segunda-feira, 27 de julho de 2020


nas mãos

SOMOS AS MÃOS DE DEUS

“Os discípulos distribuíram os pães às multidões” (Mt 14,19)

Poderíamos dizer que o relato do Evangelho deste domingo é uma parábola em ação. 
A cena acontece em um “lugar despovoado”, afastado da vida cotidiana organizada segundo o pensamento da sinagoga e a lógica dominadora do império. Sair do centro, ou ser deslocado do centro, pode ser uma vantagem à hora de perceber o que Deus realiza em nossas situações concretas.
Quando Jesus e seus discípulos vão pelo mar, a multidão sai caminhando ansiosamente por terra e os alcança. Jesus é ponto de confluência de todas aquelas fomes, dispersões e diferenças. É o povo pobre das pequenas aldeias que está sofrendo grandes injustiças e muita pobreza. 
De alguma maneira, este “fora” evoca a saída do povo judeu do Egito ao deserto, onde se encontrou com Deus numa experiência que o fará passar de multidão dispersa de escravos a um povo unido e livre.
O povo tomou distância com relação ao seu mundo rotineiro e agora se encontra com Jesus, que encarna a novidade de Deus ao alcance da mão. Também pode ser o “fora” de todos os excluídos da história que se encontram com Jesus, tornando realidade o sonho do Reino: o mundo da igualdade e da comunhão.

Jesus, nos diz o relato, primeiro sente compaixão das multidões, e depois convida a partilhar.
Em contraste com atitude compassiva do Mestreos discípulos, percebendo a hora avançada, pedem que as multidões sejam despedidas para que comprem pão e se alimentem. Esta é a lógica desumanizadora: devolver as pessoas às suas próprias possibilidades limitadas, à escassez e à privação que a sociedade as relegou. Os discípulos são sensíveis à fome do povo empobrecido, mas o deixam à mercê de seus próprios recursos. Não conhecem outra solução.
Jesus abre outra lógica: a da partilha, frente à lógica do mercado, da apropriação e da acumulação.
Os produtos da terra estão situados na lógica do amor, que é a única força transformadora da história. Esta é a utopia do Reino: um povo reunido harmoniosamente pela mesma busca faminta e pela mesma saciedade, onde os alimentos da terra, produzidos com esforço, são compartilhados com todos, sem que ninguém negocie ou acumule. 
Tudo aparece reconciliado: o cosmos, com a natureza verde e em paz; os produtos do trabalho humano, da generosidade do mar e da terra; e as pessoas, em uma relação entre elas mesmas e com Deus sem exclusões, competições nem privilégios. Isto é possível porque todos se deixaram afetar pelo dom do mesmo Reino que cresce já no coração de todos.
Só será efetiva a nova comunidade quando pães e peixes entrarem na lógica do Reino. Sem oferecer o próprio pão, os próprios recursos, a própria pessoa, não há possibilidade de construção do Reino de Deus.
Jesus não pediu a Deus que solucionasse o problema da fome, e sim, mobilizou os seus discípulos para que encontrassem uma saída diante daquela penúria. E a saída está na capacidade de partilha de todos.

Também aqui é preciso “ouvidos” e “olhos” bem abertos para encontrar a chave de compreensão da cena. Há um risco de permanecermos na superfície do relato, assombrando-nos com o prodígio da “multiplica-ção dos pães”. Na realidade, não foram os pães que “se multiplicaram”, mas a generosidade da partilha do alimento.
certo é que, tudo o que as pessoas tinham, foi colocado à disposição de todos. Esta atitude desencadeia o prodígio: a generosidade se contagia e realiza o “milagre”. Quando se deixa de monopolizar os bens, eles chegam a todos. Quando os bens imprescindíveis para a vida são monopolizados, provoca-se a miséria, a fome, e a morte. Na intenção do evangelista, Jesus demonstra, deste modo, que o problema não é a carência de recursos, mas a falta de solidariedade. 
Realmente foi um verdadeiro “milagre” que um grupo tão numeroso de pessoas compartilhassem tudo o que tinham até conseguir que ninguém ficasse com fome. Porque o texto não fala de “multiplicar” o alimento, mas de “dividi-lo”: quando ele é partilhado, costuma sobrar.
Que acontece com os pães e os peixes nas mãos de Jesus? Não os “multiplica”. Primeiro, bendiz a Deus e lhe dá graças: aqueles alimentos vem das mãos de Deus: são para todos. 
A dinâmica normal da vida nos diz que o “pão”, indispensável para a vida, deve ser adquirido com dinheiro, porque alguém o monopoliza e não o deixa chegar ao seu destino, a não ser cumprindo algumas condições que, aquele que monopolizou,impõe: o “preço”. 
O que Jesus faz é livrar o pão desse monopólio injusto. O olhar voltado para o céu e a benção são o reconhecimento de que Deus é o único dono do pão e que a Ele é preciso agradecer este dom. Liberado do monopólio, o pão, imprescindível para a vida, chega a todos sem ter que pagar um preço por ele.

