quarta-feira, 31 de julho de 2013

LC 12,13-21. Evangelho de domingo 04/08/13


“Há coisas que são mentira, mas que aparecem

                              como verdade; aí se enraíza seu atrativo”.

 

“... a vida de um homem não consiste na abundância de bens” (Lc. 12,15)

 

Sabemos da perene e escorregadia tentação – uma mentira perigosa que aparece como verdade-  de solu-cionar as inseguranças e medos de nosso eu através dos impulsos à cobiça que se aninham em nosso coração. Para Jesus Cristo, a primeira e maior tentação do coração humano é a “cobiça de riqueza”.

Uma vez preso à cobiça, o ser humano caminha, irremediavelmente, para a solidão, para o auto-centramento e desprezo dos outros.

Na parábola de hoje, o rico fazendeiro, no seu monólogo, revela o seu ideal de vida: vida longa, vida assegurada... Em seu horizonte de vida uma terrível solidão: parece não ter esposa, filhos, ou amigos. Não pensa nos camponeses que trabalham em suas terras. Seus verbos preferidos: acumular, armazenar e aumentar seu bem-estar material. Só se preocupa em “amassar riquezas para si”; todo o relato insiste no uso dos pronomes possessivos: minha colheita, meus celeiros, meus bens, minha vida... Ele não se dá conta de que vive fechado em si mesmo, prisioneiro de uma lógica que o desumaniza, esvaziando-o de toda dignidade. Aumenta seus celeiros, mas não sabe ampliar o horizonte de sua vida.

Aumenta sua riqueza, mas diminui e empobrece sua vida. Acumula bens, mas não conhece a amizade, o amor generoso, a alegria e a solidariedade. Não sabe compartilhar, só monopolizar.

Quê há de humano neste tipo de vida? A vida deste rico é um fracasso e uma insensatez, pois sua falsa segurança na posse dos bens vem abaixo. Quem vive centrado  em si mesmo, perde a vida; quem vive para o eu, não é rico diante de Deus.

 

Podemos dizer que o coração do ser humano é feito de “matéria nobre” e de profundas “ carências existenciais”.  Sua matéria nobre lhe vem de sua capacidade de amar, de sua disposição à comunhão e partilha, de sua abertura à transcendência. Não esqueçamos que o ser humano é imagem de Deus...

Suas “carências” provém de sua limitação criatural, e também de seu pecado. Esses “carências” do coração tomam o nome de insegurança, temor, desconfiança, medo do futuro, da morte...

Quê saída buscar diante da ferida existencial, da insegurança do próprio eu, da indigência do coração?...

Para muitos, o que acalma e apaga essa angústia existencial é a riqueza. Ao se cercarem de muitos bens (sejam materiais, como dinheiro, posses... ou espirituais, como as qualidades pessoais e os saberes), acaba-se toda insegurança, todo medo, qualquer tipo de angústia. Trata-se de um engano nada evidente.

O mal radical está, portanto, na “insaciável cobiça do coração pervertido”.

O engano acontece quando o coração se apega “pulsionalmente” às riquezas até depender delas; nesse caso, elas deixam de ser mediações do Reino para se converter em ídolos do próprio coração. Delas se espera a salvação, e não dos outros e nem de Deus.

 

O “afeto desordenado” às riquezas se apresenta não somente como problema ético, mas também como problema de fé. A fidelidade ao Deus único fica interditada e o seguimento de Jesus fica fragilizado.

Como todo ídolo, a “riqueza” provoca o fascínio, a adoração e as identificações mais perniciosas.

O apego aos “bens”  apresenta-se como uma das tentações mais poderosas para todo seguidor de Jesus.

A busca da própria segurança é a base da tentação pela “riqueza”.

De fato, o apego idolátrico aos bens tem suas raízes fundadas no pânico produzido pela insegurança.

O dinheiro, os bens, as posses apresentam-se, então, como solo firme sob nossos pés.

