terça-feira, 21 de outubro de 2014

“O PESO DA ALMA É O AMOR” (S. Agostinho)


O PESO DA ALMA É O AMOR (S. Agostinho)

 

“...amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração... amarás o teu próximo como a ti mesmo”

 

Paixão por Deus e compaixão pela humanidade: nestas duas atitudes Jesus condensa a totalidade dos mandamentos bíblicos, ou seja,amar a Deus e amar o próximo.

São dois amores diferentes, mas inseparavelmente unidos. Estão unidos, porque não se pode amar verda-deiramente a Deus sem amar o irmão. E o verdadeiro amor pelo irmão tem suas raízes no amor a Deus.

Estes dois mandamentos já estão presentes no AT, mas separados (Deut. 6,4; Lev. 19,18). Jesus tem a genialidade de mostrar que o “segundo é como o primeiro”, e não só em importância, mas em essência, de tal maneira que nenhum dos dois pode existir sem o outro.

A pergunta feita a Jesus torna-se ocasião para ajudar a recuperar o essencial, descobrir o “espírito perdi-do”: qual é o mandamento principal? O que é essencial? Onde está o núcleo de tudo?

O Amor, essência de Deus, é também essência do ser humano, criado à Sua imagem. Quando amamos não é necessário dizer que Deus está em nosso coração porque, de uma maneira melhor, estamos no coração de Deus, participamos do próprio dom de seu Amor.

Quando esquecemos o essencial, facilmente corremos o risco de mergulhar na mediocridade piedosa ou na casuística moral, que não só nos incapacitam para uma relação sadia com Deus, senão que podem desfigurar e destruir as relações com as pessoas.

 

O seguidor de Jesus sabe que toda expressão de amor tem um alcance divino.

Uma das maiores razões para o Amor ser uma experiência de expansão se deve à sensação de imortalidade e eternidade que nos proporciona. Quem ama vê o tempo se alargar e a vida ganhar mais sentido.

Em outras palavras, o Amor traz em si a marca da eternidade, pois se trata da “faísca de Javé”, colocado por Deus no coração do ser humano. O Amor impregna o ser humano. Amor não é apenas uma função, uma área, um momento. Amor é onipresença.

O amor nasce em Deus como um rio imenso que envolve toda pessoa, iluminando e transformando sua existência. O cristão não se encontra submetido a uma espécie de exigência tirânica, obrigado a cumprir, no limite de suas forças, alguns mandatos alheios a seu ser.

“Amar a Deus com todo o coração”é reconhecer humildemente o Mistério último da vida, orientar confiadamente a existência de acordo com sua vontade: amar a Deus como força criadora e salvadora.

 

Nas duas tradições, judaica e cristã, o centro da pessoa é o coração. Amar é fazer tudo com o coração.

Falamos do Amor Ágape que transborda, que nada pede em troca. Amor Ágape não é o amor que sacia minha sede, pois ele não nasce da minha sede, mas ele nasce da minha fonte. Não é o amor da falta, da carência, mas é o amor da plenitude.

É esta gratuidade do amor em que se ama por nada. Amar sem ter nada de particular para amar. Amor como dom gratuito de si mesmo. Não é motivado pelo valor do outro, isto é, pela recompensa que meus gestos de amor podem trazer-me. Este amor não implica necessariamente, mas também não exclui a reciprocidade do dom de si mesmo. Com efeito, neste caso não se ama o outro porque ele é bom, mas para que seja melhor, já que o amor quer o bem do amado.

O amor ágape é expansivo: nos alarga através dos nossos membros, mãos e pés.

Podemos dizer que o amor tem mãos e pés: mãos que cuidam, curam, abençoam... e pés que nos arran-cam de nossos lugares rotineiros e nos deslocam para as margens, para o mundo dos pobres...

Quando o Amor nos habita tudo se torna sagrado. Não há “Terra Santa”, há uma maneira santa de cami-nhar sobre a terra. “O Amor é o que diz ‘sim’, em nós”: sim à vida, sim ao compromisso, sim à com-paisão...

