quinta-feira, 17 de abril de 2014

Lava-pés



LAVA-PÉS: para uma “Igreja da toalha

“Cristo monumentou a Humildade quando beijou os pés dos seus discípulos”(Manoel deBarros)

O gesto do “lava-pés” é paradigmático para todo seguidor de Jesus Cristo; constitui um dos gestos mais expressivos da missão e da identidade para aqueles que exercem algum serviço em sua comunidade.
É revelação e ensinamento. É amor e mandamento. É gesto-vida, gesto-horizonte, gesto-luz...
Não podemos amar o outro e olhá-lo de cima. Não se trata também de se “humilhar”, de se colocar “abaixo” de seus pés, mas de cuidarde seus pés para que esse outro possa se manter de pé, para que ambos possam estar face a face e caminhar juntos.
Jesus sabia que seus discípulos tinham pés frágeis, pés de argila. Amar alguém não é querer que ele fique deitado a seus pés, mas é querer que ele se mantenha de pé, na plenitude de sua grandeza. Amar alguém é querê-lo com os pés “livres, leves e soltos”. Lavar os pés é gesto de humanização e gesto humanizante. É devolver ao outro a dignidade e capacidade de dar destino à sua vida.
A cena do lava-pés revela profundidade e delicadeza, mútuo dom e acolhimento, comunhão e cuidado. É um gesto profético, repleto de generosidade e de humildade.

O Evangelho de S. João substitui a instituição da Eucaristia pelo Lava-pés.O gesto escandaloso de Jesus revela um enfoque nem sempre percebido em seu sentido profundo. Ele revela aos apóstolos um “novo ângulo”ou um novo modo de ver as coisas: não a partir do lugar dos comensais, mas a partir da pers-pectiva de quem não está sentado à mesa.O gesto de Jesus nos convida a deslocar-nos, ou seja, ocupar o lugar da pessoa que não participa da mesa. Quê novidadepercebemos a partir deste lugar?
Jesus deixa transbordar os segredos de seu coração. Ele revela o rosto de Deus, que é Amor.
Ninguém serve a Deus, a não ser do jeito de Jesus, isto é, lavando os pés, amando até o fim.
Mistério da Encarnação: Deus abraçando e sendo encontrado junto aos pés dos seus filhos(as).
“Levanta-se da mesa” – “senta-se à mesa”: movimento de partida e de chegada; mesa que se projeta no serviço, mesa que faz memória festiva, mesa do encontro...


O “descendimento” do Senhor aos pés dos discípulos, fazendo-se servidor, transforma o status da servidão (“o servo não sabe o que faz seu senhor”) em fraternidade (“não vos chamo servos, mas amigos).
Deste modo se mostra o verdadeiro senhorio de Jesus: a possibilidade de resta-belecer a igualdade entre as pessoas através da superabundância de um amor que se derrama, sem reservas, para todos. Este gesto provocativo de serviço e despo-jamento d’Aquele que é “Senhor” desperta em cada seguidor o desejo de consi-derar suas qualidades e capacidades como veículos de doação, não de poder ou de manipulação. A partir deste “ousado gesto” já não se justifica nenhum tipo de superioridade, mas somente a relação pessoal de irmãos e amigos.

A reação de Pedro expressa bem o escândalo que este gesto produz, porque Jesus revela que a autoridade -ser Senhor – é um serviço, não uma dominação.
Pedro fica desconcertado e em dilema. Sua imagem do Messias seguro e vence-dor não combina com a vulnerabilidade de um servo.
O gesto do lava-pés é repleto da “espiritualidade do cuidado”.
O cuidado é um diálogo de presenças, não só de palavras. São seres“vulneráveis” que dialogam.
O cuidado é expressão de ternura e delicadeza. É atenção às pessoas; é gesto de inclusão.
O cuidado é gesto amoroso para com o outro, gesto que protege e traz serenidade e paz.
O amor é a expressão mais alta do cuidado, porque tudo o que amamos cuidamos. E tudo o que cuidamos  é um sinal de que também amamos. Cuidar é envolver-se com o outro ou com a comunidade de vida, mostrando zelo e preocupação. Mas é sempre uma atitude de benevolência que quer estar junto, acompanhar e proteger; é ter espírito de gentileza e ternura para captar e sentir o outro como outro, como original, e acolhê-lo na sua diferença. O Lava-pés nos pede vestir a toalha da simplicidade, da ternura acolhedora, da escuta comprometida, do serviço desinteressado...
Lava-pés não é teatro, mas modo habitual de proceder e de estar no mundo.

