sexta-feira, 14 de março de 2014

O MANANCIAL QUE NOS INSPIRA



O MANANCIAL QUE NOS INSPIRA

“A água que eu lhe der se tornará nele um manancial que jorra para a vida eterna” (Jo 4,14)

O tempo quaresmal possibilita redescobrir as profundezas da pessoa humana, as coisas ocultas no seu interior, para assim poder ajudá-la a conhecer-se, crescer e gerar novos modos de se relacionar consigomesma, com os outros, com o meio ambiente e com Deus.
Em outras palavras, diríamos que este tempo des-vela, por um lado, uma realidade interna machucada, ferida, vulnerada, mas também, por outro lado, um potencial, um dinamismo, um “poço” de possibilida-des, um conjunto de forças positivas... São os dois rostos do coração da pessoa humana.
Isso quer dizer que a pessoa toda é movida, no seu viver, por uma mistura dessas duas faces do seu coração: a ferida e o poço, o medo e os desejos...
É a mistura dessas duas realidades que faz que cada pessoa seja ela mesma. É o interagir da parte vulne-rada com o potencial de possibilidades que vai dando identidade à pessoa e onde ela pode ir descobrindo qual é o sentido da sua vida e qual é a sua missão na história.
Por isso, quandoa pessoa se faz mais consciente dessas realidades do seu interior, quando se dá conta daquilo que brota da sua parte vulnerada e a integra, quando se dá conta da riqueza que existe no seu poço e a potencializa..., passará a se conhecer, a crescer e a descobrir a sua verdade mais profunda e, ao mesmo tempo – ao se tornar uma pessoa modificada por dentro – a modificar as estruturas da história.

O evangelho de hoje é um relato eminentemente teológico. É uma catequese que convida a um seguimen-to de Jesus que traz a ‘água viva”, o dom capaz de saciar o desejo humano. Essa água a encontramos em nosso próprio interior, como um manancial que brota incessantemente.
No texto aparece um significativo jogo de palavras: sempre que a mulher fala, ela fala de “poço”;no entanto, Jesus e o próprio narrador se referem ao poço como “manancial”.
Jesus faz a mulher cair na conta que é preciso abrir-se a esse “manancial” novo, que lhe vem através d’Ele e que “jorra em seu interior” de um modo permanente.
O encontro com Jesus fez a samaritana viver uma verdadeira“páscoa”, passando de sua vida trivial e dispersa à responsabilidade de anunciar a outros Aquele com quem havia se encontrado. Como uma água que jorra, uma torrente de gratuidade percorre a cena e transfigura a mulher. Ela foi sendo conduzida até sua própria interioridade através de um paciente processo que a fez passar da dispersão à unificação, da exterioridade à interioridade, da solidão à comunhão com os outros.
Ela entra em cena como “uma mulher da Samaria” e sai dela como conhecedora do manancial de “águaviva” e consciente de ser buscada pelo Pai para fazer dela uma adoradora. Sua identidade transformada a converte em uma evangelizadora.
Como bom pastor que conhece suas ovelhas, Jesus faz a mulher sair do deserto da superficialidade e vai guiando-a para a profundidade e autenticidade, para a terra do dom da água viva.
Como “expert” em humanidade, Jesus mostra-se profundamente atento e interessado pela interioridade de sua interlocutora, lhe faz descobrir o manancial que pode brotar do mais profundo dela mesma e lhe revela também a interioridade de Deus como Pai que busca adoradores em espírito e em verdade.

Vamos agora, a partir do encontro de Jesus com a samaritana, percorrer a nossa parte brilhante, essa rica interioridadeque pouco conhecemos, pois, lamentavelmente, poucas vezes nos permitimos entrar nela e, inclusive, poucas vezes temos alguma consciência de que existe, de que é a mais profunda, valiosa e autêntica de nós mesmos.
Abre-se, então, a possibilidade de reconhecer e fazer um caminho de redenção, acolhendo e potencializan-do o poço da positividade e das energias vitais. Este é o caminho que leva a desenvolver plenamente a dimensão humana: limpar a ferida a partir do próprio manancial.
Isso significa que o crescimento pessoal é um compromisso que só é possível quando se nutre com a água do próprio poço, a água que nasce do manancial interior.
O nosso manancial interior alimenta o poço das nossas qualidades, das nossas potencialidades e faz que se revele, no exterior, o rosto positivo do nosso coração.