 

O texto do Evangelho de hoje não só reafirma o amor ao próximo, mas, ao mesmo tempo, realça sua modalidade: “ame a seu próximo como a si mesmo”.O que significa amar o próximo “como a si mesmo”?

Segundo a Biblia, é a prioridade do outro em relação a mim.

 “Amar o outro como a si mesmo” não quer dizer, portanto, amar o outro do mesmo modo com que o eu se ama naturalmente e espontaneamente, e sim colocando o outro no lugar do próprio eu, afirmando sua precedência e sua prioridade sobre o eu e, assim, impedindo o movimento originário do eu em direção ao próprio eu, a fim de instaurar o movimento do eu em direção ao outro.

Podemos, então, entender o“como a si mesmocomo:“ame seu próximo, é você mesmo”; “esse amor aopróximo é você mesmo”; “ame o seu próximo, tudo isso é você mesmo”; “ame o seu próximo, porque o seu próximo é justamente como você mesmo”.

O mandamento bíblico do amor implica, pois, a “inversão da direção de vida do ser humano natural” (movimento “do eu em direção ao eu”) e a instauração da vida como vocação para amar. Trata-se do amor de alteridade onde o eu sai de sua pátria para não mais aí voltar, e sim para encontrar uma outra pátria.

O mandamento do amor é, portanto, um “contínuo êxodo” do eu para o outro. É da presença desse próximo que o eu é liberto e gerado para a nova identidade de responsável, de quem deve responder e não pode deixar de responder pelo outro que passa ao seu lado.

 

Cada vez que o ser humano ama a fundo perdido, os ciclos vitais se concentram. Só aquele que ama vive de verdade, amadurece antes. E é que o amor dá à liberdade a densidade de destino. O amor só se compreende a si mesmo na auto-doação, no descentramento de si.

O amor é uma força unitiva: une os corpos, as mentes, os espíritos e as vontades; une as pessoas e as sociedades, não para além de suas diferenças, mas precisamente com suas diferenças.

O amor converte a diferença em riqueza; o amor enche a vida de sentido. Ali onde falta o amor, as pessoas se sentem vazias e se separam cada vez mais umas das outras.  O mais grave é que ali onde falta o amor corre-se um sério perigo de morte.

Nosso coração exige de nós que as coisas mais belas, as mais amadas - começando pela própria vida e pelo próprio amor - não tenham ocaso. Este é nosso destino feliz, bem-aventurado e abençoado, que já começou, ainda que não tenha chegado à sua plena manifestação.
 



Texto bíblico:Mt 22,34-40

 

Na oração:- entoar um hino delou-

vor e gratidão a Deus pelo Seu “amor em excesso” que  se revela no cotidiano da vida;

 - ter sempre presente na memória que fomos criados para viver em relação de amor e solidariedade com todos.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Entre o matrimônio indissolúvel e a misericórdia





O Deus cristão é um Deus que quer que todos se convertam e vivam.

Por Enzo Bianchi*

Logo depois da eleição do papa Francisco, o cardeal Ravasi declarou: "Há um fôlego novo que esperávamos". Hoje, depois de 20 meses de pontificado, podemos dizer que se criou outro clima no tecido eclesial: um clima de liberdade de expressão em que, com parrésia (ousadia), cada católico, bispo ou simples leigo, pode deixar a sua própria consciência falar e dizer aquilo que pensa, sem ser logo silenciado, censurado ou até mesmo punido, como ocorria nas últimas décadas.

Isso não significa um clima idílico, porque conflitos até mesmo ásperos estão presentes no seio da Igreja – como, aliás, já é testemunhado nos escritos do Novo Testamento –, mas se estes são vividos sem excomunhões recíprocas, se cada um escuta as razões do outro sem fazer dele um inimigo, se todos cuidam para manter a comunhão, então os conflitos são fecundos e servem para aprofundar e, melhor, para dar razão das esperanças que habitam o coração dos cristãos.

