sábado, 22 de setembro de 2012

Um texto lindo para o Evangelho de amanhã.


QUANDO PISAMOS O TERRENO PANTANOSO DO PODER...

 

“Eleva-se a Deus quem desce à realidade: às limitações da vida, às feridas do coração e à pequenez das pessoas”

O poder é uma das forças mais sedutoras e que sempre exerceu grande fascínio nas pessoas. Não há ser humano que não tenha sido “tentado” pelo canto desta sereia.

Os Evangelhos relatam que também os discípulos de Jesus demonstravam apetite pelo poder:

discutiam entre si qual deles era o maior (Mc. 9,34);

alguns pretendiam ocupar os primeiros lugares (Mc. 10,37).

Mas Jesus, que foi tão tolerante com aqueles homens em outras coisas, neste ponto foi taxativo: “Se alguém quiser ser o primeiro, que seja o último de todos e o servidor de todos!”

Ao abraçar carinhosamente uma criança, diante de todos, Jesus indica que o centro de sua comunidade não deve estar ocupado pelos grandes e poderosos que se impõem aos demais, a partir de cima. Em sua comunidade precisa-se de homens e mulheres que “desçam” para acolher, servir, abraçar e bendizer aos mais fracos e necessitados.

O Reino de Deus não se expande a partir da imposição dos grandes, mas a partir da acolhida e defesa dos pequenos. Onde estes se convertem no centro de atenção e cuidado, aí está chegando o Reino de Deus, a nova sociedade humana que o Pai quer.

Entrar no Reino significa acolher e compartilhar o Projeto de Jesus; isso torna-se impossível para quem fundamenta sua vida por critérios de poder, prestígio, ambição...

 

Sabemos que o poder nos infla como balões, com desejos de subir, e estar no mais alto, longe de tudo o que é humano, onde as fragilidades e sofrimentos das pessoas não nos afetam, onde possamos vencer, distinguir-nos dos outros... Por seu caráter impositivo, o poder deteriora relacionamentos, resvalando-se para o terreno pantanoso da competição, da suspeita, da intriga.

Quem tem “poder” o centro está em si mesmo; por isso é que toda expressão de poder é violenta, exclui, impõe-se ao outro, domina...

A cultura do poder suga o “espírito” da vida de uma comunidade, minando sua criatividade e fragili-zando seus laços de convivência. O poder não constrói comunidade, pois quem tem poder se cerca de subservientes que cumprem suas ordens, dizem amém às suas idéias ou calam-se coniventes.

Sorrateiramente este mal toma conta do coração humano e o petrifica, impedindo a vida de desabrochar e a criatividade de se expressar. O exercício do poder se expressa nas atitudes de dominar, manipular, subjugar e definir tudo segundo os próprios critérios. A perversidade do coração humano encontra no exercício do poder o campo mais propício para a revela­ção de suas mazelas, violências e vaidades.

 

Jesus, no entanto, com seu “ensinamento” e seus gestos, quebra a estrutura da centralidade do poder narcisista; sua atitude é  humanizadora e propõe o caminho da “descida compassiva” como a marca distintiva dos seus seguidores; Ele parte da realidade humana mais frágil e excluída, e ensina o segredo para se construir uma comunidade diferenciada: a acolhida e o serviço mútuo em lugar de e em vez de “hierarquias” rígidas e distantes que envenenam as relações inter-pessoais. Para Jesus, não é o poder que deve ocupar o centro, mas a criança, despojada de todo poder.

Jesus revela aos discípulos um “novo ângulo” ou um novo modo de “olhar as pessoas: não a partir do lugar do poder, mas a partir da perspectiva dos fracos e indefesos.

Para isso é preciso uma “mudança de lugar”, um deslocamento para baixo, em direção aos pequenos. Quem “desce” encontra-se com Jesus. Quem acolhe um “pequeno” está acolhendo o “maior”, o próprio Jesus.

 

Tradicionalmente, a espiritualidade cristã que nos foi transmitida partia de “cima”.

