais da chegada do Reino no tempo: não nos contentamos com o tempo vazio, “normótico” e sempre igual a si mesmo; descobrimos o tempo de salvação no qual há revelação e realização do novo, da justiça e da graça.

Os “esperantes” cristãos precisam aprender a “ressignificar” o tempo, pois o tempo de Deus e do Reino é o tempo da decisão em favor da vida (kairós). O reino tem seu tempo e seu ritmo. Não é questão de pressas, não é questão de datas e lugares, não é questão de cálculos. Tentar acelerar sua vinda seria como esticar o talo da planta para que cresça mais rápido. O importante é ter a paciência de quem sabe que a semente do Reino está semeada em nossa história e ninguém poderá deter seu desenvolvimento.

 

Nesta tremenda e instigante história, da qual fazemos parte, precisamos nos situar bem. Não só com a cabeça, pois aí já temos as coisas mais ou menos claras, mas com nossa sensibilidade, com compaixão, com nossos modos de falar e de olhar, com aquilo que deixamos que toque e afete às nossas vidas. Trata-se da sabedoria de “sentir o tempo”.

Diante do tempo dramático que vivemos, nossa tentação é querer saltá-lo, fugindo de suas exigências.

Advento vem ser, então, um tempo para voltarmos para o interior em meio à agitação, olhar para dentro e deixar-nos perguntar: presto atenção à história que todos vivemos, às suas dores e à sua beleza? Reconheço seus poderes (augustos, herodes, quirinos) e a vida vulnerável de Deus iluminando-se nela, apesar de tudo?

Somos iniciados a “sentir o tempo” de um modo novo, a fazer-nos amigos dele, a nomear e acompanhar o tempo que nos toca viver, a habitar com intensidade todas as etapas de nossa existência. Cada momento esconde sua pérola, e é muito emocionante poder chegar a descobri-la. Precisamos recuperar a força do “hoje” de Deus fazendo “memória” dos grandes personagens do passado:  Isaías, Jeremias, Elias, João Batista, Isabel, Maria de Nazaré, José... Eles continuam falando, continuam desvelando sinais de vida plena na história presente. Só uma sensibilidade marcada pelo tempo do Advento é capaz de entrar em sintonia com as surpre-sas de Deus; e a história é o rumor dos Seus passos.

 

Texto bíblico:  Mc 13,33-37

 

Na oração: Caminhamos para Deus quanto mais nos adentramos no profundo de

                     nós mesmos e da realidade. O maior enraizamento no tempo que nos toca viver desperta maior sensibilidade para sermos surpreendidos pelo novo que brota nos lugares menos esperados; é precisamente ali onde a vida renasce e amadurece.

- Como você se situa diante deste “tempo pandêmico”? Desespero? Medo? Desejo de saltá-lo?...

- Qual é o “novo” que você vislumbra no meio deste tempo? Você percebe algum sentido nele? Para onde ele aponta? É revelador de algo diferente?...