segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

EM MARIA, ENCONTRAMOS NOSSO “SIM” ORIGINAL

 


 

“Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo!” (Lc 1,28)

 

Dois olhares dirigidos a Maria podem nos ajudar hoje a considerar nossa maneira original de estar e viver em Advento: o olhar à mulher que ama e o olhar à mulher que diz “sim”.

Pois o Advento é tempo de Maria, tempo de esperança e acolhida, tempo de espera. Maria foi mãe, testemunha, seguidora..., mas sobretudo foi Mulher do “sim”, do compromisso sincero e real, Mulher de fé capaz de arriscar tudo e deixar-se conduzir por Aquele que a olhou com misericórdia.

Na Anunciação, podemos encontrar Maria numa atitude de escuta, de receptividade, de abertura, de sim. Tal atitude vai colocá-la em contato com o Anjo, com o Mensageiro, com Gabriel.

Entrando em contato com este anjo, ela vai fazer a experiência de uma alegria fontal. A primeira palavra do anjo é, em grego, “kaire te”, que quer dizer: “Alegra-te!”.

A primeira palavra pronunciada pelo anjo não é uma simples saudação convencional.

É um imperativo, um convite à alegria. Na saudação “alegra-te” ecoa o júbilo pela chegada da salvação, nas palavras de Sofonias: “Exulta, filha de Jerusalém e, de todo o coração, dá gritos de alegria!” (3,14). Convidada pessoalmente a alegrar-se, Maria é também a representante e portadora da alegria de todo o Povo de Deus pela vinda do Salvador, anunciada pelos profetas.

 

Maria fica admirada e surpresa, não pelo que vê, mas pelo que ouve. As palavras da saudação não são só totalmente inesperadas para ela, mas soam aos seus ouvidos como absolutamente novas, literalmente in-auditas.  Por isso, “pôs-se a pensar, a refletir, a dialogar consigo mesma, perguntando-se qual seria o sentido da saudação”.

Maria não duvida da ação surpreendente de Deus e nem pede um sinal. Acolhe com fé cada uma das promessas sem pôr obstáculo algum à presença do mesmo Deus nela. Mas, porque não compreende como acontecerá tudo isso nela, pergunta: “Como vai ser isso se eu não conheço homem algum?”

O mesmo Espírito que, no princípio da Criação, pairava sobre as águas, e que havia sido prometido para o futuro como descendo do alto, repousa agora em Maria. E ela se deixa envolver pela “sombra” do Espírito

A expressão “cobrir com sua sombra” significa, originalmente, não uma presença estática, mas a presença ativa e eficaz de Deus no meio do seu povo.

A presença divina, a “glória do Senhor” que repousou sobre a Tenda no deserto e mais tarde sobre o Santo dos Santos no Templo de Jerusalém, vai repousar agora sobre o santuário vivo que é o corpo da virgem de Nazaré, cumprindo as promessas da salvação e inaugurando a Nova Criação.

Os Antigos viam nesta experiência da “sombra” aquilo que dá nascimento à Luz. Neste sentido, Maria é o símbolo de toda a terra, de todo o universo, que acolhe em sua sombra, em seus limites, a semente da Luz.

 

Maria encerra o diálogo autodenominando-se “a serva do Senhor”. A palavra serva descreve um estado de entrega, um estado de confiança na presença mesma d’Aquele que É.

Sua resposta, embora dinamizada pela graça, é uma resposta livre na fé. O fiat de Maria é o começo da Nova Aliança de Deus com a humanidade.

O seu “sim” revela a grandeza, a beleza e a responsabilidade das decisões da liberdade humana.

A partir disso, podemos interrogar o Evangelho e ver como este estado de sim, como este estado de confiança original, se encarna na vida concreta de Maria.

Antes de mais nada, pensamos em Maria não somente como uma personagem exterior, mas como uma realidade interior, como referência inspiradora, como abertura à presença d’Aquele que vive e é gerado nela, minuto a minuto. E o caminho de Maria na história pode ajudar-nos a compreender nosso próprio caminho; pode ajudar-nos, sobretudo, a compreender a que ponto nós estamos entulhados de memória mórbida, a que ponto é difícil para nós dizer sim e viver uma entrega confiante.