No entanto, o “subir”  até Deus passa pelo “descer”  até às profundezas da própria realidade pessoal e dos outros. Este é o paradoxo da espiritualidade cristã: nós “subimos” para Deus precisamente quando “descemos”  para a nossa condição humana.

O caminho para Deus passa pela descida em direção aos outros, pelo compromisso com os pequenos e últimos, pela compaixão para com os mais carentes...

O Deus que Jesus nos revelou é o Deus que se faz presente no pequeno, no simples, naqueles que não tem voz e nem vez neste mundo. Não é o Deus do poder absoluto, nem o Deus que exige obediência e submissão àqueles que se apresentam como representantes  do divino.

 

O Deus de Jesus é o Deus que responde e corresponde aos anseios de respeito, dignidade e felicidade, que todos trazem inscritos no sangue de suas vidas e nos sentimentos mais autênticos e nobres.

O Deus Misericordioso não impulsiona ninguém a desejar poderes, honras, títulos, por mais divinos que sejam. Ele é o Deus que só legitima a identificação e até a fusão com o destino das vítimas deste mundo.

 

Na pregação e na prática de Jesus nós nos deparamos com uma espiritualidade que vem de “baixo”,  que brota do seu encontro com a condição humana, pobre e vulnerável. Ele, conscientemente, se compromete com os publicanos e pecadores, com os pobres e doentes, com as crianças e as mulheres... porque sente que eles estão abertos ao amor de Deus.

Os “justos” (praticantes da lei e observantes das normas religiosas), pelo contrário, vivem centrados em si mesmos e são aqueles que entram em permanente conflito com Jesus.

A própria encarnação de Jesus Cristo já é prova de seu esvaziamento e de sua entrada na vida dos últimos e excluídos. Jesus nasce em um estábulo, não em um palácio; ele realiza sua missão não no templo de Jerusalém, mas nas periferias excluídas da Galiléia.

Vivendo desta maneira Jesus nos traçou o único caminho para encontrar a Deus: unir-se, fundir-se e confundir-se com tudo o que é debilidade, dor, sofrimento e carência da humanidade.

Ele revela que o verdadeiro  modo de encontrar a Deus se dá na medida em que cada pessoa acolhe e se faz solidária com a fragilidade do outro, necessitado de defesa e cuidado.

A fé madura fé em Deus não se reduz à segurança e firmeza em umas determinadas verdades; mais importante que as verdades de nosso saber é a humanização de nossas atitudes.

 

“Descer” e “subir”, portanto, são imagens para descrever o processo de transformação realizado por Cristo no interior de cada um de nós.

Se com Cristo quisermos subir ao Pai, temos primeiro de descer com Ele à terra, afundar os pés na nossa própria condição humana. Não podemos subir ao céu se não estivermos dispostos a descer com Cristo e ocupar o último “lugar”, no nível daqueles que não tem poder e nem ostenta títulos.

Nós “subimos” a Deus quando “descemos” à humanidade, através do serviço amoroso. Este é o caminho da liberdade, este é o caminho do amor e da humildade, da mansidão e da misericórdia.

Ao fazer, junto com Jesus Cristo, o caminho da “descida”, o ser humano vai ao encontro de sua realidade e coloca-se diante de Deus para que Ele transforme em amor tudo quanto existe nele, para que ele seja totalmente perpassado pelo Espírito de Deus.

 

Texto bíblico:  Mc. 9,30-37

 

Na oração: “Descer” em direção à nossa realidade e à dos outros,

                     significa considerar a experiência da fragilidade e da pequenez como o lugar da verdadeira oração e como chance de chegarmos a uma nova relação pessoal com Deus.

“Considerar” aqueles que não tem “lugar” em nossas comunidades; colocar-se em seu lugar e sentir o que eles sentem.

sábado, 8 de setembro de 2012

Texto para o Evangelho de amanhã.