Em seguida, Jesus, com suas mãos solidárias, vai partindo os dons e entregando-os aos discípulos. Estes, por sua vez, prolongam as mãos de Jesus, e vão distribuindo os pães e peixes à multidão; estes alimentos vão passando de mãos e mãos, de uns aos outros. Assim, todos puderam saciar sua fome.

A multidão dispersa, transformada pelo encontro com Jesus, já é capaz de sentar-se em grupos ordenados sobre a relva, iguais, sem divisão em hierarquias, que costuma criar fissuras na comunhão. Jesus pede que todos se assentem sobre a relva para celebrar uma grande refeição. Rapidamente, tudo muda. Aqueles que estavam a ponto de se separar para saciar sua fome em sua própria aldeia, se assentam juntos em torno a Jesus, para partilhar o pouco que tem. 
Os que tinham algo para comer também foram repartindo com os outros. Na realidade, o verdadeiro milagre foi o da partilha, onde as pessoas famintas não se lançam vorazmente sobre os pães numa luta para conseguir os alimentos escassos. Compartilhar gratuitamente com os outros, com desconhecidos, e não acumular o que sobra, isso sim é milagre.
Em cada migalha de pão, em cada pedaço de peixe, há uma história de amores e trabalhos que vão passando de mão em mão, sem cobiça devoradora. Os bens deste mundo, carregando dentro uma vocação fraterna e universal, são dons para todos.
Nesta refeição de todo o povo sobre o campo verde não se discrimina ninguém, não se pergunta a ninguém pelo seu passado, sua profissão ou sua situação moral. Todos são acolhidos como expressão das entranhas compassivas de Deus, que chama todos a compartilhar na Sua Grande Mesa festiva. Todos se sentem pessoas dignas e amadas. É a grande refeição da inclusão de todos.
Algo inaudito está começando nesse povo com a chegada de Jesus. No Reino de Deus só há uma Mesa, à qual todos sãoconvidados, sem discriminação sem exclusão de nenhum tipo.
É assim que Jesus quer ver a nova comunidade humana.

  Temos nas mãos e no coração a opção de viver “em chave desumanizadora” (“despede as multidões!”ou “em chave de benção” (“os discípulos distribuíram os pães às multidões”)descobrindo na vida, para além de sua fragilidade, a presença que fazia Jesus estremecer-se de compaixão quando sentia a dura situação dos prediletos do Pai.
Assim quis Deus que nossas mãos fossem a pre-sença e o sinal de Suas mãos criadoras, que aco-lhem e cuidam da mãe Terra e da vida das pessoas. Somos as mãos de Deus, não só para alimentar, mas para acariciar e curar, para cuidar do planeta terra, nossa casa, para multiplicar vida...

Texto bíblico Mt 14,13-21

Na oração: quais são as duras situações das pessoas
            do mundo atual que fazem emergir novamen-te o apelo de Jesus: “Dai-lhes vós mesmos de comer”.
Deus torna visível suas mãos através de nossas mãos abertas e que compartilham. Onde você percebe que pode ser a mão bendita de Deus que atua em favor da vida?
Quando ouvimos em nossas eucaristias o grito de Jesus: “Dai-lhes vós mesmos de comer”?
Nós, depois de anos seguindo a Jesus, o quê somos capazes de partilhar?