Mais ainda: a riqueza é algo mais do que solo firme e apoio; é carapaça protetora, é um objeto interno, corpo do corpo, ou coisa com a “qualidade do eu”. A dinâmica acumulativa, possessiva, própria do apego aos bens, possui toda a força do narcisismo e da auto-afirmação infantil.

Temos medo de “perder pé”; por isso, com a riqueza pensamos agradar e robustecer nosso ego.

Além disso, a riqueza tem um caráter “pegajoso”, possui uma sinistra aderência que, na medida em que mais se fixa, maior vai sendo sua força para atrair novas necessidades.

Finalmente, acaba-se por criar uma dura cortiça que defende e isola a pessoa do entorno e que a aliena numa insensibilidade para com tudo aquilo que não seja sua própria realidade.

 

É uma espécie de "embriaguez" na qual a alteridade desaparece.

A consequência mais lógica numa pessoa que se habitua a ter tudo ou querer tudo, é que ela chega a bastar-se a si mesma, desprezando ou desvalorizando os outros, inclusive a própria graça do Senhor.

A raiz de tudo é uma profunda auto-suficiência, que, sem dar-se conta, leva-a a considerar-se forte porque tem tudo.

No amor “perverso” aos bens e riquezas, não se trata já de “ter algo”, mas de “ter-se a si mesmo” numa tendência de orientação marcadamente centralizadora. A pessoa fecha-se sobre si mesma, rompendo todo impulso em direção aos outros, pensando conquistar uma segurança. Mas, na realidade, a pessoa está se situando na posição mais insegura que se possa imaginar, pois “se sou o que tenho e o que tenho se perde, então quem sou?” (E. Fromm).

 

O problema da relação com as riquezas se intensifica se levamos em consideração que, junto a estes fatores pessoais, é preciso acrescentar a influência e a determinação tão fundamental que vem do meio ambiente sócio-cultural. Nosso desejo não é alheio, certamente, às dinâmicas culturais nas quais este necessariamente se desenvolve, cresce e pode encontrar seus objetos de satisfação.

Por isso,  a dinâmica econômica de nossos dias deve ser levada muito em conta à hora de compreender as vias pelas quais circulam nossos vínculos com o dinheiro.

A armadilha de nossa sociedade de consumo está em que não descobrimos que quanto maior capacidade temos de satisfazer necessidades, maior número de novas necessidades nós criamos; e isso, sem possibili-dade alguma de marcar um limite.

 

Na criação da nova comunidade dos seguidores de Jesus, o compartilhar substitui a acumulação e se apresenta como alternativa àquilo que a sociedade de consumo impõe; aqui está configurada uma das propostas mestras na proclamação do Reino de Deus.

Contra a tendência a querer apropriar-se de tudo como busca de segurança e como defesa hostil diante do outros, Jesus nos convida a compartilhar, como abertura aos outros e como possibilidade para a criação da “nova comunidade” como alternativa às relações interpessoais de opressão e exclusão.

Na partilha, a primitiva tendência egoísta e agressiva dá lugar a uma atitude aberta, acolhedora e bene-volente frente ao outro. Além disso, onde há partilha, há superabundância (Mc. 6,30-46).


Texto bíblico:   Lc. 12,13-21

 

Na oração: “quê paixão move o meu coração? meu coração

                        está livre?; meus afetos estão ordenados?”

Temos muitas atitudes, posses, idéias, cargos, posições, bens... que consideramos como Vontade de Deus; na realidade é tudo “projeção” de nossos desejos, de nossa vontade, de nós mesmos...

Quê “apegos” estão travando minha vida e impedindo-me aderir a Cristo incondicionalmente?

 

 

quarta-feira, 24 de julho de 2013

PAI NOSSO- Lc-11,1-13.


PAI-NOSSO: um desejo que é oração, uma oração que é desejo

 

“Um dia, num certo lugar, estava Jesus a orar” (Lc. 11,1)

 

Na convivência com os “escolhidos seus” Jesus foi transparente e presença marcante. Chamou-os para “ficar com Ele”,  aprender d’Ele a serem testemunhas de seu Amor incondicional ao Pai e aos irmãos.

Entre os inúmeros desejos e aspirações que Jesus suscitou, uma foi a grande aventura de aprender a orar.

