quinta-feira, 26 de junho de 2014

RE-AVIVAR A CHAMA DO AMOR PRIMEIRO “Simão, filho de João, tu me amas mais do que estes?” (Jo 21,15)



RE-AVIVAR A CHAMA DO AMOR PRIMEIRO

 “Simão, filho de João, tu me amas mais do que estes?” (Jo 21,15)

O relato da última aparição de Jesus ressuscitado aos seus discípulos tem uma cena belíssima. Novamente juntos à praia e entre redes, como no começo; novamente diante de um trabalho cansativo e ineficaz, como tantas vezes; novamente a dureza de cada dia, em um cotidiano sem Jesus, como antigamente.
Há algumas brasas, que recordam aquela fogueira em torno da qual, alguns dias antes, o velho pescador jurou não conhecer Jesus, negando-o três vezes. Agora, junto ao fogo irmão, Jesus lavará com misericórdia a fraqueza de Pedro, transformando para sempre seu barro frágil em “pedra” fiel.

O verdadeiro milagre não é uma rede que se enche; o maior milagre é a traição covarde que se transforma em confissão de amor. Até três vezes o confessará. A traição desumanizou Pedro, fez com que ele fosse fundo no fracasso, obrigando-o a dizer com os lábios o que seu coração não queria. A fidelidade e o amor de Jesus, sua graça sempre pronta, o humanizará de novo, reconstruindo sua vida e reativando em Pedro a liderança para o serviço. Sem ironia, sem indiretas, sem pagamento de dívidas atrasadas. Por pura graça, gratuitamente
O Pedro que emerge deste contato terapêutico com Jesus é um Pedro corajoso, decidido, mas também muito mais amoroso, capaz de superar preconceitos antigos. Jesus percebe que por debaixo das cinzas da negação e da traição de Pedro está escondida a nobreza de um homem que precisa ser ativada.
A cura das feridas emocionais é antes de tudo um caminho novo, que envolve afeto, amizade, amor.
A vida de Pedro se transforma quando ele se deixa impactar por aquela pergunta tão desconcertante que Jesus lhe faz: TU  ME AMAS?
Jesus não examina Pedro sobre teología, Sagrada Escritura ou Direito Canônico, nem pergunta por suas qualidades organizativas do grupo ou se tem capacidade de exercer liderança. Jesus o examina somente em uma coisa, a que é essencial para todo seu seguidor e para toda a Igreja: se é uma pessoa com um coração “grande para amar”. Ele quer examinar o quanto Pedro se distingue por sua capacidade de amor.

A pescaria do lago Tiberíades aponta para a missão; o pastoreio cobrado de Pedro já visa a posteriores cuidados “pastorais”. O pastor precisa de um olhar amoroso que vai além de seu curral, e o pescador precisa de um olhar apurado para o discernimento diante da multidão dos peixes e da amplitude do mar.
Ao entardecer, Pedro se torna novamente pescador e sai da terra firme para o mar.
A comunidade eclesial vive concomitantemente a pescaria e o pastoreio, a missão em alto-mar e o cuidado pastoral em terra firme. Juntar as ovelhas e guardar os peixes são tarefas permanentes da Igreja.
O dom da rede cheia do pescador, no fim da noite, torna-se tarefa para o dia do pastor: discernimento, cuidado, partilha, testemunho, anúncio.

No nosso mundo existem muitas fogueiras e lugares onde Deus e os irmãos são traídos e, agindo assim, somos desumanizados, quebrados. Mas há outras brasas, aquelas que Jesus prepara ao amanhecer das nossas escuridões e depois das nossas fadigas, e nela nos convoca a uma nova intimidade com Ele, trans-formando-nos em humanidade cuidadora. Lá, permite-nos voltar a começar, na alegria do milagre da sua misericórdia transbordante. É a última pesca estéril, a das nossas fadigas e cansaços.
Feliz quem tiver olhos para reconhecê-lo, como João, e quem se deixar renascer, como Pedro!

O itinerário Pedro é um itinerário de humanização, encontro com a própria humanidade, uma aventu-ra para descoberta do “mundo interior”,  que é o coração, onde acontece o mais importante e decisivo em cada pessoa. Este é o nível da graça, da gratuidade, da abundância de dons e riquezas, onde a pessoa experimenta a unidade de seu ser e o sentido de sua existência. “Quem sou eu? Para quê vivo? Para quem? Qual é o meu lugar e missão no mundo?”
O coração de cada um está habitado de sonhos de vida, de futuro, de projetos; sente-se seduzido pelo que é verdadeiro, bom e belo; busca ardentemente a pacificação, a unificação interior, a harmonia com tudo e com todos...; sente ressoar o chamado da verdade, o magnetismo do amor, da plenitude; sente-se atraído por um desejo irreprimível de auto-transcendência, de crescimento, de maturidade...
“A pessoa amadurece constantemente no conhecimento, amor e seguimento de Jesus Mestre, se aprofunda no mistério de Sua pessoa, de Seu exemplo e de Sua doutrina (Doc. Aparecida, n. 277,c)