E o que é o manancial?
O seu manancial é aquilo que existe em você que é inalterável, inesgotável, o que o(a) salva nos momentos mais difíceis, o que lhe dá mais intimidade. Se você entrar no seu manancial encontrará, além do seu potencial máximo, outras duas realidades que seguramente passam despercebidas no cotidiano de sua vida: a consciência e a água viva.
Em primeiro lugar, no manancial que o(a) identifica se encontra uma voz que é a voz do seu ser que está crescendo, uma voz que lhe indica o que lhe faz bem, o que lhe ajuda a ser verdadeiro, o que o(a) empurra para a integração e, ao mesmo tempo, o(a) leva a gerar o bem, a veracidade, a integridade...
Isso é a sua consciência.
Por outro lado, nesse manancial se encontra também uma água viva, que é a presença atuante e transfor-mante do próprio Deus, lá no âmago da sua intimidade mais profunda.
Essa dupla descoberta faz você ser capaz de levar a sério a sua vida e dar-se conta de como, na vida mesma, na sua própria vida, está inscrito, no mais fundo do manancial, algo que tem a ver com a solidariedade, algo que se refere à metáfora da “água” e do “poço”: a água não serve para si mesma; é para as outras realidades, para as outras pessoas.
É isso que significa “ser pessoas para os demais”.

Há qualidades que nos identificam: a cor da pele, a altura, a cor dos olhos... o nosso gênero, inclusive a nossa profissão. Mas o manancial nos oferece aquilo que nos faz únicos em meio à caravana humana com a qual caminhamos pela vida.
O que nos faz pessoas únicas são essas forçasno nosso interior que nos tornam capazes de superar os piores momentos das nossas vidas; essas forças que nos tiram das piores trevas e nos devolvem à existên-cia. Essas forças não são as mesmas para todos.
Para algumas pessoas será o desejo de viver e ser livre. Para outras, será o desejo de servir, o amor a alguém, a atenção aos necessitados... Essa combinação de um punhado de qualidades, de potencialidades, de “desejos” é o que fundamentalmente nos faz ser nós mesmos.
Essa experiência do manancial se faz não com idéias, mas vivenciando-a; não porque nosdisseram, mas porque verificamos que, na realidade, essas forças e potencialidades constituem, de fato, o nossomanan-cial. De tal modo que se faltasse alguma dessas forças, ou dinamismo, nós não nos reconheceríamos.
Nossos desejos nos constituem, ou melhor, fazem-nos seres inusitados, distintos, únicos.
Devemos prestar muita atenção à força que os desejos profundos têm na descoberta do nosso manancial.

Texto bíblico:Jo 4,5-42

Na oração: como a samaritana, também diante de nós se
apresenta uma alternativa: continuar buscando água e justificação em poços secos e esgotados ou eleger “vida eterna” e deixar-nos arrastar pela oferta de trans-formação proposta pelo Jesus que nos busca. Eledeseja ampliar nossa existência e comunicar-nos alegria e plenitude. De quê tenho sede? Onde busco saciar minha sede?

segunda-feira, 10 de março de 2014

Mt 17,1-9- A TRANSFIGURAÇÃO NOS HUMANIZA



A TRANSFIGURAÇÃO NOS HUMANIZA

“E foi transfigurado diante deles; o seu rosto brilhou como o sol e suas roupas ficaram brancas como a luz” (Mt 17,2)

O ritmo frenético e estressante da sociedade atual, e sobretudo o culto à novidade, ao efêmero, ao superficial, impedem recuperar a dimensão de profundidade em nossa vida diária. Vivemos mergulhados num contexto caracterizado pelo imediatismo, pragmatismo, interesse e voracidade. Em tal contexto há tanta superficialidade e tanto narcisismo que a vivência da profundidade, do silêncio, da admiração... se tornam estranhos para nós. Tal situação nos des-figura e nos desumaniza.
A festa daTransfiguração vem nos dizer quem somos realmente no nível mais profundo. Ela nos revela nosso verdadeiro ser essenciale nos faz caminhar em direção à nossa própria humanidade.
Ao mesmo tempo, transfigurar é descentrar-nos e expandir-nos na direção do outro.
A Transfiguração possibilita cultivar um “olhar” que sabe ver em profundidade, descobrindo em cada ser humano, para além de suas aparências, um ser transfigurado, porque somos capazes de vê-lo em sua beleza e bondade originais; um olhar que sabe deixar-se impactar por tudo aquilo que nos cerca e é capaz de render-se diante do Mistério.
Tal experiência também nos confere um “olhar contemplativo” que nos faz descobrir que toda realidade já está “transfigurada”. Seguramente reacenderá em nós a capacidade de admiração, de assombro e de contemplação, para ver as pessoas e “todas as coisas criadas” para além do meramente superficial.