Jesus orava. Orava só, orava com a multidão, e orava com os discípulos.

Às vezes no templo, outras vezes nas caminhadas da Galiléia a Jerusalém, sempre orava a realidade iluminada pelo Projeto do Pai: mergulho íntimo e comprometedor.

S. Lucas nos revela que Jesus estava rezando num lugar solitário, afastado. O Pai-Nosso é oração de intimidade que só pode brotar do coração de Jesus num diálogo muito pessoal, filial, com o Pai.

Não é difícil reviver a cena do Evangelho: Jesus orando e os discípulos contemplando o Mestre em oração

 

Esta prática do Mestre exercia sobre os discípulos um fascínio e um desejo de entrar por este caminho, totalmente novo. Na espontaneidade de aprendiz, um deles expressou o desejo do grupo e pediu:

                        “Senhor, ensina-nos a orar, como João ensinou a seus discípulos”.

Os discípulos não perturbam a oração de Jesus, nem se aproximam d’Ele. Só quando Ele termina de orar é que alguém toma coragem para dirigir-lhe a palavra e fazer-lhe um pedido.

Eles, acostumados a viver com Jesus, sentiam que não sabiam orar, que não conseguiam concentrar-se no amor infinito de Deus, entrar no diálogo silencioso com o Pai, de Quem Jesus tanto lhes falava.

É este desejo de conhecer o Pai que anima os discípulos a pedirem para aprender a orar.

 

Ensina-nos a orar...”: é um pedido carregado de humildade, de afeto e de simplicidade.

Pedir a Jesus que ensine a orar significa descobrir o caminho a fim de sentir Deus como Alguém que ama; ter uma experiência nova do Deus da História.

Os discípulos querem descobrir o segredo da confiança e do abandono; querem amar e não ter medo de Deus, já que o encontro de Jesus com o Pai comunica paz, tranquilidade, entrega...

Os discípulos querem que Jesus rompa o véu de sua intimidade com o Pai e que lhes diga o que Ele dizia ao Pai em seus longos silêncios, em suas noites passadas na intimidade do mistério de Deus, sem sentir o cansaço de um dia de trabalho e de luta.

Aprender a orar, para eles, não significava técnicas ou métodos, mas ouvir a experiência de Jesus orante.

 

...como João ensinou a seus discípulos”: no tempo de Jesus, os diversos grupos se distinguiam se-

                                                                          gundo suas formas e normas particulares de oração.

A oração tinha a função de uma espécie de “credo” que conferia unidade e identidade ao grupo.

Os discípulos pedem a Jesus uma oração que será o seu sinal distintivo, porque ela exprimirá seus mais ardentes desejos.

O pedido “ensina-nos a orar” equivale a dizer: “dê-nos o resumo de tua mensagem!”.

Com efeito, o Pai-Nosso é a mais clara e mais expressiva síntese que temos da mensagem de Jesus.

Ao rezar o Pai-Nosso vamos percebendo que Jesus transforma todas as nossas questões em desejos e nossos desejos em oração. Tudo está dito nesta oração, mas tudo resta a viver.

E realizar todos estes desejos que exprime o Pai-Nosso é nos tornar o que somos, é nos tornar realmente humanos e realmente divinos. É tornarmo-nos os filhos de Deus que somos.

 

A oração do Pai-Nosso integra os extremos: é singela e complexa, calma e incendiária, inofensiva e desafiadora. Jamais palavras tão simples tiveram tanta profundidade. Jamais um texto tão pequeno foi tão revolucionário. Essa oração é dirigida a todo ser humano, de qualquer raça, cultura, religião, mas em especial aos que tem coragem para se esvaziar e se tornar eternos aprendizes, aos que procuram a sere-nidade e a mansidão, aos tem sede e fome de justiça, aos que querem construir uma nova sociedade.

Nessa oração, nenhum ser humano foi excluído, nenhum errante foi rejeitado, nenhum sacrifício foi pedido, nenhum dogma proclamado, nenhuma lei estabelecida.