VIDA DESTRAVADA, HORIZONTE ABERTO

“Imediatamente abriram-se-lhe os ouvidos e a língua se desprendeu” (Mc. 7,35)

Na religião judaico-cristã a palavra ocupa um lugar central.
Para um judeu, poder escutar a Deus e poder orar a Ele fazia parte da sua identidade; ele repete todos os dias o “Shema Israel” (“escuta, Israel”), a oração de Deut. 6,4-9, que determina que o viver diário, em todos os seus momentos, esteja permeado desta escuta.
Por isso, ser “surdo e mudo” significava estar afastado da essência da devoção, incapaz de realizá-la pelo ouvido e pela palavra; não escutar e nem falar significa não desenvolver a característica mais íntima do ser humano: o acesso à linguagem.
De fato, nós somos as palavras que escutamos e aquelas que falamos; a capacidade de escutar e de falar revela nossa verdadeira identidade.
Considerar o mistério escondido naquela palavra que saiu de nossa boca e de nosso coração de forma afirmativa, redentora... bendita. Quando assim conseguimos comportar com nossas palavras, estamos contribuindo, literalmente, para a “edificação humana” do outro. Com isso, estamos falando de um ser mais saudável, equilibrado, integrado em suas dimensões (psíquica, social, corpórea, espiritual).

É extraordinário perceber como as palavras ditas com cuidado e amor (pedagogia de Jesus) produzem efeitos benéficos para o ser humano. Como é importante para uma pessoa, travada na sua capacidade de comunicação, escutar palavras ordenadoras de emoções, de auto-estima. Essas palavras são bem-aventu-radas, pois se tornam capazes de fazer crescer, sustentar, enfim, edificar pessoas mais saudáveis no convívio social, humano-afetivo, espiritual.
Este é o pano de fundo para a consideração do relato da cura do surdo-mudo, que o Evangelho de hoje nos propõe. Nele encontramos a ação personalizadora de Jesus, que será feita de acordo com a linguagem de compreensão do enfermo. Com sua presença terapêutica, Jesus gera vida, destrava as pessoas para que vivam a partir da verdade mais profunda de si mesmas.

A ação começa com o movimento de algumas pessoas anônimas que conduzem um surdo-mudo (também anônimo) até Jesus. O que aparece claro são suas perceptíveis carências. A surdez lhe impede ser autô-nomo. Ele não se desenvolve por seus próprios meios. Seu grau de dependência é tal que nem sequer tem consciência para reconhecer a dimensão de seu problema. Outros tomam a iniciativa por ele. Sua situação é agravada pela incapacidade de falar. A surdez que anulava sua receptividade, unida à sua anormalidade na fala, lhe impediam uma relação normal com o mundo exterior. Ele vive fechado em si mesmo, sem poder comunicar-se com ninguém. Está aprisionado em seu isolamento, travado em sua existência.
Portanto, Parece lógico, que alguém tivesse que atuar para conduzir o surdo-mudo até Jesus, para que fosse “tocado”; aqui aparece a força do contato.
Sabemos pouco da riqueza de nosso contato. O contato nos cura. É um caminho de comunicação maravi-lhoso. Na enfermidade, muitas pessoas não buscam mais que o contato. Um verdadeiro contato nos envia sempre para dentro. Não é somente o contato da pele, mas o que nos põe em marcha para nosso interior.
O contato nos faz despertar. Existe a idade da palavra, a do ouvido, a do olhar..., mas neste momento Jesus se detém na idade do contato. O caminho do contato é o da mais profunda comunhão.