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Quando o tesouro e a pérola nos encontram




 “Cheio de alegria, ele vai, vende todos os seus bens e compra aquele campo” (Mt 13,44)

As parábolas são uma expressão de surpresa diante da vida, que nos ultrapassa sempre, fazendo-nos capazes de pensar de um modo diferente, captar o outro lado da realidade concreta e abrir-nos à dimensão da transcendência. Dessa forma, elas recolhem e des-velam a vida real dos homens e mulheres de cada tempo, movendo-os a assumir uma atitude mais aberta e mais comprometida com a situação onde estão envolvidos. Isso significa acolher o dom e a missão do Reino.
Em geral, as parábolas evocam experiências desconcertantes e em quase todas elas se revela um dinamis-mo que rompe os esquemas “normais” da vida, conduzindo o ouvinte (ou leitor) a um outro patamar, mais inspirador e desafiante. Elas removem a vida, arrancando-a da “normose” (normalidade doentia) e despertando outros recursos internos, que não foram ainda mobilizados. Assim, esta mesma vida, começa a adquirir um outro sabor e um outro sentido.
O Evangelho deste domingo recolhe duas pequenas parábolas fulgurantes de Jesus: uma do tesouro e outra da pérola. São relatos de uma enorme eficácia. Elas nos situam frente a uma experiência desencade-ante de vida, frente à surpresa de Deus, e assim expõem e põem em marcha o caminho do Reino. Elas também nos situam diante da máxima riqueza e exigem, ao mesmo tempo, o maior desprendimento.
São imagens que pedem radicalidade, ou seja, “vender tudo” para adquirir o tesouro ou a pérola.
Mas, quase não percebemos que há um passo prévio: a descoberta, a iluminação interior, o ver clara-mente. Tanto o caminhante pelos campos como o comerciante de pérolas, vendem tudo porque se conven-ceram de que o investimento valia a pena.

Nestas duas pequenas parábolas, são apresentadas duas opções para que cada qual possa identificar-se: ou é aquele que encontra inesperadamente o tesouro e compra o campo, ou é aquele que tem a vocação de comerciante e percorre o mundo procurando pérolas preciosas.
Uns serão aqueles que vão passear, deixando-se surpreender pela vida e pelos acontecimentos, sem perder a capacidade de assombro, de entusiasmo, de admiração. A pessoa de nossa parábola, ao ser encontrada pelo tesouro, “sai” de si para vender quanto tem, procura o proprietário e compra aquele campo. Mas também percebemos que faz tudo isso a partir de dentro, como se houvesse conectado com algo pessoal e íntimo, que lhe permite “sair” do mais profundo de si mesmo. E esse duplo movimento é carregado de uma plenificante alegria.
Outros serão de mentalidade “comercial”: encantam-lhes a aventura, a busca, a estratégia. Não nasceram para estar quietos, nem para se conformar com boas e bonitas pérolas. O específico seu é continuar viajando e buscando sempre a pérola maior até encontrá-la. E quando a encontram, compram-na, e continuam buscando sempre. Porque isso é próprio de um comerciante: apostar, comprar, vender, às vezes ganhar, outras vezes perder... A pérola também sai ao encontro daquele que busca.
A decisão e o risco que assumiram, tanto o comerciante de pérolas quanto o nosso caminhante pelos campos, mudaram suas vidas. O tesouro e a pérola continuarão sendo valiosos, quer eles vivam com fidelidade e paixão ou não. O que os transforma não é o tesouro ou a pérola em si, mas a atitude e a decisão que tomam, atraídos por eles. É um tesouro e uma pérola que exigem uma transformação do antigo e conhecido passado para um novo e desconhecido futuro.
Quando a pessoa se fecha às surpresas da vida, ou quando deixa de esperar algo bom e precioso, ela se invalida para ser descobridora de tesouros ou buscadora de pérolas.