A oração do Pai-nosso implode temores e provoca amores. Ela é instigadora e provocativa, que nos liberta do cárcere da rotina, resgata-nos do entorpecimento e nos dá um choque de lucidez: a consciência de que somos conduzidos por uma presença amorosa e cuidadora.

Não se pode rezar de qualquer jeito e com qualquer disposição a oração que o Senhor nos ensinou.

O Pai-Nosso não é uma fórmula a ser decorada, mas um projeto de vida cujas atitudes levam a uma assimilação progressiva da filiação  e da fraternidade.

 

Jesus ensinava com a vida uma nova maneira de comunicar-se com o Pai.

O novo está justamente no modo como as pessoas se relacionam com Deus: “Quando orardes, dizei: Pai!”

Os seguidores de Jesus entram em diálogo com Deus chamando-o “Abba, Pai!”. É uma relação nova e inédita.

É o Espírito Santo quem põe nos lábios do cristão a invocação que só Jesus tinha usado em sua oração.

Ou, mais exatamente, é o Espírito Santo que reza no cristão com as mesmas palavras de Jesus (Gal. 4,6).

O Pai-Nosso é a prece de Deus em nós. Dizer o Pai-Nosso é uma maneira de harmonizar nosso desejo, ainda disperso e superficial, com o desejo de Deus em nós; é entrar em sintonia com Vontade do Pai.

A oração nasce espontânea no coração de quem busca o Senhor, mas também é uma arte de diálogo com o Absoluto, que se aprende lentamente: “A oração é a arte de amar” (S. Teresa de Jesus). A vida transforma-se numa atitude de oração, onde tudo nos une ao Senhor e tudo vem dela como força e vida.

 

Com o Pai-Nosso estamos diante do segredo de Jesus comunicado aos discípulos.

Jesus ensina a orar, orando. Ele faz junto com os discípulos uma trajetória de oração; não só apontou o caminho, mas fez o caminho com eles. Conhecer sua oração é entrar no próprio movimento de seu desejo e, de certa maneira, participar de sua vida íntima e de seu espírito.

E o desejo que Ele expressa no Pai-Nosso nos revela um ser humano habitado por um “desejo infinito” que só o Infinito pode preencher. De fato, é preciso integrar em nós todas as dimensões do ser humano (corporal, psicológica, espiritual). O desejo se enraíza em nosso corpo, atravessa nossa memória, afeta nosso psiquismo e se abre à Transcendência.

O Pai-Nosso expressa bem estas dimensões do desejo porque manifesta o desejo do alimento, o desejo de liberdade, o ser capaz de perdoar, o desejo de ser libertado do sofrimento, de não se deixar levar pela força do mal, o desejo de que reine em nós um outro espírito, que reine em nós outra coisa que não o nosso passado... Todos estes desejos se expressam e se enraízam na humanidade de Cristo.

 

É desta maneira que iremos nos aproximar do Pai-Nosso. Como ser hu-mano que somos temos um desejo que habita o mais íntimo de nós mes-mos. É o desejo do Todo Outro que se chama prece. “Minha prece é meu desejo, meu desejo é minha prece” (S. Agostinho).

Orar é revelar que é possível ao ser humano desejar o impossível.

O desejo expresso no Pai-Nosso é um desejo que nos habita e desse desejo participa toda a humanidade.

 

Texto bíblico:   Lc. 11,1-13

 

Na oração: Rezar o Pai-Nosso utilizando o Segundo modo de orar, proposto por S. Inácio, ou seja

“Contemplar o significado de cada palavra da oração”

- Dizer palavra por palavra. Ex: Pai-Nosso.

- Considerar esta palavra enquanto encontrar significados, sentidos novos, comparações, gosto e consolação,

  em considerações relacionadas com a mesma, sem se preocupar em passar adiante.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Marta ou Maria?


QUANDO AS “COISAS” IMPEDEM A ESCUTA... E O ENCONTRO

 

“Marta, Marta, tu te inquietas e te agitas por muitas coisas” (Lc. 10,41)

 

Jesus, pobre e sem casa, está sempre a caminho, em busca de uma “casa” verdadeira, de um coração que o escute; até parece que Ele, peregrino que nada teme, viandante sem morada, se deixa convidar por alguém para hospedá-lo, para acolhê-lo em sua casa.