A Graça de Deus pode atingir-nos pelos caminhos mais variados e inesperados: penetrando pelas racha-duras de nossas quedas, pelas brechas abertas em nós pelas fragilidades e pelas grandes decepções ou soprando as últimas brasas que, sob as cinzas da desilusão, ainda permanecem acesas.
Não poucas vezes é por meio do vazio deixado em nós pelas crises e perdas que Deus se introduz em nossas vidas e acaba por transformá-las radicalmente.
A verdadeira questão é se permanece ainda suficiente fogo debaixo das cinzas para suscitar a energia necessária a fim de tornar nossa vivência cristã mais autêntica.
Cair na conta disso nos estremece profundamente. Todos e cada um de nós que vivemos hoje somos portadores do novo fogo. O novo sempre vem e sempre nos surpreende.
Para vislumbrar o amanhã, o que temos de fazer é olhar para nós mesmos e perguntar-nos:
“brota uma energia profunda no nosso coração? Percebe-se nele o desejo de um compromisso
com o Evangelho? Aí há lugar para a audácia, a coragem, o fogo novo...?
Ou se apagou o antigo fogo? É a vida agora simplesmente questão de suportar os dias
e agir por inércia ou ela é lugar da criatividade, do risco...?

Texto bíblico:  Jo 21,15-19

Na oração:  Só o “olhar amoroso” de Deus, que nunca desiste de buscar-
                      nos para reconstruir-nos, conhece as lonjuras dos caminhos que temos de percorrer para que nossos olhos sejam abertos.
Só o coração de Deus conhece a hora e o lugar em que nossos corações, mesmo estando duros e desesperançados, podem ser enternecidos e entusi-asmados de novo.
Sejam quais forem os motivos que nos levaram ao afastamento do Senhor, Ele vem ao nosso encontro percorrendo exatamente os mesmos caminhos que percorremos para nos afastarmos d’Ele.
Fazer “memória” dos momentos mais difíceis do nosso caminho onde Deus se revelou presente, reconstruindo a nossa história e dando sentido à nossa vida.

quarta-feira, 18 de junho de 2014

A FIDELIDADE DE JESUS NOS CONFLITOS



A FIDELIDADE DE JESUS NOS CONFLITOS

“Eis que eu vos envio como ovelhas no meio de lobos...” (Mt. 10,16)

Jesus é claro: apresenta-nos as consequências do seu seguimento. O Evangelho não é para acomodados, nem para aqueles que querem viver tranquilamente; tampouco é um sedativo ou um calmante, nem uma anestesia frente à realidade dividida e conflituosa. O anúncio e a vivência do Evangelho desestabiliza toda estrutura, social ou religiosa, fundada na injustiça e no poder.
Quem vive radicalmente o Evangelho, vai ser rejeitado, perseguido... Viver o Evangelho com “parresia” (palavra grega que o Papa Francisco usa muito), ou seja, com audácia, valentia e ousadia, significa centrar-nos em Jesus e deixar-nos conduzir pelo seu Espírito.
Tudo o que Jesus fez – suas atitudes, seus gestos, suas palavras –revela uma nova visão das coisas, um
novoponto de partida, uma nova ordem, um novo projeto.
Ele encarnou-se num mundo fechado, dividido, conflituoso... Fez-se presente no mundo do sofrimento e da exclusão, e a partir daí propôs um novo projeto. Vivendo e anunciando a Boa-Notícia do Reino, Jesus provocouconflitos.
Jesus se tornou um sinal de contradição porque permaneceu absolutamente fiel a uma mensagem, a um modo de agir e a uma missão que havia recebido do Pai e que devia realizar com critérios e opções coerentes com o conteúdo do seu Evangelho.

Tal Cristo, tal cristão. O conflito está na raiz da experiência cristã do seguimento de Jesus. O conflito faz parte da vida do cristão; não é um evento nem um acidente de percurso; é consequência de uma opção sincera e comprometida em favor do Reino.
O conflito perpassa nossa vida pessoal e comunitária, é permanente: conflitosno interior da Igreja, no interior das comunidades; conflitos de origem social, cultural e político; conflitos gerados pela missão entre os pobres e pela defesa de seus direitos; conflitos de consciência, de lealdade; conflitos que se originam da missão profética da Igreja...
Há uma relação profunda entre a conflituosidade na missão e a fidelidade ao Evangelho do Reino.
O “normal” do conflito na vida cristã confirma-se através da História da Igreja, onde os seguidores de Jesus experimentaram e assumiram toda espécie de conflitos como preço de sua fidelidade.