Infelizmente, pode-se constatar que já há "inimigos do papa": pessoas que não se limitam a criticá-lo com respeito, como ocorria com Bento XVI e João Paulo II, mas que chegam até a desprezá-lo. Um bispo que declara aos seus padres que a exortação apostólica Evangeliigaudium "poderia ter sido escrita por um campesino" expressa um juízo de desprezo, mas, profeticamente, declara que essa carta é legível e compreensível até por um pobre e simples cristão da periferia do mundo. Assim, para além das intenções, essas palavras depreciativas constituem um elogio.

Alguns chegam até a deslegitimar a eleição de Bergoglio em um conclave que não teria ocorrido segundo as regras; outros argumentam que ainda há dois papas, ambos sucessores de Pedro, mas com tarefas diferentes... Conhecemos há muito tempo esses indivíduos como pessoas propensas a seguir as próprias hipóteses eclesiásticas em vez da objetividade da grande tradição católica, em que vale o primado do Evangelho.

Certamente, a composição desse Sínodo, o novo modo de proceder nos trabalhos, o convite do papa a falar claro, com coragem, até mesmo criticando o seu pensamento ou manifestando uma opinião diferente, o pedido de franqueza nas intervenções criaram uma atmosfera sinodal inédita em comparação com todos os sínodos anteriores.

O papa Francisco quer que a cúpula seja vivida no espírito da colegialidade episcopal e da sinodalidade eclesial, e não seja uma simples celebração: e Francisco tem toda a solidez para dizer também que o Sínodo se realiza segundo a grande tradição cum Petro et sub Petro, ou seja, com o papa presente, e ao qual, como sucessor de Pedro, cabe pessoalmente o discernimento final.

Quanto ao tema do Sínodo, ele é incandescente, porque está em jogo não tanto uma disciplina diferente em relação ao matrimônio, à família e à sexualidade, mas o rosto do Deus invisível, um rosto que nós, cristãos, conhecemos apenas no rosto de Jesus Cristo, aquele que nos narrou, explicou, fez conhecer Deus.

Está em jogo o rosto do Deus misericordioso e compassivo, como está escrito no seu Nome santo dado a Moisés e como foi contado por Jesus, seu filho no mundo, que nunca castigou os pecadores, nem jamais os puniu, mas os perdoou todas as vezes que os encontrou, levando-os, assim, ao arrependimento e à conversão.

Não há dúvida de que, no cerne do confronto e do aprofundamento sinodais, estão as palavras de Jesus que não podem ser esquecidas nem muito menos adulteradas. Nos Evangelhos, de fato, diante do divórcio – permitido por Moisés, mas condenado, não nos esqueçamos, pelos profetas... –, Jesus não escolhe o caminho da casuística, mas remonta à intenção do Legislador e Criador, e nega qualquer possibilidade de ruptura do vínculo na história de amor entre um homem e uma mulher: "No princípio não foi assim... Os dois serão uma só carne... O que Deus uniu, o homem não separe!".
 Linguagem clara, exigente, radical, porque, na relação entre homem e mulher, ligados na aliança da palavra dada, está significada a aliança fiel entre Deus e o seu povo: se uma fidelidade é desmentida, a outra também não é mais crível. Mensagem exigente e dura, que os presbíteros deveriam anunciar às suas comunidades pondo-se de joelhos: "É uma palavra do Senhor, não nossa, que pede essa fidelidade. Nós a repetimos a vocês porque é nosso dever fazê-lo, mas a anunciamos a vocês de joelhos, sem presunção nem arrogância, porque sabemos que viver o matrimônio fielmente e no amor renovado é difícil, cansativo, impossível sem a ajuda da graça de Deus...".

Mas se esse é o anúncio evangélico que não pode mudar, continua sendo verdade que, na história, e particularmente hoje, esse vínculo nas histórias de amor nem sempre é assumido na fé, na adesão à palavra de Cristo e, contudo, às vezes se deteriora, se corrompe e morre.