Marta, a irmã de Maria, ao avistá-lo, convida-o para se hospedar, com especial cordialidade, em sua casa.

De fato, Jesus não tem casa, não tem onde encostar a cabeça, é pobre, sempre peregrinando...

As paredes da casa de Marta e Maria representam um sinal de acolhimento, um lugar onde se realiza a comunhão, a partilha, o encontro, a amizade recíproca. Mas, a plenitude do acolhimento acontece quando se atinge o coração, quando se entra na intimidade, na verdade e na experiência da vida concreta.

Ali, e somente ali, Jesus se manifesta, se torna Palavra, Caminho, Verdade, Vida.

Ele, a Boa Notícia, se oferece a quem o sabe acolher e escutar. Diante da autenticidade de um coração, Ele pára, entra, se deixa hospedar e revela plenamente a sua pessoa.

Faz-se pobre para enriquecer; oferece a verdadeira hospitalidade às pessoas que o acolhem.

 

Ao acolherem Jesus, o cotidiano de Marta e Maria se altera por completo; elas precisam modificar os pró-prios hábitos, os próprios costumes, reordenar as próprias atenções e ocupações.

Com o “Senhor” em casa, tudo muda; graças a Ele, tudo deve encontrar uma nova “ordem”. Jesus, o pe-regrino sem casa, está no centro de todas as atenções que uma verdadeira hospitalidade exige. Ele “entra” naquela casa como o último dos peregrinos; mas, para as duas irmãs Ele se torna o primeiro, o único, o centro, em torno do qual se reordenam todas as coisas e as outras ocupações.

A “escuta” e o “serviço”, personalizados nas duas irmãs, não são alternativos, mas expressões da única e privilegiada relação com o Mestre. No entanto, Marta e Maria reagem de maneira diferente em relação a essa prioridade.

Maria, sentada aos pés de Jesus, põe-se à escuta das suas palavras; Marta, ao invés, fica totalmente tomada pelos afazeres e preocupações.

Acolhendo-O e escutando-O, Maria encontra paz, serenidade, tempo, expectativa; Marta, ao contrário, não consegue encontrar a paz, não consegue “pôr ordem”: agita-se, preocupa-se, fica insatisfeita, desconcentrada, em contínua ação. Ativismo sem sentido, sem intenção, sem motivação...

 

Marta se distraía com o ativismo, em seu afã de expressar seu carinho e sua acolhida a Jesus. Jesus, no entanto, não reprova sua atividade, mas sua distração; o seu ativismo a impede de ver a presença do Mestre; fecha-se à rotina e não se abre ao novo.

O que Jesus coloca em questão não é o que ela faz, mas como ela faz. Marta não tem mais condições de pôr “ordem” e “sentido” no meio das tantas coisas que gostaria de fazer, na tentativa de oferecer a melhor hospitalidade possível a Jesus.

Desta forma, ela se torna incapaz de viver o  verdadeiro encontro, não só com Jesus, mas também com a própria irmã, rivalizando-se com ela. Marta chega até a repreender o próprio Jesus, o hóspede de honra, que convidara para hospedar-se em sua casa: “Senhor, não te importa...”

 

Jesus, com doçura, repreende Marta, ajudando-a a sair da solidão do seu tarefismo. Com a repetição do seu nome, chama-a novamente e a põe em contato consigo mesma; ajuda-a a entrar em si e a olhar para além da atividade, a abrir os olhos do coração para perceber o “sentido” da sua ação - para quê? para quem?

Jesus simplesmente a convida a levantar os olhos das suas preocupações rotineiras e a olhar na direção certa. Ela se sente movida a “pôr ordem” dentro de si mesma e ao seu redor; somente saindo do seu pequeno e limitado mundo das “coisas”, ela poderia reconhecer a “melhor parte”, que ninguém mais lhe poderá tirar.