Deus também se revela no conflito; nos conflitos há uma manifestação do Espírito.
De uma forma por si mesma desconcertante e misteriosa, o conflito constitui um chamado do Senhor, uma graça para seguir Jesus perseguido, com uma opção mais madura e por motivos mais purificados segundo o Evangelho. O conflito é um catalisador ou amplificador que permite revelar o que está latente na pessoa ou na comunidade, e que em tempos de aparente harmonia não se manifesta.
Como chamado de Deus, o conflito é desconcertante e exige um discernimento permanente.
Tal é o desafio de todo conflito: ele pode nos despertar ou pode nos paralisar; ele pode provocar um retraimento e um retrocesso ou, pelo contrário,  dispor-nos para avançar. Enfrentá-lo exige de nós confi-ança para que desperte potencialidades latentes que ainda não se manifestaram.
Dada a condição humana e a realidade histórica, a crise e o conflito constituem freqüentemente a graça histórica que Deus nos concede para que amadureçamos na liberdade, na verdade e na justiça.
O conflito é, portanto, certeza da novidade que vem, quando o Espírito a suscita e a anuncia; ele pode ser ocasião para dar um salto qualitativo e de crescimento.

O conflito é um instante difícil, de parada, de mal-estar, de busca sofrida, mas é importante para purificar as pessoas, revigorar a mística e ressaltar os valores e ideais evangélicos de uma pessoa ou de uma comu-nidade. O conflito é um momento de redefinição, de adequação à realidade e de crescimento da própria mística do seguimento de Jesus
* Há pessoas que dissimulam o conflito para salvar a aparência da unidade.
* Outros recorrem ao poder. Eles eliminam o conflito, abafando, reprimindo, afastando os que causaram
o conflito...
* Aprendemos a “espiritualizar” os conflitos ou a ignorá-los, mas raramente a integrá-los.
* Como transformar o próprio conflito em fonte de fé, esperança e amor?
   Como crescer e amadurecer no conflito?
Como viver o Evangelho no conflito?
Como aprofundar nossa missão no conflito?



Como cristãos, devemos, em primeiro lugar, dar razão da esperança em meio a crises e conflitos.
Provavelmente, mais do que em outros tempos, temos de saber integrar todo gênero de conflitos na espiritualidade. O desafio está em integrar fidelidade e conflito à luz do Evangelho e da Tradição espiritual da Igreja, em uma mesma experiência de identificação com Jesus.

O conflito é um “ensaio da esperança”, uma certeza de que o Espírito “renova todas as coisas” sobre a face da terra.O Espírito de Deus atuou nos conflitos de Israel, inspirou as opções de Jesus, sustentou os primeiros cristãos no meio da perseguição e cremos que Ele continua atuando em nossos dias.
Valerá a pena, então, deixar-nos ensinar por Ele e colocar-nos a seu serviço.
Tendo  por referência a pessoa de Jesus e o modo de agir das primeiras comunidades cristãs, o seguidor de Jesus deve enfrentar com seriedade o sentido cristão dos conflitos pelos quais atravessa. Neles pode re-viver o caminhar de seu Senhor, pode manter o nível humano e cristão de seu comportamento e de seus sentimentos, para reagir sempre evangelicamente, e sustentar a confiança de que a força e a eficácia da prática cristã é maior que todos os perigos.

Aqui não se trata de criar e alimentar uma “espiritualidade conflitiva”, nem de supervalorizar o conflito.
Na verdade, o conflito e a Cruz nunca constituem um valor em si mesmos, e seria muito impróprio falar de uma “espiritualidade do conflito”.Mas podemos falar de uma “espiritualidade cristã no conflito”.
Deve ficar sempre claro que a única espiritualidade autêntica é a que brota do seguimento de Jesus e que, portanto, não é o conflito que santifica, mas a identificação com Jesus, sujeito de conflito e perseguição.
Esse seguimento de Cristo não representa somente a causa dos conflitos enfrentados por seus discípulos, mas também a referência de como viver os conflitos, humana e evangelicamente; é a referência de como viver a experiência do “conflito como espiritualidade”.

Texto bíblico:  Mt 10,16-33

Na oração:  Rezar as atitudes pessoais frente aos conflitos.
O conflito é certeza da “novidade” que vem; por isso exige um discernimento permanente.
Descobrir estratégias de crescimento para superar conflitos.
Descobrir a presença e o chamado de Cristo dentro do conflito.