Sim, entre cônjuges é preciso estar juntos até que um torne o outro bom, mas, se isso não acontece mais, depois de repetidas tentativas, então a separação pode ser um mal menor. E é aqui que, às vezes, pode iniciar uma nova história de amor que pode se mostrar portadora de vida, vivida na lealdade e na fidelidade, na partilha da fé e no pertencimento vivo à comunidade cristã.

Para aqueles que vivem nessa condição, não é possível celebrar outras núpcias nem contradizer o sacramento do matrimônio já celebrado, mas, se fazem um caminho penitencial, se mostram, com o andar dos anos, solidez no novo vínculo, não se poderia ao menos admiti-los à Comunhão que lhes dá a possibilidade de um viático portador de graça no caminho rumo ao Reino?

Segundo a doutrina católica tradicional, a eucaristia é sacramento também para a remissão dos pecados. O cardeal Martini se perguntava: "A pergunta se os divorciados podem receber a comunhão deveria ser invertida: como a Igreja pode vir em seu auxílio com a força dos sacramentos?". A resposta a essas perguntas só pode vir do papa, depois de ter escutado a Igreja, através do Sínodo.

Reflita-se também sobre um dado: por que padres, monges, religiosos que emitem uma promessa pública a Deus no coração da Igreja, embora tendo abandonado a vocação recebida e contradito os votos pronunciados – votos que São Tomás de Aquino dizia que a Igreja nunca pode dissolver –, podem participar plenamente da vida também sacramental da Igreja, enquanto aqueles que se encontram em outras situações de infidelidade são dela excluídos?

Essa parece ser uma injustiça de uma disciplina feita por clérigos que vivem mais ou menos bem o seu celibato e não conhecem a fadiga e as dificuldades do matrimônio...

O que espera, então, do Sínodo um católico maduro na fé? Que se confesse, de novo e de novo, a indissolubilidade do matrimônio, mas que se faça isso manifestando a misericórdia de Deus, indo ao encontro daqueles que, nessa exigente aventura, incorreu em contradição à aliança e convidando-os a caminharem na plenitude da vida eclesial.

O Deus cristão tem um rosto em que a misericórdia é imanente à justiça: é um Deus compassivo que, em Jesus, caminhou e caminha com quem está ferido, com quem está doente... é um Deus que quer que todos se convertam e vivam.

La Stampa, 12-10-2014.

*Enzo Bianchi é monge, teólogo, prior e fundador da Comunidade de Bose. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Amigos e amigas, está acontecendo em Roma o Sínodo Extraordinário dos Bispos sobre a Família. Certamente, um dos assuntos polêmicos é o da participação na Comunhão eucarística por parte dos divorciados que voltaram a se casar.


Se Jesus deu a Comunhão a Judas Iscariotes, com maior razão daria aos separados e divorciados que voltaram a se casar

 

Marco Antonio Velásquez Uribe

Revista: Reflexión y Liberación - Chile

 

Entre os dias 5 e 19 de outubro próximo realizar-se-á em Roma a Assembléia Geral Extraordinária do Sínodo dos Bispos para a Família, convocado pelo papa Francisco.

As expectativas do Povo de Deus foram realçadas com o chamado “Questionário do Papa” que, apresentado em 2013, surpreendeu pela audácia evangélica ao entrar nas profundezas da vida familiar.

Revelava, assim, a intenção clara da Igreja por compartilhar “as alegrias e as esperanças, as tristezas e asangústias dos homens e mulheres de nosso tempo, sobretudo dos pobres e daquele que sofrem” (GS 1).

Em seguida, as respostas, analisadas no “InstrumentumLaboris” (publicado no dia 26 de junho de 2014), deixaram a descoberto o que todos intuíam: a enorme brecha entre os ensinamentos morais da Igreja e a vida dos fiéis; em síntese, a conhecida diferença entre a ortodoxia e a ortopráxis.