Chamada pelo nome, Marta torna-se capaz de escutar e de perceber a presença da Verdade que estava à sua frente e que antes não conseguia escutar, encontrar, reconhecer.

Verdade que também se faz presente em meio aos afazeres cotidianos.

Somente aceitando esse Dom que se hospeda em sua casa, é possível fazer a única escolha certa, sábia: seja na escuta aos pés do Mestre, seja nos serviços caseiros. Aceitar esse Dom significa encontrar a paz, a harmonia, a integração entre a “escuta” e o “serviço” (“escutar servindo e servir escutando”).

 

A integração e harmonia entre as duas atitudes (escuta e serviço), é o caminho proposto pela dinâmica da espiritualidade cristã; ser “contemplativo na ação” ou “ativo na contemplação”, eis o equilíbrio difícil.

O que Jesus pede a Marta é amá-lo em seu serviço, como Maria o ama em sua atitude de escuta. Tudo o que fazemos sem amor é tempo perdido. Tudo o que fazemos com amor é eternidade reencontrada.


De fato, diante das preocupações, da agitação cotidiana, dos apegos, das “afeições desordenadas”... a escuta e o encontro com o Outro e com os outros tornam-se praticamente impossíveis.

Tal situação nos faz prisioneiros da solidão, sentindo-nos abandonados, impotentes, sobrecarregados pelo ativismo vazio e sem sentido...

O ativismo produz, a princípio, a sensação de estar muito ocupado e o falso consolo de “sentir-se útil”.

Mas, de fato, o ativismo converte as pessoas em engrenagens de um sistema massacrante e acaba produzindo-lhes frustração, impotência e vazio, por falta de sentido (para quê? para quem?...)

Esse é o problema do mundo moderno:  a agitação e a preocupação se tornam um estilo de vida e acabam controlando nosso ritmo cotidiano, tornando-se fonte inesgotável de ansiedade.

Em nosso padrão cultural, somos pressionados a mostrar o tempo todo que estamos ocupados e “produ-zindo” alguma coisa. Vivemos perdidos numa floresta de compromissos e atividades, incapazes de per-ceber alguma trilha estreita para poder andar e respirar. Mesmo com tudo que foi inventado para facilitar a vida – celular, internet, e-mail, mensagens instantâneas – parece que não temos tempo para nada.

Há muita inquietação por baixo das águas do cotidiano. Acuados pelo relógio, pelo ativismo, pela agen-

da, pela opinião alheia, disparamos sem rumo feito hâmsteres que se alimentam de sua própria agitação.

 

A contemplação é uma dimensão essencial do ser humano.

Um sinal de crescimento de quem está se tornando cada vez mais contemplativo em meio a uma vida ativa é que um simples olhar sobre a realidade desperta sentimentos oceânicos e faz evocar atitudes profundas. A realidade cotidiana parece cheia de significado e atração. Evoca e confirma atitudes fundamentais de entrega e dedicação a Deus e ao seu Reino na vida cotidiana. Em tudo pode-se “tocar” a presença cuidadora e providente do Criador. Daqui brota o desejo de colaborar com Ele, numa missão específica, segundo a capacidade e as circunstâncias de cada um.

Cada dia a pessoa redescobre com os sentidos e inventa com a imaginação um mundo novo, maior e mais bonito que o do dia anterior. E assim é feliz porque, para ela, em cada nova experiência, o mundo torna a começar. Com isso, as pessoas verdadeiramente contemplativas em meio à vida cotidiana, desenvolvem profunda serenidade e paz interior. Elas têm a convicção profunda de que Deus está presente e ativo em todo o mundo; de que em todas as circunstâncias Deus trabalha para o bem de cada um e de todos.


A abertura e a acolhida do Dom, que nos surpreende ao entrar em nossa pró-pria casa, nos arrancará do nosso isolamento, da rivalidade com os outros, das preocupações e agitações vazias. Somos continuamente envolvidos, protegidos, sustentados e animados por uma Presença que “armou sua Tenda entre nós”.

Nele encontraremos a serenidade, a paz interior, a confiança... tanto na ação como na contemplação.

