VIDA DESTRAVADA, HORIZONTE ABERTO
“Imediatamente abriram-se-lhe os
ouvidos e a língua se desprendeu” (Mc. 7,35)
Na
religião judaico-cristã a palavra
ocupa um lugar central.
Para
um judeu, poder escutar a Deus e poder orar a Ele fazia parte da sua identidade;
ele repete todos os dias o “Shema
Israel” (“escuta, Israel”), a oração de Deut. 6,4-9, que determina que o viver diário, em todos os seus
momentos, esteja permeado desta escuta.
Por
isso, ser “surdo e mudo” significava
estar afastado da essência da devoção, incapaz de realizá-la pelo ouvido e pela
palavra; não escutar e nem falar significa não desenvolver a característica
mais íntima do ser humano: o acesso à linguagem.
De
fato, nós somos as palavras que escutamos e aquelas que falamos; a
capacidade de escutar e de falar revela nossa verdadeira identidade.
Considerar o mistério
escondido naquela palavra que saiu de nossa boca e de nosso coração de
forma afirmativa, redentora... bendita. Quando assim conseguimos comportar com
nossas palavras, estamos contribuindo, literalmente, para a “edificação humana”
do outro. Com isso, estamos falando de um ser mais saudável, equilibrado,
integrado em suas dimensões (psíquica, social, corpórea, espiritual).
É
extraordinário perceber como as palavras ditas com cuidado e amor
(pedagogia de Jesus) produzem efeitos benéficos para o ser humano. Como é
importante para uma pessoa, travada na sua capacidade de comunicação, escutar
palavras ordenadoras de emoções, de auto-estima. Essas palavras são bem-aventu-radas,
pois se tornam capazes de fazer crescer, sustentar, enfim, edificar pessoas
mais saudáveis no convívio social, humano-afetivo, espiritual.
Este é o pano de fundo para a
consideração do relato da cura do surdo-mudo, que o Evangelho de hoje
nos propõe. Nele encontramos a ação personalizadora de Jesus, que será feita de
acordo com a linguagem de compreensão do enfermo. Com sua presença terapêutica,
Jesus gera vida, destrava as pessoas para que vivam a partir da verdade mais
profunda de si mesmas.
A ação começa com o movimento de algumas pessoas anônimas que
conduzem um surdo-mudo (também anônimo) até Jesus. O que aparece claro são suas
perceptíveis carências. A surdez lhe impede ser autô-nomo. Ele não se
desenvolve por seus próprios meios. Seu grau de dependência é tal que nem
sequer tem consciência para reconhecer a dimensão de seu problema. Outros tomam
a iniciativa por ele. Sua situação é agravada pela incapacidade de falar.
A surdez que anulava sua receptividade, unida à sua anormalidade na fala, lhe
impediam uma relação normal com o mundo exterior. Ele vive fechado em si mesmo,
sem poder comunicar-se com ninguém. Está aprisionado em seu isolamento, travado
em sua existência.
Portanto,
Parece lógico, que alguém tivesse que atuar para conduzir o surdo-mudo até
Jesus, para que fosse “tocado”; aqui aparece a força do contato.
Sabemos pouco da riqueza de nosso contato. O contato
nos cura. É um caminho de comunicação maravi-lhoso. Na enfermidade, muitas
pessoas não buscam mais que o contato. Um verdadeiro contato nos envia sempre
para dentro. Não é somente o contato da pele, mas o que nos põe em marcha para
nosso interior.
O contato nos faz despertar. Existe a idade da
palavra, a do ouvido, a do olhar..., mas neste momento Jesus se detém na idade
do contato. O caminho do contato é o da mais profunda comunhão.
Jesus começa por usar uma linguagem não-verbal;
é a linguagem mais primitiva, anterior à palavra: através dos gestos, o
surdo-mudo vai sendo reconstruído em sua humanidade.
Jesus,
no início da cura,
“o conduz à parte, longe da multidão”;
uma condução
não-verbal, um afasta-mento da multidão, para
longe da massificação.
E
lá, na intimidade do contato, o doente é cuidado na individualidade das suas
dores.
- “Pôs-lhe os dedos nos ouvidos”;
literalmente,
“pôs o dedo na ferida”.