 

Charles Peguy dizia que “Maria é mais jovem que o pecado”. Isto quer dizer que existe em todos nós uma dimensão mais jovem e mais profunda, não contaminada pelo ego: trata-se da beatitude original.

Falamos demais sobre o pecado original e muito pouco sobre a bem-aventurança original. Assim, os Antigos viam em Maria um arquétipo da bem-aventurança original, ou seja, a relação de intimidade com a Fonte do seu ser original, que é o próprio Deus.

Com Maria é preciso entrar em contato com a nossa confiança original, mais profunda que nossos medos e nossas resistências. É preciso entrar em contato com esta dimensão marcada pelo silêncio, com esta sombra na qual a Luz vai ser gerada. É preciso nos deixar conduzir pelo Sopro da Vida, para viver mais intensamente e gerar vida ao nosso redor. 

Existe em nós uma realidade mais profunda, inocente, fonte de toda inspiração, desejo, criatividade... Podemos dizer que em nós habita uma “Maria”, que, em meio ao nosso caos interior (feridas, sentimentos negativos, traumas...) des-vela o que em nós é imaculado, puro, capaz de entrar em sintonia com a presença angelical e dizer “sim”, na confiança radical.  Maria é a nossa verdadeira natureza, é a nossa verdadeira inocência, aberta à presença do divino. Infelizmente, a cultura da superficialidade na qual vivemos, nos seduz e nos faz perder o caminho que dá acesso ao que é mais “cheio de Graça” em nosso eu profundo.

Maria é o estado de confiança original. Precisamos, também nós, encontrar esta confiança original.

Certamente cada um de nós já teve a oportunidade de fazer a experiência deste estado: quando brota em nós um sentimento oceânico de alegria, plenitude, consolação..., quando sentimos o impulso para sair de nós mesmos e viver uma presença solidária, quando a gratidão ilumina nossa vida, quando não nos deixa-mos determinar pelo rigorismo, perfeccionismo e moralismo..., quando alimentamos a confiança n’Aquele que É, quando nós dizemos sim aos Mensageiros angelicais que nos envolvem...

 

À palavra-ação de Deus corresponde a palavra-ação de Maria. O anjo permanece na presença dela até que ela diz a última palavra.

O “sim” de Maria, seu modo livre de consentir, abre as portas à humildade compassiva de Deus. Nela, Deus se humaniza, se faz “carne” e assume toda a condição humana, iluminando-a e divinizando-a.

Deus pede o consentimento a uma jovem aldeã para acontecer em seu seio a humanização do Filho divino.

Dizer “sim” significou, para ela, embarcar-se em uma aventura cujo fim não se adivinhava, significou romper o projeto de sua vida pessoal que tinha, como qualquer jovem de sua idade.

E Maria não pediu tempo para assegurar-se fazendo uma consulta familiar; quando sentiu que era vontade de Deus, pronunciou um “sim” definitivo, através do qual o Filho de Deus se fez “vizinho” da humanidade, em Nazaré. Assim, nas pontas dos pés, através do seio de uma jovem humilde, Deus entrou na história humana.

Para o Antigos padres da Igreja, Maria é o sim original. E este sim é mais profundo que todos os nossos nãos. É preciso também reencontrar em nós mesmos aquilo que diz sim à vida, quaisquer que sejam as formas que esta vida tomar. Não é fácil reencontrar este sim. Na maior parte do tempo estamos na descon-fiança, na dúvida, no temor... Isto quer dizer que temos muitas memórias doentias que alimentam medo, que nos fazem resistir àquilo que a Vida nos propõe para viver.

Devemos, então, passar por um estado de silêncio de nossas memórias, de silêncio de nossa mente, para encontrar esta confiança original. Esta atitude é a da “inocência original”.

 

Texto bíblico:  Lc 1,26-38

 

Na oração: O primeiro “sim” que recebemos e, às vezes, o último que descobrimos, acontece em nosso nasci-

                     mento. É o “sim” primeiro de Deus à nossa vida, a afirmação profunda que nos faz existir; neste “sim” de puro amor, respiramos e somos.