 

No intervalo de tempo transcorrido entre a convocação do Sínodo e o começo do mesmo aconteceram uma séria de fatos significativos, que trouxeram à tona a existência de um grave conflito no interior da Igreja e que se refere ao chamado problema da “comunhão dos separados e divorciados que voltaram a se casar”. O conflito atualiza as diferenças entre aqueles que defendem as questões dogmáticas e os pastoralistas. Trata-se de esclarecer teologicamente o âmbito da Lei e o da Misericórdia. Replica-se, assim, a mesma polêmica com a qual o Filho de Deus era reiteradamente confrontado pelos mestres da Lei.

 

Antecipando-se em alguns dias à convocação do Sínodo, o cardeal Gerhard Muller publicou no L´Osservatore Romano (23 de outubro de 2013) o documento “A força da graça”, onde enfatizava a doutrina da indissolubilidade do matrimônio. Poucos dias depois (7 de novembro de 2013) o cardeal Reinhard Marx declarou publicamente que “o Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé não pode acabar com adiscussão” sobre o tema dos divorciados que voltaram a se casar, por ser matéria do esperado sínodo. Posteriormente, no consistório realizado em fevereiro de 2014 em Roma, o cardeal Walter Kasper expôs um extenso documento, encarregado pelo próprio papa Francisco, para iluminar os caminhos de abertura à comunhão dos separados e divorciados que voltaram a se casar. O papa, no dia seguinte, elogiou efusivamente o trabalho do cardeal Kasper dizendo que “isto se chama fazer teologia de joelhos”, numa clara alusão à teologia da misericórdia.

 

Faltando poucos dias para o Sínodo, um grupo de cinco cardeais (Gerhard Muller, Raymond Burke, Walter Brandmuller, Carlo Caffarra e Velasio de Paolis) e quatro teólogos (Robert Dodaro, John Rist, Paul Mankowski e Cyril Vasil) publicaram o livro “Permanecendo na verdade de Cristo: matrimônio e comunhão na Igreja”, destinado a dar uma resposta contundente ao documento do cardeal Kasper que sustenta o espírito de misericórdia do papa. Recentemente, no dia 17 de setembro, o mesmo cardeal Kasper manifestou com gravidade a surpreendente irrupção deste livro, dizendo “nunca me havia acontecido nada parecido em toda minha vida acadêmica”, e acrescenta que “durante o Concílio Vaticano II e no pós-Concílio existiam asresistências de alguns cardeais frente a Paulo VI, inclusive por parte do então Prefeito do Santo Ofício. Mas, se não me equivoco, não com esta modalidade organizada e pública”.

Articula-se assim uma oposição organizada contra a práxis da misericórdia. E sendo a misericórdia o selo distintivo do pontificado de Francisco, fica assim também definida a oposição organizada para com seu pontificado.

 

O argumento em favor da abertura (fundado na misericórdia) recorre a considerações escatológicas frente à realidade do fracasso conjugal. Em tal caso apresenta a obrigação da Igreja de oferecer uma “tábua de salvação” que permita às pessoas envolvidas, enfrentar as exigências da vida familiar.  Justifica assim a acolhida de alguns casos de segundas núpcias que permitiriam saltar os impedimentos que a inquestionável indissolubilidade conjugal impõe. Paralelamente busca-se expedir os processos de anulação matrimonial, removendo assim um obstáculo para o acesso à Comunhão Sacramental.

 

 

É evidente que o núcleo do conflito teológico enraíza-se no princípio da indissolubilidade do matrimônio; um conselho que emana do direito natural como a melhor garantia para fundar o núcleo essencial da família e da sociedade, referendado pelo mesmo Jesus Cristo, que recorda a Lei mosaica dizendo: “O que Deus uniu, ohomem não separe” (Mt 19,6).