Para deixar-nos encontrar pelo tesouro e pela pérola é preciso deslumbrar-nos, fascinar-nos, encantar-nos, apaixonar-nos. Parece simples, mas é muito aberto e evocador. “Aquilo pelo qual nos encantamos mobili-za nossa imaginação e acaba por deixar sua marca em tudo”, dizia Pe. Pedro Arrupe.
E como encantar-nos? Não é só questão de vontade, mas de viver com os olhos abertos, atento à realida-de, externa e interna, ser poroso para que nos deixemos encontrar pela pérola preciosa e pelo tesouro escondido; diante deste surpresa, não poderemos deixar de ficar fascinados.
E então, sim, estaremos dispostos a queimar barcos, vender tudo, dar o salto. Talvez nosso maior proble-ma é que, na realidade, o que nos interessa são nossas posses, poder, objetos, apegos à auto-imagem e não descobrimos ainda o tesouro escondido e a pérola fina, que não estão distantes de nós; pelo contrário, encontram-se no mais profundo de nós mesmos.
“Descer” ao chão de nossa interioridade é a oportunidade para descobrir regiões novas e novos horizon-


tes, para conhecer o reino interior, para encontrar a riqueza interior e assim experimentar a transformação.
O caminho para uma nova qualidade de vida passa pela “descida” aos campos de nosso coração.
Isso requer coragem para passar por todas as regiões, mesmo as sombrias, e chegar ao mais profundo. Mas essa descida nos possibilita descobrir um mundo diferente que não conhecíamos, ou que havíamos perdido. Lá no fundo, encontra-se um bem precioso que podemos levar conosco, que nos ajuda em nosso caminho e que nos faz totalmente originais e criativos.

É preciso “descer” até o fundo para descobrirmos uma nova riqueza para a nossa vida; é “descendo” que poderemos revitalizar a vida que se tornara vazia e ressequida.
Trata-se de despertarmos, de escavarmos, de avançarmos em direção ao “veio de ouro” e de sabermos que este não é nossa propriedade; ele nos é oferecido como dom. Não basta falar de “pedra preciosa”, é também necessário “escavar” nosso “chão interior”, alargar nosso coração, garimpar em direção às riquezas que estão no eu mais profundo, assim como o “fio de ouro” no meio dos cascalhos.
Cada um de nós possui uma fonte inesgotável de qualidades-habilidades; podemos dizer: “somos um presente”, um valor para os outros. A vida sempre está oculta nas profundezas. A pessoa superficial é aquela que se confunde com suas ideias, coisas... A pessoa do “eu profundo” é aquela que vive a partir da raiz, da fonte mesma da vida, e deixa vir à tona todas as suas riquezas, dons, capacidades...
É no coração que existem, em abundância, os aspectos positivos de nossa personalidade, os talentos naturais e as boas tendências. Aí se aninham imensas riquezas que se exprimem de maneira diferente, dando a cada um, uma fisionomia própria, um caráter único.
Esta região profunda coincide com o mundo das certezas, dos valores, das ideias-força... que formam o eixo da nossa existência, o melhor de nós, o lugar de nossa recuperação e de nossa realização, o positivo que nos solicita continuamente a nos tornar o que devemos ser.

A força da transformação, portanto, nós não a encontramos na superfície ou distante de nós, mas sim, nas profundezas. Para ter acesso à riqueza no interior de nós mesmos, podemos imitar, simbolicamente, os hábitos dos pescadores de certo atol do Pacífico. Eles vivem pauperrimamente sobre uma terra desprovida de vegetação e açoitada pelos ventos; mas o fundo do seu mar é muito rico em pérolas.
Desenvolveram aí aptidões excepcionais para o mergulho; descem sem qualquer aparelho, ao fundo do mar, localizam as pérolas, arrancam-nas, trazem-nas para a superfície, atiram-nas no barco, para depois mergulharem de novo.
Este é o caminho da verdadeira espiritualidade: “descer até o fundo, mergulhar no oceano interior onde estão escondidas as pérolas que dão significado e sentido às nossas vidas.
Encantados com a descoberta, trazê-las à tona e colocá-las a serviço dos outros, multiplicando-as.