O relato da Transfiguração não é crônica de um fato histórico; é, muito mais, a experiência de fé dos discípulos que, com toda certeza, perceberam em Jesus uma “transparência”  ou “profundidade” que os impactou profundamente.
Podemos expressar numa frase o significado do relato: “Jesus é transparência do divino”. Por isso, podemos dizer também que Ele é um homem transfigurado. Jesus viveu constantemente transfigurado.  A transfiguração não foi um fato isolado na vida do Mestre de Nazaré, mas o ‘estado habitual de seu ser’. Não tem sentido pensar que essa plenitude de ser tinha que manifestar-se externamente (até nas vestes) com sinais mirabolantes; não quer dizer que Jesus precisou fazer espetáculo de luz e som pelos montes para provar quem Ele era.
Quê fazia de Jesus um “homem transfigurado?” E em quê se notava? Era sua bondade, sua compaixão, sua autenticidade, sua integridade e coerência, sua liberdade, seu projeto de vida, sua relação com o Pai...Ou seja, o que há de divino em Jesus está em sua humanidade. Sua humanidade e sua divindade se expressavam toda vez que se aproximava das pessoas, especialmente as mais excluídas e sofredoras, ajudando-as a reconstruir a própria humanidade ferida. A única luz que transforma Jesus é a do amor, e só quando manifesta esse amor ilumina. É no humano que Deus se deixa transparecer.

A raiz da mensagem do evangelho de hoje está em apresentar a Jesus como a presença de Deus entre os homens; por isso é preciso escutá-Lo. Sua humanidade levada à plenitude é Palavra definitiva.
Escutar o Filho é transfigurar-sen’Ele e levar uma vida como a sua, ou seja, empapar-nos do “modo” como Ele humanamente viveu e sermos capazes de descobrir a voz de Deus no grito desesperado de cada um dos seres humanos que encontramos em nosso caminhar.
Jesus continua se “transfigurando” na montanha interior de cada um.
Nesse sentido, “subir” ao Tabor implica “descer” em direção à nossa própria humanidade. A Montanha nos “transfigura” , revelando nosso ser essencial.Todos estamos dispostos a “subir”, mas nos custa muito “descer”. Não haverá plenitude de humanidade enquanto os de cima não decidam descer, e os de baixo não renunciem subir passando por cima dos outros.

Este é o desafio: “subir” para “descer”, descer aos duros vales da vida com a luz do evangelho eencon-trar-se com a vida real, com os pobres e sofredores de turno; descer e sentar-se na planície, dialogar, com-partilhar... parapoder acompanhar e curar os que mais sofrem neste mundo, ajudando àqueles que perde-ram o horizonte de sentido em suas vida.
Uma “Igreja do monte” não tem sentido se permanece fechada em si mesma, em seu legalismo, ritualismo, encerrada em seus sonhos de poder e de glória. Os três de cima (Pedro, João e Tiago) precisam descer ao vale obscuro da realidade para conhecer, por experiência real, direta, imediata, a dor real daqueles que vivem nas “periferias existenciais”.
Na “descida comprometida” ouvimos o diálogo de Jesus com seus discípulos. Não permaneceram “acima”, como queria Pedro. O voz do Pai os despertou do sonhoe os colocou a caminho; a exigência da entrega de Jesus os faz descer da montanha e, à medida que se aproximam do vale do drama humano, eles vão crescendo na consciência de sua profunda missão: participação da missão e do caminho de Jesus.

Os visionários do monte pensam que encontraram a Deus, que viram seu mistério; por isso querem per-manecer ali, fazendo três tabernáculos sagrados onde possam descansar para sempre com o Cristo transfi-gurado, sem mergulhar na paixão do mundo, sem passar pela complexidade da história, distanciando-se de todos os problemas deste velho mundo.
Quão fácil é cair na tentação de Pedro! Construir cabanas em um mundo sonhado, fora da realidade, para desfrutar de privilégios egoístas. É fácil seguir o Jesus glorioso, distanciando-se do fazer caminho com Ele junto aos mais sofridos.
No Jesus transfigurado encontramos, portanto, indicações que nos conduzirão a essa descoberta: a vivência do amor, a compaixão, a liberdade, a confiança, a experiência de Deus, a consciência unitária... Uma pessoa transfigurada é uma pessoa profundamente humana. Tudo o que é autenticamente humano é transparência de Deus. Somos todos “pessoas transfiguradas”, mas desconhecemos essa realidade surpreendente.
A transfiguração não é a condição de um “ilumina-do”, mas a realidade de toda pessoa que se desapegou de seu ego, até o ponto de descentrar-se e abrir-se à realidade do outro. Aqui ficam superados os velhos dualismos e as enganosas dicotomias que o divino e o humano se enfrentavam como realidades antagônicas.

Texto bíblico:Mt 17,1-9

Na oração: Há gestos cotidianos que nos ajudam a descobrir em profundidade quem realmente somos: um
abraço, uma mão que se estende, uma escuta atenta, um olhar sereno... São gestos humanizadores que nos recordam que somos seres transfigurados. Essa sensibilidade gestual deixa transparecer a luz que nos habita.Sem dúvida, esta é a linguagem de Deus, não a das palavras, mas a dos gestos, que dão conteúdo a tantas palavras já desgastadas. Ser transfigurado é prolongar e fazer chegar a todos os mil gestos do amor de Deus que nos fazem descobrir irmãos.