“A barca, já
longe da terra, era agitada pelas ondas, pois o vento era contrário” (Mt 14,24)
Poderíamos dizer que o relato da “travessia
tormentosa” é uma síntese da história de nossas vidas.
Seguramente as primeiras comunidades cristãs,
como todos nós hoje, se identificaram facilmente com esse grupo de discípulos em
meio a uma tormenta que sacode com força a barca em que estavam. Viver com
Jesus ausente requer confiança absoluta, esperança firme e capacidade para
descobri-Lo presente em sua aparente ausência. No envio que recebemos d’Ele
para ir à outra margem é possível que nossa barca seja também sacudida pelos movimentos
das ondas dos medos que nos fazem ver fantasmas, impedindo-nos reconhecer o Ressuscitado,
caminhando ao nosso lado.
Todos compartilhamos, para além
do tempo e do espaço no qual nos encontramos, a mesma bela e frágil natureza
humana. Por isso, embora as circunstâncias que nos envolvem sejam diferentes, e
certamente estas podem favorecer ou dificultar nosso seguimento de Jesus,
reconhecemos que os verdadeiros obstá-culos, para viver centrados n’Ele e
comprometidos com seu Reino, não nos vem de fora, mas brotam de nosso próprio
interior. E o maior deles é o medo.
Os medos acompanham nossa vida cotidiana. Quem se pergunta
honestamente – o que eu temo? – re-conhecerá, sem dúvida, uma pequena ou grande
lista de medos que o habitam, travando o fluir de sua vida.
Quando o ser humano
quebrou sua aliança com Deus no Paraíso, o medo
foi sua reação imediata. “Ouvi teus
passos no jardim; fiquei com medo, porque estava nu, e me escondi” (Gen. 3,10).
O medo
se instalou em seu coração. E o ser humano continua a temer através dos
desertos e cidades, de dia e de noite, no coração e na sociedade..., onde quer
que esteja; ele vive sob um medo
constante, sentido com maior ou menor intensidade, mas sempre presente.
Medo dos passos de Deus e de seus
próprios passos; medo de estranhos e
de amigos; medo do futuro; medo do diferente; medo de seu corpo e da sua afetividade; medo de decidir; medo de
se comprometer; medo de romper as
amarras do passado; medo do novo; medo de viver e de morrer, medo de si
mesmo. Uma longa cadeia de medos, da
primeira à última respiração, nesta terra de sombras.
Todos os medos estão inter-relacionados e, qualquer que seja seu objeto
imediato, todos têm em comum o sentimento sombrio do perigo ameaçador.
Sabemos que o medo deixa as pessoas vulneráveis à
manipulação. Não existe depósito de munição mais potencialmente explosivo do
que os estoques de medo nas escuras
profundezas de suas vidas.
As
pessoas ficam tensas e projetam estas tensões na realidade circundante. Encaram
os outros como inimi-gos, e as oportunidades como ameaças. O trabalho é
competição, e a vida, um campo de batalha.
O medo quebra o ritmo biológico e ataca
os tecidos do corpo; ele nasce na mente, mas sua influência é sentida nos
nervos, no pulso, nos músculos e na respiração.
As pessoas temem os perigos que conhecem e mais ainda os
que não conhecem, mas os vislumbram presentes em cada esquina. Um medo que pode ser nomeado perde o
terror e a capacidade de ferir; no entanto, um medo sem nome, um fantasma sem rosto, escuro como uma sombra e
rápido como uma tempestade aumenta o pavor e paralisa a ação. Medo sem nome que
assombra e queima as energias que poderiam ser canalizadas para algo criativo.
O medo distorce a
percepção da realidade; ele gera muitos fantasmas e pré-juizos que, como conseqüên-cia,
maximizam os fatores objetivos causantes do perigo.
Sendo uma emoção primária, o medo,
com freqüência, impede o discernimento e a busca da solução mais
inteligente para os problemas; longe de resolvê-los, pode agravá-los a médio e
longo prazo.