Se a indissolubilidade do matrimônio é inquestionável, os argumentos em favor da abertura parecem aproveitar daoportunidade para habilitar a centralidade da misericórdia que permita aos separados e divorciados recasados o acesso à comunhão .

Mas, é a indissolubilidade o núcleo do problema do acesso à Comunhão Sacramental?

O núcleo da dificuldade para ter acesso à Comunhão Sacramental parece estar na condição dogmática da faculdade para comungar, qual seja, o comungante encontrar-se em estado de graça, vale dizer, livre de pecado mortal.

 

No Novo Testamento, onde nasce a Comunhão Sacramental, não existe nenhuma evidência que indique que para receber o Corpo e o Sangue do Filho de Deus seja necessário estar em estado de graça. Mais ainda, na Primeira Comunhão da história, ocorrida por ocasião da Última Ceia (na instituição da Eucaristia), comunga-ram com Jesus Cristo seus doze apóstolos, incluído Judas Iscariotes. Alguns Evangelhos dão conta que Judas já não estava em estado de graça no momento de comungar.

Com efeito, o Evangelho de Lucas relata: “Satanás entrou em Judas, chamado Iscariotes, que era um dos Doze.Então ele saiu, e foi tratarcom os sumos sacerdotes e os oficiais da guarda do Templo, sobre a maneira de entregar Jesus”.  (Lc 22,3-4)

 

Judas, levando em seu coração o gravíssimo pecado da traição, tem acesso à Comunhão Sacramental com pleno consentimento do próprio Filho de Deus, que, logo após compartilhar “o cálice da nova aliança”, adverte seus apóstolos: “Cuidado! A mão do homem que me atraiçoa está servindo comigo, nesta mesa. Sim, o Filho do Homem segue o caminho que lhe foi fixado; mas, ai daquele que o entrega!”(Lc 2,21-22).

(Inclusive no Evangelho de João, o apóstolo explicita um gesto significativo de Jesus: “Tendo umedecido o pão,ele o toma e dá a Judas Iscariotes, filho de Simão. Nesse momento, depois do pão, Satanás entrou em Judas. Então Jesus lhe disse: ‘o que tens a fazer faze-o depressa” (Jo 13,26-27).

Então, é evidente que o próprio Jesus Cristo, “o que tira o pecado do mundo”, estava em total consciência do grave pecado de Judas; condição que não impediu que o Filho de Deus lhe concedesse o sacramento da comunhão. Como consequência, Jesus Cristo deu a Comunhão Sacramental a Judas Iscariotes, embora tivesse plena consciência de que não estava em estado de graça.

 

Com o gesto eloquente de Jesus Cristo na Última Ceia, fica o desconcertante testemunho que Jesus não impede a Comunhão Sacramental em um caso de pecado de extrema gravidade, como é a traição de Judas.

Logo, tudo indica que o Filho de Deus não negaria o sacramento da comunhão às pessoas que com muitíssimo menos culpa, fracassaram na vida, como é o caso das pessoas separadas e divorciadasque voltaram a se casar.

Assim, fica claro que Jesus Cristo ao instituir o Sacramento da Eucaristia, elevou também a misericórdia à altura do sinal mais sublime da acolhida cristã manifestado na Comunhão. Nesse momento solene, Jesus Cristo – Sumo e Eterno Sacerdote – testemunha com fatos o que ensinou previamente: “Não são os que tem saúde que precisam de médico, mas sim os doentes. Ide, pois, e aprendei o que significa: Misericórdia é que eu quero, e não sacrifício. Com efeito, eu não vim chamar os justos mas os pecadores” (Mt 9,12-13). Atualizava assim aquela advertência profética de Oséias: “Quero misericórdia e não sacrifícios” (Os 6,6).