Mais importante do que fazer as coisas, é fazê-las de modo novo.

Eis a única “coisa” que importa para viver plenamente.

 

Texto bíblico:  Lc. 10,38-42

 

Na oração:  despertar um olhar repousante sobre sua realidade cotidiana: olhar

                        que tudo acolhe e em tudo  vê a  presença do Criador.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Lc 10,25-37


O BOM SAMARITANO: ícone da ternura evangélica


                                  “E quem é meu próximo” (Lc. 10,29)


 

Teria sido fácil para Jesus fornecer definições de “próximo”; se não o faz é por-que quer evitar que se considere o “próximo” como um objeto de estudo ou de investigação. Perante a pergunta inicial, Jesus não assume o papel que o escriba lhe propõe e, em vez de dar-lhe a resposta pedida, indica onde deve buscá-la: Jesus quer tirá-lo do mundo do saber para levá-lo ao do fazer.

O ícone do “bom samaritano” apresenta o próximo “em situação”, o pró-ximo concreto, histórico, que interpela e compromete cada um em escolhas de-cisivas, em relação às quais se demonstra se é ou não “próximo” do neces-sitado. Por isso, a interrogação inicial se inverte: já não se trata de perguntar-se “quem é meu próximo?”, mas “de quem eu sou próximo e como eu chego a ser próximo?”  O “próximo” não é somente o outro para mim, mas eu para o outro.

O “próximo”, no sentido expresso pela parábola, não pode nos deixar indiferentes; provoca uma respos-ta, compromete em uma ternura concreta, oblativa, capaz de risco, para socorrer o ferido.

A conclusão da parábola é um programa de vida. Jesus não diz: “agora, sabes, podes ficar tranquilo”. Afirma antes: “Agora vai, e  também tu faze o mesmo”.

Neste ícone, temos a magna carta da ternura como resposta do discipulado e forma de atualização concreta do amor evangélico.

 

Os personagens da parábola: um homem, assaltantes, um levita, um sacerdote, um samaritano; todos, exceto “um homem”, aparecem designados por sua função social: uns com prestígio e outros no mundo marginalizado (assaltantes, samaritano).

“Um homem”, sem mais especificações, representa cada ser humano, para além de suas conotações de nacionalidade, de nível social, de religião; é cada ser humano necessitado, carente, vítima... A novidade do evangelho consiste precisamente na superação de tais barreiras.

Na parábola, o desconhecido ocupa o centro do relato, visto que todos os demais personagens aparecem em relação com ele: os bandidos o assaltam, despojam, golpeiam e o abandonam; o sacerdote e o levita vêem-no e passam ao largo; o samaritano o vê, comove-se, aproxima-se, cuida dele. Até quando é levado à hospedaria continua sendo o pólo das atenções. Essa organização do movimento no espaço em torno de um homem reduzido à impotência indica seu papel central, mesmo que dentro de sua passividade. Todos os personagens se definem a favor ou contra ele: é assaltado, despojado, espancado, deixado semimorto, comiserado, enfaixado, conduzido, cuidado... De viajante passa a corpo inerte e, abandonado por uns, reencontra vida graças a outro.

 

O samaritano avista ali, no caminho, um homem, e um homem em perigo de vida; que fosse de outro povo ou outra religião, é irrelevante. O bom samaritano vai além dos dados de ordem social, moral ou religiosa; avista, para além das diferenças, um ser humano igual a ele, e por isso irmão.

Para o sacerdote e para o levita, o homem ferido converte-se em obstáculo a evitar: seguem adiante pelo outro lado. As normas de pureza proibiam-lhes contaminar-se pelo contato com a morte, visto que deviam manter-se puros a fim de participar do culto.

O samaritano não se deixa condicionar pela “prudência” de continuar o caminho, nem pelo medo de se aproximar do ferido; ao contrário, se detém e se envolve na situação do ferido: “Viu-o e teve compaixão” (sentimento que aparece na Bíblia referindo-se somente a Deus e a Jesus); assume o risco do encontro e se deixa interpelar pela necessidade do outro, cuja vida, para ele, conta mais do que prosseguir sua viagem.