O segundo “sim” é aquele que nos faz mais parecidos a Deus. É o sim oblativo, aberto, que prolonga o “sim” de Maria e que se revela no deslocamento junto aos outros para afirmar suas vidas, cuidando e ativando suas potencialidades. É o sim que Isabel deu a Maria quando esta foi a visitá-la. Está feito de reconhecimento, respeito e alegria pelo trabalho secreto de Deus em cada um(a): “Bendita(o) és tu”.

- Revisitar os “sins” que fizeram diferença na sua vida, que despertaram a criatividade e a sensibilidade para com os outros, que inspiraram e trouxeram um novo dinamismo à própria existência.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Deixar o Advento des-velar nosso “eu verdadeiro”

 


 

“Quem és, afinal? Temos que levar uma resposta para aqueles que nos enviaram. O que dizes de ti mesmo? (Jo 1,22)

 

Vivemos um tempo de múltiplas imagens e estímulos, de novas versões e mudanças radicais, de diversidade de comunidades, religiões e línguas, de quebras de paradigmas em todos os campos da humanidade, de profundas transformações sociais, de rompimento de fronteiras... Este contexto de pluralidade faz com que todos se perguntem sobre sua identidade: “quem sou eu? quem somos nós?”

O ser humano está sempre em busca de sua identidade; não lhe basta existir, ele quer saber quem é, para se compreender e encontrar o sentido de sua própria existência.

Como cristãos que somos, não estamos protegidos dos ventos do momento em que vivemos; quem não se define, morre. Por isso, somos desafiados a falar de nossa identidade e adentrar-nos nas profundezas da nossa vida, para apresentar, num contexto global e totalmente mudado, qual é o nosso “rosto” hoje.

Frente às nossas falsas imagens e mentiras, frente às mascaras que nos escondem, frente às convenções sem alma, frente aos silêncios cúmplices, frente à impossível busca da perfeição, frente à negação das nossas próprias capacidades..., o tempo do Advento nos inspira a despojar-nos de capas ridículas que nos cobrem, para deixar aflorar nossa verdade desnuda, nosso “eu original”. É preciso atrever-nos a ser nós mesmos, a partir do mais interior e nobre. Há um grito que se eleva das profundezas existenciais: Viva!

 

O evangelho deste domingo quer ser um convite a “desvelar nossa identidade”, descobrindo o que é mais original em nós, lançando-nos a superar aquilo que talvez nos impeça manifestar o que somos e expressar aos outros a riqueza que trazemos dentro de nós...

Sabemos que o ser humano age de acordo com a visão que tem de si mesmo. A percepção íntima da própria identidade é o supremo motivo e explicação das opções e mudanças importantes na vida pessoal.

João Batista tem consciência de sua identidade profunda e por isso proclama: “eu sou a voz que grita no deserto”. Ao mesmo tempo, deixa transparecer uma íntima sintonia entre sua identidade e sua missão; ou melhor, sua identidade se visibiliza na missão de “aplainar o caminho do Senhor”.

Minha identidade determina o meu comportamento. “O que eu sou determina o que eu faço”. O “quem sou eu?” é a base do “que faço eu?”  Todo ser age de acordo com sua própria auto-imagem.

O agir se segue ao ser. Assim, conhecendo a mim mesmo acabo conhecendo o segredo de minhas ações e, fazendo emergir o que é mais nobre em mim, posso dirigir o curso dos meus atos, tornando-os mais oblativos e des-centrados.

“Eu sou as minhas ações”, porque o que “eu sou” é o que positiva e visivelmente aparece em minhas ações. Quanto mais sou eu mesmo mais amplo é o alcance de minhas atitudes e mais transcendente o sentido de minhas opções.

 

Portanto, da identidade, assumida e vivida, é que brota a missão.

A identidade faz parte da missão, está em função dela, a inspira, a anima e é por ela configurada.

Com isso fica claro que a Identidade e Missão são inseparáveis, assim como a unidade insuperável entre ser e agir. Não é suficiente continuar adiante com a missão se não o fazemos como João Batista: abrasado com o amor de Deus, deixa transparecer sua verdadeira identidade na missão de ser o “precursor” do Messias.