Texto bíblico:Jo. 13,1-17

Na oração: Como posso vivenciar, no cotidiano, a beleza e o cuidado revelados no gesto do lava-pés?

sexta-feira, 4 de abril de 2014

A vida sempre tem razão.



A vida sempre tem razão (Rilke)

“Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, mesmo que morra, viverá”(Jo 11,25)

Há em todos nós um desejo insaciável de vida. Passamos os dias e os anos lutando por viver, nos agarrando à ciência e, sobretudo, à medicina, para prolongar esta vida biológica. Sabemos que a morte é a realidade mais universal: todos morrem; mas nem todos sabem viver.
E o que é a vida? Como viver? Tem sentido viver? Há “vida antes da morte”?
A vida humana, antes que saberes e idéias, éprazer e sofrimento, alegria e tristeza, companhia e solidão, tato e contato com alguém a quem queremos, entrega e generosidade, liberdade e esperança... Por isso, na vida humana, é tão determinante a sensibilidade, o afeto, a ternura, a bondade, a compaixão, tudo o que gera amor, carinho e doação de uns para com outros.
Em todas estas situações o que está em jogo é a vida. Não “outra” vida, mas a “vida”.

Para o evangelista João, a “vida” é uma totalidade, que é já a vida presente, a vida atual, uma vida que tem tal plenitude que, com toda razão, podemos chamá-la de “vida eterna”, porque transcende os limites deste mundo;uma vida com tal força e tão sem limites que nem a morte mesma poderá com ela.
Quem não encontra a Deus “nesta” vida, não O encontrará jamais.
Mais ainda, se é certo que o Deus que Jesus nos revela nós O encontramos na vida, disso se segue que Elese “fundiu com a nossa vida”, essa vida que nos entra pelos sentidos, divinizando-a, fazendo-a eterna. Ou seja, encontramos Deus, antes de tudo, pelo que vemos e sentimos, pelo que apalpamos com nossas próprias mãos, por tudo aquilo que, ao senti-Lo, se faz vida em nós. “Deus entra pelos sentidos”.
Por isso, o sinal decisivo de que alguém crê no Deus de Jesus está na vida que leva. Ou seja, está em se viver ou não viver como viveu aquele Jesus de Nazaré. Isso quer dizer que o sinal de que uma pessoa encontrou o Deus de verdade é que ela se relaciona com os outros como se relacionou Jesus, que sente o que Jesus sentiu, que vive o que Jesus viveu.
Quando alguém se deixa invadir pelo humano, quando uma pessoa se humaniza de verdade e é sensível à dor do mundo,significa, então,que Deus entrou pelos seus sentidos. E é justamente quando, de verdade, se encontra com o “Deus desconcertante”, o Deus que Jesus de Nazaré nos revelou.

Nos Evangelhos há uma constante: Jesus é apresentado como Aquele que é a Vida, o único que pode dar

