A
RENÚNCIA QUE NOS HUMANIZA
“Se alguém quer me
seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga” (Mt
16,24)
O tema do seguimento é central em todos os
Evangelhos. Trata-se de abandonar qualquer outra maneira de se relacionar com
Deus e com os outros, e entrar na dinâmica espiritual que Jesus manifesta em
sua vida. É identificar-se com Ele em sua entrega total aos outros, sem buscar
para si nada que possa ter cheiro-resquício de poder e glória.
Jesus é realista.
Como todos os mestres espirituais, mostra a senda da vida, que nos permite
escapar da confusão e do sofrimento, para reconhecer-nos na nossa verdadeira
identidade, espaço de verdade, de liberdade, de unidade e de comunhão.
A oferta de Jesus é
um chamado à liberdade: “se alguém quer me seguir...” Caminhar com Ele nos liberta da
auto-suficiência estéril e do auto-centramento que nos fecha. O seguimento de
Jesus pede “descentrar-nos” de nós mesmos para sermos agentes do novo e
criadores de futuro.
Aqui está o sentido da
expressão “renunciar a si mesmo”, erroneamente interpretada como autonega-ção,
automutilação e auto desprezo. Mas não é disso que Jesus fala. A palavra grega “aparneisthai”signi-fica“dizer
não, recusar-se”.
Aquele que o segue precisa dizer não às
tendências egocêntricas do seu interior, que querem fechá-lo em si mesmo,
atrofiando e travando o impulso de vida.
Portanto, a
expressão “renunciar a si mesmo”, não significa negar o que
somos, mas o que julgamos ser e não somos. “Renuncar a si mesmo” não é negar a
vida, nem inclui uma atitude de resignação, auto-sacrifício ou morte em vida.
Jesus era um homem profundamente vital e defensor da vida.
“Renunciar a si
mesmo”
significa renunciar aquilo que nega a vida. Para ganhar a vida é necessário
perdê-la, e“perder a vida”significa“perder o eu”,ou seja, deixar de alimentar o “ego”. Porque, de
outro modo, quando vivemos para ele, estamos perdendo a vida, entrando na
confusão e no sofrimento.
A experiência
verdadeira do seguimento de Jesus só é possível se abrirmos mão do nosso ego, se não deixarmos que ele determine
a nossa vida; se seguir Jesus serve apenas para aumentar o nosso ego, nos
tornamos cegos e nos perdemos.
A mensagem de Jesus não
pretende desumanizar-nos, mas conduzir-nos à verdadeira plenitude humana.
A vida quer fluir, e quando
não flui, ela se atrofia. No entanto, no mais profundo de cada um de nós habi-ta uma
pretensão básica de querer “ser deus” – “sereis
comodeuses”.
É o pecado de raiz já dos nossos primeiros pais. É a tentação de querer ser
outro, de não aceitar ser dependente, de não aceitar-se como criatura, como
humano (frágil e limitado).
“Renunciar a si mesmo” é não deixar que o
impulso para a vaidade, a soberba... predomine; não deixar que o centro seja o
“eu”, mas Deus. Isso implica em “descer”, humildemente, ao próprio húmus.
Viver para o eu é gastar a vida para algo que vai
morrer, porque é só uma identidade relativa ou transitória. Descobrimos a Vida quando temos acesso à nossa
identidade mais profunda, aquela que nunca morrerá.“Perder
a sua vida por causa de mim”equivale
a reencontrar-nos nessa identidade quecompartilhamos com Jesus e com todos os
seres. “Perdemos” o eu, deixamos de viver egocentrados e nos descobrimos seres
em relação, inseparáveis dos outros.
Para entrar na escola de Jesus, precisamos
nos distanciar de toda ambição pessoal, daquela tendência que deseja possuir,
dominar, usar tudo para seus próprios fins, que sempre gira em torno de si
mesmo e que até tenta instrumentalizar o próprio Deus. Quem vive fixado em seu
pequeno eu, na realidade está
interessado apenas por sua autoproteção e na pretensão de “bastar-se a si
mesmo”.
“Renunciar a si mesmo”significa a morte do ego ou, com
mais propriedade, o final de nossa identificação com ele. O ego ou eu
não é negativo; mais ainda, teremos que cuidar para que seja um eu psicologicamente integrado. O que torna
enganoso e destrutivo é identificar-nos com ele.
Brota, então, uma compreensão
de que oeu se plenifica na medida em que rompe os laços do seu
isolamento, se alarga em direção aos outros, na doação, no serviço e no
compromisso solidário.
Na linguagem inaciana, a
morte do ego significa “sair do seu amor próprio, querer e interesse”.
O evangelho de hoje nos
instiga também a “tomar a cruz”. Da mesma forma, muitos têm
interpretado erroneamente a imagem de “carregar
a própria cruz”.
“Carregar a sua cruz”, porém, significa
acolher aquilo que diariamente cruza o meu caminho, ela é um símbolo para a
unidade de todos os pólos opostos (dentro de nós atuam o trigo e o joio, o risco
e a covar-dia, o desejo e o medo, o santo e o pecador...)
Tomar a cruz significa: aceitar-me com todas as minhas
contradições.Tomar acruz significa
abraçar-me com todas as minhas forças e todas as minhas fraquezas: os aspectos saudáveis e os doentios,
as qualidades vistosas e as feias, as partes imaculadas e as manchadas, os
sucessos e os fracassos, as coisas vividas e as coisas perdidas, o consciente e
o inconsciente...
Nesse sentido, a cruz deixa
de ser um “peso morto”, ou seja, uma cruz vazia, sem sentido, in-sensata...,
pois ela fecha a pessoa em si mesma, no seu sofrimento e angústia; não aponta
para o futuro, nem abre um horizonte de vida.
Fazer o caminho
contemplativo junto a Jesus que leva a Cruz da fidelidade nos ajuda a romper com as cruzes que nos afundam no
desespero, nos fracassos, nos traumas das experiências frustrantes...
Portanto, num primeiro
nível, a cruz é a consequência de
sermos fiéis à nossa verdadeira identidade de seguidores de Jesus. Em outro
nível, podemos dizer que ela revela simplesmente o destino do eu.
A sabedoria consiste em
que nosso eu seja “crucificado” em lugar de ser dono de nossa existência.
E o crucificamos na medida em que tomamos distância dele, o esvaziamos de toda
soberba e de toda preten-são de poder e prestígio, de
modo que não leve as rédeas de nossa vida.
Ao crucificá-lo, deixamos de viver
egocentrados e nos abrimos à verdade de quem somos nós.
Texto
bíblico:Mt 16,21-27
Na oração: “fazer memória” das cruzes da vida: elas
nos recordam que o dom da vida nos é dado não para que o
guardemos e o preservemos, mas para que se consuma e se expanda no serviço aos
outros.