Jesus começa por usar uma linguagem não-verbal; é a linguagem mais primitiva, anterior à palavra: através dos gestos, o surdo-mudo vai sendo reconstruído em sua humanidade.
Jesus, no início da cura, “o conduz à parte, longe da multidão”; uma condução não-verbal, um afasta-mento da multidão, para longe da massificação.
E lá, na intimidade do contato, o doente é cuidado na individualidade das suas dores.
- “Pôs-lhe os dedos nos ouvidos”; literalmente, “pôs o dedo na ferida”.
   A mão é fonte de contato, é canal de passagem da energia curativa.
- “Depois tocou-lhe a língua com saliva”;  força terapêutica da saliva.
- “Levantando os olhos ao céu..” Jesus Cristo olha para o alto, em direção ao Pai. Com o olhar para o alto, encaminha-o para além de si. É preciso remetê-lo ao Pai, origem de toda vida.
- “Jesus suspirou”. Com o sopro, prolonga o gesto do Criador no 6º. Dia da Criação: lembra como Deus “fez tudo bem” no início. Recorda o sopro do Espírito, que transforma o “caos” existencial do surdo-mudo em “cosmos”, ou seja, a presença do sopro que passará pelas cordas vocais e pela língua, para ser transformado em palavras.
- “E disse-lhe: ‘Effatha’ (que quer dizer: ‘abre-te’)”. Palavra dirigida ao coração do surdo-mudo. É como se dissesse: “abre-te à tua identidade! destrava teu interior!”
Depois de tantos passos no não-verbal e primitivo, vem a palavra. E o surdo-mudo desata sua língua e começa a falar. Insere-se nos devotos que ouvem a Deus e proclamam que Ele é o único, com todos os órgão do corpo.

Uma vez libertado de sua limitação, o personagem se emancipou, recuperou sua autonomia e pode mani-festar-se sem entraves. Agora nada o limita. Possui plena capacidade para integrar-se na convivência social. Desaparecem as causas que lhe impediam optar com liberdade. A possibilidade de uma nova vida se abriu para ele.
Contrariamente aos outros milagres, desta vez Jesus faz uma série de gestos; mais precisamente, eram ações que demonstravam relação e envolvimento: tocou o corpo do homem, olhou para o céu, exprimin-do sua comunhão com Deus, e suspirou como sinal de participação profunda no acontecimento.
A cura não é um ritual exterior, mas brotava de um encontro, de um gesto que demonstra comunhão entre a pessoa doente, Jesus e Deus.

Marcos, narrando o milagre da cura do surdo-mudo, nos leva, ao mesmo tempo, a intuir que acontece também outro milagre: em pleno território pagão, Jesus abre os ouvidos das multidões para que escutem a Palavra de Deus, desata o nó da sua língua de modo a se unir ao cântico de louvor que se eleva a Deus por todos aqueles que crêem nele. De fato aconteceu que, aqueles que levaram o doente a Jesus, no final, também foram “curados”.
Em todo o trecho, o surdo-mudo não diz uma palavra, não toma nenhuma iniciativa, não exprime um pensamento ou um sentimento que tenho sido relatado pelo evangelista. De resto, a sua doença o tornava incapaz de se comunicar.



Mas, depois do encontro com Jesus e da cura, aquele que estava distante de todos tornou-se pólo de atração, no sentido de que, por meio dele, a multidão reconheceu e louvou o Senhor.
Sua doença, sua cura, sua vida, se tornaram sacramento, um ponto de encontro, um “lugar” no qual também os outros puderam e podem encontrar Jesus.

Texto bíblico:  Mc. 7, 31-37
A missão de Jesus é a de devolver à pessoa a sua palavra. Não apenas a palavra aprendida, mas a palavra que exprime verdadeiramente o que ela pensa, que expressa seus profundos desejos, que revela sua real identidade.

Na oração:  “O que não consigo ouvir?”
                                                              - em mim - do meu caos de impulsos, afetos e desejos?
                                                              - do meu próximo - seu grito de dor, seu clamor, seu desamparo, sua alegria?
                                                              - de Deus – do Seu caminho, do Seu chamado, da Sua bênção?

E o que está mudo em mim?
– Quê linguagem está presa, quê órgão fonador não se articula com o sopro do Espírito?
- Quê palavras são emudecidas e alojadas no corpo, na forma de dores, doenças, tensões musculares, inibições
- Quê afetos são sufocados na forma de mutismos, angústias, raivas, tristezas e depressões?
- Quê palavras são inibidas e transformadas em condutas de agressão contra outros e contra mim?
- Quê órgãos são esquecidos? Minhas entranhas ainda são consultadas?