Ter uma missão sem uma identidade que a inspire é cair no ativismo, na tarefismo, na ação insensata, ou seja, sem sentido, sem motivação e sem horizonte (para quê? para quem?).

Por outro lado, uma identidade que não se expressa na missão é vazia, é carente de humanidade e se fecha num intimismo alienante. Portanto, a identidade já é missão e a missão é revelação da identidade.

A identidade nos dá um rosto, centra-se tanto no ser como no fazer.

 

Toda pessoa é um mistério para si mesma e para os outros. E quanto mais rica for sua vida, mais profundo o mistério. Mas é no coração que está a fonte, a origem e o mistério do ser humano.

O coração é a expressão da pessoa em sua interioridade e totalidade.

É no coração que se origina a necessidade de comunicação, de relacionamento e de comunhão.

É preciso ter a coragem de mergulhar até o mais profundo de si mesmo, em busca dessa luz infinita que emerge de dentro, quando se tira tudo o que é máscara e revestimento. O “eu original” é livre, criativo, transparente, iluminado... Ele escolhe os melhores caminhos que levam à plena realização de si e à transcendência.

Se a maneira pela qual nos conhecemos determina a maneira pela qual nos comportamos, quanto mais nós nos conhecemos e a tudo o que existe dentro de nós, melhor poderemos orientar nossa vida e dirigir conscientemente nossas opções.

Somos ainda, em grande parte, uma “terra desconhecida” para nós mesmos, e a viagem de descoberta é como a viagem imaginária a uma nova terra, estranha e bela, que desperta assombro frente aos seus encantos e à novidade de suas mil maravilhas. Perceberemos, depois, com surpresa e alegria, que a bela terra nova a que chegamos sem saber é nosso próprio país natal esquecido, subestimado e abandonado. A redescoberta de nós mesmos é a maior e sem dúvida a mais gratificante aventura de nossa vida.

Redescobrindo a nós mesmos, vamos encontrar o nosso lugar na história. Quanto melhor conhecemos o nosso verdadeiro ser, melhor será o valor de nossa vida para os outros.

 

De onde minha identidade ganha seus contornos originais? No mistério da alteridade, no encontro com o outro que me provoca a ser. A alteridade está no centro da construção da identidade, porque esta não se acha totalmente dada (como a existência), mas está para ser construída.

A identidade de João Batista é realçada pela alteridade do Messias que “está no meio de vós...; e eu não mereço desamarrar a correia de suas sandálias”.

A alteridade é fator constitutivo da identidade. O outro não é o inimigo, o intruso, mas facilitador de minha identidade. O outro é exatamente aquele que, justo por sua alteridade, chama-me, convoca-me e assim me faz sair do enclausuramento em mim mesmo. Aqui se revela o dinamismo mobilizador presente no pró-prio nome

Cada um de nós tem um nome, que é próprio, não comum. É de uma pessoa. Ele expressa o nosso ser,  indica uma missão a realizar, uma vocação, um apelo a responder.. Somos chamados. É isso que signi-fica ter um nome. É preciso crescer na consciência de que o próprio nome tem uma história e manifesta uma identidade única, irrepetível, original. O nome próprio está relacionado com nossa realidade pessoal, responsável, criativa e livre.

Na Bíblia, o nome é algo dinâmico, é um programa. A troca de nome implica uma missão que deve ser realizada pela pessoa (Gen, 17,5; Jo. 1,42).

Um nome novo: uma aventura que começa; uma história a ser construída. Nosso nome secreto Deus o conhece. Ter recebido um nome de Deus significa tomar um lugar na história, uma missão a cumprir.

 

Texto bíblico:   Jo 1,6-8.19.28

 

Na oração:  Diante da presença de Deus, procure estar aberto ao

                      contato com a própria realidade interior, para que venha à superfície aquilo que o sustenta e dignifica o seu viver.

- Dirija seu olhar para o que é mais íntimo em você, onde nascem sentimentos e valores, desejos e atitudes... onde você é convidado a se alegrar com os rastros da Graça. 

- Qual é a verdade original presente no seu nome?

- Quê você acredita ser o mais autêntico em sua maneira de ser e viver?