Quando o medo e a sensação
de impotência impregnam nossa vida cotidiana, se aviva em nós a consciência
permanente de “vulnerabilidade”. Não estamos preparados para
acolher nossa fragilidade, nossa condição humana.
Enfim, o medo obscurece o
sentido e a direção da vida, tira o brilho tão próprio do amor; ele nos
acovarda e nos enterra na acomodação mesquinha.
É bom lembrar que o ser humano amadurece
através do confronto entre desejo e medo. Não há medo sem um
desejo escondido e não há desejo que não traga consigo um medo. O desejo e o
medo estão ligados. Temos medo do que desejamos e desejamos o que nos faz medo.
DESEJO
e MEDO: existe,
na natureza humana, a tendência natural de ultrapassar
o imediato, de caminhar
para a “outra margem”... para arriscar novos horizontes; necessidade
de afrontar o perigo, de
tentar,
de se aventurar...
Mas
existe também a tendência oposta de se poupar e de se acautelar, a necessidade
inata de evitar o perigo, de se afastar dos obstáculos, de fugir das
tempestades... O ser humano que confia
é também o ser humano que teme; o
ato de coragem carrega, também, o medo.
No nosso crescimento humano e
espiritual, o medo não superado, ou desejo bloqueado, vão gerar tempestades. Ou,
pelo contrário, o medo superado, o desejo desatado, vão permitir a maturação. E
nossa vida evolui assim, através do nosso desejo de plenitude e o nosso medo de
destruição (impulso de vida x impulso de morte).
Todos
nós, no nível pessoal ou coletivo, vivemos experiências de tempestades; algumas como
um “tsunami”, como este que vivemos no atual momento. Estamos diante de uma “onda nova” de risco e
de vida, na madrugada de um dia que pode e deve ser de salvação: “Coragem!
Sou eu. Não tenhais medo!”
Uma coisa é sentir medo; outra, é permanecer paralisado
com medo de arriscar e não aventurar
por novas terras, na descoberta infindável que é a vida.
É preciso não ter medo do medo, e fazer dele
uma mediação para o próprio crescimento, descobrindo o desejo de viver que se
esconde atrás de cada medo. E que vai permitir ir mais longe.
As batalhas mais profundas do
espírito (a quebra de limites da mente e do costume, o avanço sobre novos
ideais e sonhos...) se conquistam com o atrevimento da coragem, com a força da fé,
com a imaginação solta, com a criatividade livre e desimpedida.
Desafiando os medos aprende-se a ter coragem. Aceitar os medos é o caminho para tornar-se
destemido. O conhecimento da própria fraqueza é a maior força.
Cada medo não resolvido é um peso na vida. É preciso descobri-los, identificá-los,
nomeá-los e tomá-los como são até que se possa dissolvê-los em consciência e
coragem.
Também a Igreja se mostra, muitas vezes, presa
ao medo, matando seu espírito profético. Uma Igreja medrosa torna-se conivente
com a cultura da violência e da morte. Enquanto mais teme, mais se fecha e se
entrincheira atrás de normas, doutrinas, ritos...; e quanto mais se
entrincheira, mais frágil se torna.
A grande comunidade dos
seguidores de Jesus é chamada por Ele a viver contínuas travessias, a sair dos
seus espaços estreitos e “normóticos” (normalidade doentia), a ser “provada”
pelas tormentas e ventos contrários, a esvaziar sua barca de tantos pesos para
poder fluir com mais leveza, levantando suas velas e aproveitando da força dos
mesmos ventos.
É o mesmo Espírito de Jesus que sopra as ve-las
da grande barca, conduzindo-a para a “ou-tra margem”, a margem do compromisso
em favor da vida.
Texto bíblico: Mt
14,22-33
Na
oração: Entre na
barca de sua vida, em companhia do Senhor; deixe que a presença d’Ele
desmascare os
medos que atrofiam sua
identidade e originalidade.
-
Dê nomes aos seus medos; nomeá-los, já é dar o primeiro passo para não se
deixar determinar por eles.
-
O que você faria, se não tivesse medo?
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