 

Visto assim, fica claro que Jesus Cristo, antes de padecer, estava deixando a seus apóstolos um novo mandamento pastoral:“Não negarás meu Corpo e meu Sangue”. Porque é impensável imaginar Jesus Cristo negando a Comunhão Sacramental a uma mulher ou a um homem, deixando-os famintos e sedentos do amor sacramental de Deus, especialmente quando mais precisam do alimento fecundo de seu Corpo e de seu Sangue para animá-los a assumir os duros desafios da vida e das obrigações familiares.

 

 

www.reflexionyliberacion.cl

Amigos e amigas,próximo domingo é festa de N.S. Aparecida.Segue sugestão para rezar o evangelho indicado para este dia.


...E A MÃE DE JESUS ESTAVA PRESENTE

 

Entre os personagens próximos de Jesus, poucos como Maria. Dela não se diz muita coisa nos evangelhos, mas o que se diz é surpreendente. Mãe, testemunha, seguidora, servidora, presente... Uma mulher fiel a Deus e capaz de ver mais além do cotidiano e estabelecido; uma mulher capaz de ver diferente.

Onde outros viam uma loucura, Maria viu um horizonte; onde muitos tinham visto uma transgressão, ela intuiu a promessa de Deus; onde tantos teriam estremecido diante da proposta de Deus e teriam exigido mais provas, mais seguranças ou mais garantias, Maria exclamou: “faça-se”. Onde a lei era a referência e a condenação, ela foi capaz de cantar a grandeza do Deus que está com os mais simples e quebra as estruturas estabelecidas; onde tudo era convencional, Maria, com uma acolhida feita de valentia, confian-ça e entrega, foi capaz de colaborar com Deus de modo radical; onde todos viam o desenlace frustrante e triste deuma festa de casamento, ela “viu e antecipou a hora de seu Filho”... Porque estava sempre presente.

 

Porque estava presente a Deus, Maria fez-se presente nos momentos decisivos de seu Filho, bem como fez-se presente na vida das pessoas. Uma presença que faz a diferença: presença solidária, marcada pela atenção, prontidão e sensibilidade, próprias de uma mãe.

Sua presença não era presença anônima, mas comprometida; presença expansiva que mobilizou os outros, assim como mobilizou seu Filho a antecipar sua “hora”.

Nas bodas de Caná, a novidade está numa nova forma de presença de Maria, que não se encontra interessada, em princípio, por fazer coisas, por resolver problemas, senão para traçar uma presença. Ela não está aí para “arrumar” as coisas, mas para escutar e compartilhar um momento festivo. Ela se encontra presente, num gesto de solidariedade que transcende e supera toda atividade.

 

Trata-se de uma presença que é “música calada” nos lugares cotidianos e escondidos, que sabe enterne-cer-se e escutar as inquietações que procedem desses lugares. Uma presença que descobre o próximo no próximo, que sabe resgatar a solidariedade na vida cotidiana. Uma presença que se manifesta na ausência de recompensa ou de interesse próprio.

Em definitiva, Maria descobre que é chamada a dar de graça o que de graça recebeu. Sabe entrar em sintonia com os sentimentos dos outros e construir vida festiva, e vida em abundância.

Sua presença revela um gesto profético de solidariedade e de anúncio: presença que aponta para uma outra presença, a de seu Filho. Sua presença dignificae revela um novo sentido à presença de Jesus numa festa de Casamento.

 

A presença silenciosa, original e mobilizadora de Maria des-vela e ativa também em nós uma presença inspiradora, ou seja, descentrar-nos para estar sintonizados com a realidade e suas carências. Tal atitude nos mobiliza a encontrar outras vidas, outras histórias, outras situações; escutar relatos que trazem luz para nossa própria vida; ver a partir de um horizonte mais amplo, que ajuda a relativizar nossas pretensões absolutas e a compreender um pouco mais o valor daquilo que acontece ao nosso redor; escutar de tal maneira que aquilo que ouvimos penetre na nossa própria vida; implicar-nos afetivamente, relacionar-nos com pessoas, não com etiquetas e títulos; acolher na própria vida outras vidas; histórias  que afetam nossas entranhas e permanecem na memória e no coração.