Textos bíblicos:  Mt. 13,44-52  

Na oração:  Para realizar-te e desenvolver toda a tua potencialidade,
                     busca, na oração, cavar mais profundamente, até atingir as raízes de teu ser, o núcleo original de tua personalidade.
- Olha no profundo de teu coração, olha no íntimo de ti mesmo, e pergunta: “tenho um coração que deseja o maior (“magis”) ou um coração adormecido pelas coisas? Meu coração conserva a inquietude da busca ou deixa-se sufocar pelos apegos, que acabam por atrofiar-me?”

segunda-feira, 13 de julho de 2020

ACEITAR O JOIO NOS HUMANIZA




“Deixai crescer um e outro até a colheita!” (Mt 13,30)

Jesus costumava contar parábolas com frequência e as pessoas gostavam de ouvi-lo; suas parábolas, brotavam do chão da vida, estavam carregadas de vida e comprometiam as pessoas a viverem de um modo diferente, deixando-se inspirar por Aquele que é Fonte da Vida. Como relatos instigantes, as parábolas faziam emergir uma nova imagem de Deus e uma nova imagem do ser humano.
Sabemos que as imagens, que cada um guarda em seu interior, tem um peso e marcam a vida: elas podem fazer adoecer ou ativar uma vida sadia, podem alimentar medos ou despertar coragem, podem estreitar a vida ou expandi-la.... Todos temos experiências das funestas consequências das falsas imagens de Deus, que acabam alimentando, em cada um, uma auto-imagem atrofiada e paralisante. Jesus, com suas parábolas provocativas, desejava quebrar tais imagens nocivas e substitui-las por outras saudáveis.
Para isso, Ele usa uma pedagogia para nos provocar e dirigir nossa atenção para algo específico, que nos inquieta: quando nos sentimos incomodados com Suas imagens, isso significa que estamos sendo confronta-dos com imagens falsas de Deus e de nós mesmos, petrificadas em nosso interior. Algum aspecto nosso, que até então havia permanecido na sombra, é iluminado; agora somos capazes de nos ver de modo dife-rente. Essa transformação interior, de nossa visão e de nossos sentimentos, não pode ser alcançada por meio de meras palavras de ensinamento. Para isso, precisamos da arte das parábolas, pois elas des-velam, põem às claras, situações e modos fechados de viver, visões distorcidas, falsas verdades, ideias atrofiadas, crenças vazias..., que nos dão uma sensação de segurança e temos resistências em abrir mão de tudo isso.

Como muitas outras parábolas, também a do “joio e do trigo” é um relato provocativo. Não só porque parece ir contra o “senso comum”, que aconselha arrancar o joio que impede o crescimento do trigo, mas porque é também uma resposta às críticas que o próprio Jesus recebia por sua atitude com relação àqueles que a religião tinha excluído. Não em vão Ele foi acusado de ser “amigo de publicanos e pecadores”.
Por outro lado, a parábola pode deixar transparecer as inquietações da comunidade de Mateus, preocupada por separar com clareza os “bons discípulos” daqueles que não eram. Como tantos grupos humanos, a tentação é marcar uma linha divisória, entre o “trigo” e o “joio”. Essa separação, no interior da comunidade cristã, acaba se projetando nas relações sociais, políticas, econômicas, culturais..., criando “muros” e “fronteiras” que esvaziam o processo de humanização.
Pois bem, seja porque se refira à vida histórica de Jesus, seja porque se tenha adaptado para responder a alguma polêmica comunitária posterior, o certo é que a mensagem da parábola não deixa lugar a dúvidas: “deixai crescer um e outro até a colheita!”.

Por isso, a atitude sábia de deixar o “trigo e o joio crescerem juntos”, nos remete precisamente ao que temos de fazer com o nosso próprio “joio”: aceitá-lo, acolhê-lo, integrá-lo, reconhecê-lo como nosso, sem reduzir-nos a ele e sem nos deixar determinar por ele. Tal atitude implica um crescimento em integração e em humildade. Por mais estranho que pareça, a aceitação do “joio” nos humaniza, pois nos faz descer de nosso pedestal egóico – feito de exigência, perfeccionismo e de complexo de superioridade – e aproximar-nos de nosso ser verdadeiro.
Quanto mais nós nos conhecemos e conhecemos o Sol que nos habita (Deus), mais nos integramos e mais nos humanizamos.
Humanizar-se, não no sentido de ser mais virtuoso, brilhante, bem-sucedido, perfeccionista... Humanizar-se é também a capacidade de acolher-se frágil, vulnerável e, ao mesmo tempo, ativar o vigor, ser criativo, resistir, poder traçar caminhos... Fazer a síntese entre ternura e vigor.
Não pretendamos, pois, arrancar o joio; demonstremos com nossa vida que, ser trigo, é mais humano.