A mão
é fonte de contato, é canal de passagem da energia curativa.
- “Depois tocou-lhe a língua com saliva”; força terapêutica da saliva.
- “Levantando os olhos ao céu..” Jesus Cristo olha para o alto, em direção ao Pai. Com
o olhar para o alto, encaminha-o
para além de si. É preciso remetê-lo ao Pai, origem de toda vida.
-
“Jesus suspirou”. Com o sopro, prolonga o gesto do Criador no 6º. Dia da Criação: lembra
como Deus “fez tudo bem” no início. Recorda o sopro do Espírito, que
transforma o “caos” existencial do surdo-mudo em “cosmos”, ou seja, a presença
do sopro que passará pelas cordas
vocais e pela língua, para ser transformado em palavras.
- “E disse-lhe: ‘Effatha’ (que quer dizer:
‘abre-te’)”. Palavra dirigida ao
coração do surdo-mudo. É como se
dissesse: “abre-te à tua identidade! destrava teu interior!”
Depois de tantos passos no não-verbal e primitivo, vem a palavra.
E o surdo-mudo desata sua língua e começa a falar. Insere-se nos devotos que
ouvem a Deus e proclamam que Ele é o único, com todos os órgão do corpo.
Uma vez libertado de sua limitação, o personagem se
emancipou, recuperou sua autonomia e pode mani-festar-se sem entraves. Agora
nada o limita. Possui plena capacidade para integrar-se na convivência social.
Desaparecem as causas que lhe impediam optar com liberdade. A possibilidade de
uma nova vida se abriu para ele.
Contrariamente aos outros
milagres, desta vez Jesus faz uma série de gestos; mais precisamente, eram
ações que demonstravam relação e envolvimento: tocou o corpo do homem, olhou
para o céu, exprimin-do sua comunhão com Deus, e suspirou como sinal de
participação profunda no acontecimento.
A cura não é um ritual
exterior, mas brotava de um encontro, de um gesto que demonstra comunhão entre
a pessoa doente, Jesus e Deus.
Marcos, narrando o milagre da cura do surdo-mudo, nos
leva, ao mesmo tempo, a intuir que acontece também outro milagre: em pleno
território pagão, Jesus abre os ouvidos das multidões para que escutem a
Palavra de Deus, desata o nó da sua língua de modo a se unir ao cântico de
louvor que se eleva a Deus por todos aqueles que crêem nele. De fato aconteceu
que, aqueles que levaram o doente a Jesus, no final, também foram “curados”.
Em todo o trecho, o
surdo-mudo não diz uma palavra, não toma nenhuma iniciativa, não exprime um
pensamento ou um sentimento que tenho sido relatado pelo evangelista. De resto,
a sua doença o tornava incapaz de se comunicar.
Mas, depois do encontro com Jesus e da cura,
aquele que estava distante de todos tornou-se pólo de atração, no sentido de
que, por meio dele, a multidão reconheceu e louvou o Senhor.
Sua doença, sua cura, sua
vida, se tornaram sacramento, um ponto de encontro, um “lugar” no qual também
os outros puderam e podem encontrar Jesus.
Texto
bíblico: Mc.
7, 31-37
A missão de Jesus é a de devolver à pessoa a sua
palavra. Não apenas a palavra aprendida, mas a palavra que exprime
verdadeiramente o que ela pensa, que expressa seus profundos desejos, que
revela sua real identidade.
Na
oração:
“O que não
consigo ouvir?”
-
em mim - do meu caos de impulsos,
afetos e desejos?
- do meu próximo
- seu grito de dor, seu clamor, seu desamparo, sua alegria?
- de Deus
– do Seu caminho, do Seu chamado, da Sua bênção?
E o que está mudo em mim?
– Quê linguagem está presa, quê
órgão fonador não se articula com o sopro
do Espírito?
- Quê palavras são emudecidas e alojadas no corpo, na forma de dores,
doenças, tensões musculares, inibições
- Quê afetos são sufocados na forma
de mutismos, angústias, raivas, tristezas e depressões?
- Quê palavras são inibidas e
transformadas em condutas de agressão contra outros e contra mim?
- Quê órgãos são esquecidos? Minhas
entranhas ainda são consultadas?
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