Disto se trata: aprender dos outros; recarregar nossa própria história de um horizonte diferente, no qual cabem outras possibilidades e outras responsabilidades; descobrir uma perspectiva mais ampla que ajuda a formular melhor o sentido de nossa própria vida.

 

Evidentemente, nem toda presença é “saída de si”; uma pessoa pode passar pelos lugares sem que os lugares deixem pegadas; ela pode tocar a superfície das coisas e das vidas, mas esse contato deixa pouca memória e que logo desaparece. Com isso não há encontro nem aprendizagem.

Quando a pessoa se faz presença que desemboca no verdadeiro encontro, ela se expõe, se faz vulnerável, se deixa afetar... Mas essa é a oportunidade para transformar os olhares e os gestos de quem se atreve a sair dos horizontes conhecidos.

São muitos os encontros que são fecundos para quem se faz presente e para quem acolhe esta presença. São muitas as pessoas cujas vidas ganham em seriedade, em profundidade, em compaixão e em alegria autêntica ao fazer esse caminho de saída de si. São muitas as pessoas que, em contato com vidas e histórias diferentes e reais, compreendem melhor suas próprias vidas e sua responsabilidade.


O seguimento de Jesus nos mobiliza e nos expande na direção dos outros.

“O discípulo-missionário é um descentrado: o centro é Jesus Cristo que convoca e envia. O discípulo é enviado para as periferias existenciais. A posição do discípulo-missionário não é a de centro, mas de periferias: vive em tensão para as periferias” (Papa Francisco)

Quê significa fronteiras geográficas e existenciais”. É preciso sair dos limites conhecidos; sair de nossas seguranças para adentrar-nos no terreno do incerto; sair dos espaços onde nos sentimos fortes para arriscar-nos a transitar por lugares onde somos frágeis; sair do inquestionável para enfrentarmos o novo...

É decisivo estar dispostos a abrir espaços em nossa história a novas pessoas e situações, novas vivências, novas experiências... Porque sempre há algo diferente e inesperado que pode enriquecer-nos...

A vida está cheia de possibilidades; inumeráveis caminhos que podemos percorrer; pessoas instigantes que aparecem em nossas vidas; desafios, provocações, aprendizagens, motivos para celebrar... lições que aprenderemos e nos farão um pouco mais lúcidos, mais humanos e mais simples...

A fronteira passa a ser terra privilegiada onde nasce o “novo”, por obra do Espírito. Ali aparece o broto original do “nunca visto”, que em sua pequenez de fermento profético torna-se um desafio ao imobilismo petrificado e um questionamento à ordem estabelecida.
 
 
Isso pede de todos nós uma atitude de abertura e de deslocamento frente ao outro, o que implica colocar-nos em seu lugar, deixar-nos questionar e desinstalar por ele... Nosso desafio não é fugir da realidade, mas aproximarmos dela com todos os nossos sentidos bem abertos para olhar e contemplar, escutar e acolher, percebendo no mais profundo da mesma a presença ativa do Deus que nos ama com criatividade infinita, para encontrar-nos com Ele e trabalhar juntos por seu Reino.
 
 
O discípulo missionário não é aquele que, por medo, se distancia do mundo, mas é aquele que, movido por uma radical paixão, desce ao co-ração da realidade em que se encontra, aí se encarna e aí revela os traços da velada presença do Inefável.“Encontrar, a experimentar Deus em todas as coisas... a Ele em todas amando e a todas n’Ele” (S. Inácio).
Deus emerge na densidade das coisas, das pessoas e dos acontecimentos.
Quem está em sintonia com esta Presença, vive uma festa permanente.
 
Texto bíblico :Jo 2,1-11
 
Na oração: por onde você tem transitado normalmente? Somente por
lugares conhecidos, junto às pessoas amigas? Sua presença eleva, anima, desperta os outros?
Você se deixa afetar pelas presenças provocativas? os pobres? os marginalizados? as minorias?