Existem, portanto, duas maneiras de ver: permanecer alheio ou comprometer-se.

O sacerdote e o levita não mudam, a não ser passar  pelo outro lado; tal  atitude os faz aliados dos bandidos sob o signo da exclusão: saem do relato sozinhos, limitados a seu projeto, excluindo o outro.

O samaritano “viu-o” e foi afetado pelo que viu; isso evoca já um modo diferente de olhar o outro, não como um estranho ou com indiferença, mas como um “próximo” para servir com amor.

O termo “compaixão” revela um forte compromisso afetivo como “um comprimir-se do coração” e denota uma íntima participação na situação do ferido, um “com-partilhar” que se faz solidariedade.

O samaritano não organiza um socorro à distância, não se afasta em busca de reforços, mas ele mesmo põe mãos à obra, interessando-se pessoalmente pelo ferido e fazendo-se cargo de sua situação: com suas mãos o medica e enfaixa as feridas, o levanta e o carrega sobre sua cavalgadura; caminha ao lado por quilômetros e quilômetros e o entrega ao administrador da pousada.

 

Há, em todos estes gestos, uma “com-participação”, uma atenção pessoal que exprime a autenticidade da ternura evangélica. O samaritano realiza atos concretos e o faz com ternura transbordante, até ao excesso; ele vai além do simples apelo do dever.

Ninguém poderia ter-lhe pedido tanto. Detendo-se, curando o ferido e conduzindo-o ao lugar de descanso, ele já tinha cumprido seu essencial dever de justiça e podia sentir-se satisfeito. Mas, ele sente a neces-sidade de ir além. Sua ternura é verdadeiramente completa, genuína, sem interesses nem meio-termo: é uma ternura de puro dom, gratuita, uma ternura de benevolência.

Com justiça, os padres da Igreja gostavam de destacar que o primeiro grande Samaritano fora o Filho de Deus feito homem. Ele, em primeiro lugar, se deteve misericordiosamente junto a nós pecadores, descen-do de sua “cavalgadura” e fazendo-se nosso companheiro de viagem.

 

A “opção de vida” em favor do próximo é o indicador de uma vida aberta aos outros e comprometida na construção de uma convivência social na qual predomine a ternura e não a dureza de coração, o respeito à vida e o amor e não a violência e a exclusão.

Segundo a teóloga Maria José Torres “a parábola do samaritano tem consequências ético-políticas”.

Nossa compaixão deve estar perpassada de indignação ética, porque não há compaixão sem justiça. Daí apostar pelo modelo compassivo do cuidado.

Para voltar às raízes da fé, devemos reivindicar a compaixão como sinal de identidade do humano e do divino, porque parecer-se com Deus implica ser e atuar compassivamente. Deus tem entranhas de mãe e se comove por seus filhos mais sofredores, vítimas da maldade humana.

A parábola é uma exortação à misericórdia e à denúncia. Meu próximo não é só o que merece minha ajuda, mas também aquele que merece ser denunciado porque dá uma volta e deixa as coisas como estão.

 

Texto bíblico:   Lc 10,25-37

 

Na oração: Os personagens da parábola podem servir-nos de espelhos: talvez possamos sentir-nos como o

                     escriba cético que pergunta: “Quê devo fazer?”, sem contudo, comprometer nossa vida; ou como o sacerdote e o levita, tão preocupados em chegar ao culto que não nos sobra tempo nem atenção para o homem ferido jogado na sarjeta. Os três aparecem distraídos e dispersos em seus próprios projetos, planos, ocupações ou reflexões, querendo conhecer, no plano teológico, quem é o próximo, cumprir a Lei, chegar ao Templo, não contaminar-se com um cadáver...

No entanto, tudo isso os impede de viver centrados no essencial que, naquele momento, era atender ao homem ferido. O samaritano, ao contrário, aparece descentrado de si mesmo; é todo atenção solícita e eficaz no serviço do desconhecido que encontra em seu caminho, e isso o faz entrar em sintonia com o desejo e o coração de Deus.