Nossa vida está repleta da graça divina. Vivemos mergulhados na Graça que nos santifica.
Ser santo(a) é viver em plenitude nossa humanidade. É aprender a descobrir e a redescobrir a “presença de Deus em tudo e tudo em Deus” (S. Inácio).
Já foi dito que o ser humano nunca é tão grande como quando sabe reconhecer e aceitar sua fragilidade, sua limitação...  Reconhecer e aceitar sua própria “humanidade”, diante de Deus e dos outros, significa percorrer um caminho em direção a uma visão positiva, madura e profunda de si mesmo.
Com isso, já não desperdiçamos as nossas energias para tentar, inutilmente, afastar de nós algo que faz parte de nossa vida e que devemos aprender a integrar, a preencher de sentido, a transformar...
Às vezes, no mal que queremos extirpar, há um bem que não sabemos descobrir.

Com efeito, temos sempre a tentação de querer extirpar logo e totalmente o “joio” do nosso coração, arriscando-nos a arrancar com ele, pela raiz, os germes do bem que estão crescendo com dificuldade e que exigem uma atitude muito diferente, isto é, paciência e delicadeza, capacidade de intuição e clarividência, disponibilidade para alimentar uma sadia tolerância para conosco.
Todo este processo de integração interior se faz visível na integração com os outros com quem convivemos.

Parece claro que, nós seres humanos, ficamos incomodados com o “diferente”, com aquele que sente, pensa e crê de outra maneira. Se a isso agregamos a necessidade de “ter razão”, característica do ego, pode-ríamos explicar a origem de tantas intolerâncias, fanatismos, juízos, processos inquisitoriais e condenações... Tanto as religiões, como os grupos sociais, insistem em ter tudo bem clarificado e estabelecido, para evitar sobressaltos. Detrás de tudo isso, o que se busca é assegurar a sobrevivência e defender-se da ameaça da insegurança ou da necessidade de mudanças. Sair das próprias posições e convicções, no campo religioso, social, político, cultural...é, para muitos, um processo doloroso.
A parábola que estamos comentando (joio e trigo) é um chamado à tolerância e à paciência. A virtude da tolerância não é sinônimo de “bonzinho amorfo”, nem constitui um relativismo suicida. Tolerância é respeito e valorização da pessoa, acima das diferenças, acima das atitudes contrárias e inclusive, segundo Jesus, frente às agressões recebidas: “Amai vossos inimigos e orai por aqueles que vos perseguem”.

A personalidade fanática tende a ver a realidade dividida completamente em duas: tudo é branco ou preto, verdadeiro ou falso, bom ou mau, “trigo e joio”; para ela, não existem outras tonalidades. Por isso, ela se converte em juiz implacável que “salva” ou “condena”, assume atitudes fascistas ou nazistas, com a ilusão da raça pura, da ideologia pura, da religião pura...
Niels Bohr, um dos grandes iniciadores da física quântica, afirmou que “o oposto de uma verdade profunda pode ser também outra verdade profunda”. E para ele não se tratava de uma crença ou de uma opinião pessoal, mas de uma constatação, fruto de seus experimentos com partículas sub-atômicas.
Há um fato inegável: ninguém é igual a outro, todos temos algo que nos diferencia. Por isso existe a biodiversidade, milhões de formas de vida. O mesmo e mais profundamente vale para o nível humano. Aqui as diferenças mostram a riqueza da única e mesma humanidade. Podemos ser humanos de muitas formas e devemos ser tolerantes, como toda a realida-de é tolerante. A intolerância será sempre um desvio e uma patologia e assim deve ser considerada.

Texto bíblico:  Mt 13,24-43

Na oração: O rigorismo não faz parte do caminho
                  da Graça; o caminho da graça se chama compreensão e tolerância. A melhor resposta é dar a oportunidade para que o trigo amadureça; a melhor solução é abrir possibilidade para que o joio seja transformado. É questão de saber esperar. E disso, o amor é especialista.
- Frente ao “joio” presente em seu interior, que atitudes assume: auto-julgamento? moralismo? intransigência?
- E frente ao “outro”, que “pensa, sente e ama de maneira diferente”, como você se situa?