aVida definitiva. Jesus é um bió-filo– amigo da vida.
A insaciável sede de vida eterna enraizada no mais profundo do coração de todos os seres humanos só pode ser saciada por Aquele que é a “Ressurreição e a Vida”.
Os diversos relatos de “retôrno à vida” vão mostrar a vitória de Jesus sobre a morte, vitória que se reali-zará plenamente na Sua Ressurreição, à qual está indissoluvelmente vinculada a ressurreição de todos.
No texto evangélico de hoje, Jesus, na força do Espírito, comanda a ação: pede às pessoas que afastem a pedrae que soltem as amarras de Lázaro, para que ele possa andar. A ação de Jesus é expansiva pois mobiliza as pessoas para que, por meio de sua cooperação, avida seja destravada.
A vida com as amarras da fome, da exclusão, da violência... não pode ser chamada de vida.
Diante de uma sociedade que se especializa em impor pesadas pedras e faixas imobilizadoras, defender a vida é caminhar na contramão de tudo que nos diminui como seres humanos.
Há ainda aqueles que vivem a resignação do “quarto dia”, o dia da morte da esperança (para o judeu, o 4o. dia representava o começo da decomposição do corpo). Essas pessoas também precisam ser desamarradas da falta de perspectivas, da falta de esperança, da descrença na vida, da falta de fé n’Aquele que venceu para sempre a morte com todas as suas amarras.

Com uma autoridade, soberana e amiga, a ordem de Jesus é dada com voz forte, com um grito...
Esta é a mensagem central que o evangelista João quer transmitir:
a verdadeira vida consiste em ouvir a Voz do Enviado pelo Pai para dar a vida ao mundo; o importante não é o maravilhoso, mas mostrar e compreender que Jesus tem a autoridade de dar a Vida. Jesus desata as ataduras, as amarras da morte; elasmantém os homens cegos, mudos e surdos, atados e asfixiados. Seu lugar não é entre os mortos, mas entre os vivos.Eles precisam ser libertados e soltos por ordem de Jesus para que possam seguir seus caminhos, viver suas vidas livremente, voltar à comunhão com os outros.Não foi só Lázaro que saiu das suas faixas.
Todos os que estavam enclausurados em seus hábitos, presos em suas memórias, sufocados e conformados pela mediocridade, todos os que preparavam túmulos antes da hora de seu último suspiro... todos ouviram esta voz: “Saia!... Saia daí, vão além de vocês mesmos, a caminho!”

Para fazer-se presente neste mundo, Deus não se impôs a dar-nos doutrinas e a ensinar-nos verdades, mas se fez presente na vida de um Homem que nasceu pobre, que viveu entre os pobres e que morreu de tanto viver.Só nele encontramos uma esperança de vida mais além da vida. Só nele buscamos luz e força para viver uma vida diferente, ditosa, com sentido...
“Retirai a pedra”,disse Jesus diante do sepulcro de Lázaro.Retirai o que impede o sopro de Deus deentrar em vossos túmulos. Abri o que está fechado em vós”.
Quando Jesus pede que se retire a pedra do sepulcro de Lázaro, Marta aflige-se:“Senhor, cheira mal; já é o quarto dia...”Jesus faz pouco caso disso; Ele veio para entrar onde cheira mal, para abrir o que estátrancado, para fazer retornar à vida o que está morto.
Viver humanamente consistirá em deixar o Espírito circular livremente em todos os cômodos de nossa morada, arejando-os, ventilando-os, religando-os, dando-lhes vida, reorientando-os. A missão do Espírito é ajudar-nos a fazer a travessia, o mergulho interior, tanto nas sombras como nas zonas de luz, até ao centro de nós mesmos.O Espírito procura entrar para fecundar, recolocar em ordem, restaurar, unificar.


Afastar a pedra da entrada do túmulo é colocar Deus em seu devido lugar em nossa vida. É retornar a Ele, vivendo plenamente nossa humanidade e deixando-a vivificar pelo Espírito. Trata-se, dessa maneira, de experimentar a salvação em todas as zonas de nosso ser, de recompor-nos, reajustando-nos às leis fundamentais da vida.

Texto bíblico:Jo 11,1-45

Na oração:deter-se para contemplar o coração de Jesus comovido, sacudido, diante da dor e da morte.
                      Jesus foi “traído” pelo seu afeto. Aquele que é o Senhor da Vida, o vencedor da morte, tem um coração queama como o coração do irmão mais fiel; assim é o coração de Jesus: feito com asfibras da fortaleza e da coragem entrelaçadas com as fibras dacompaixão e da ternura.
Chamado para consolar uma família desolada, toma uma decisão difícil, pondo em risco a própria vida e se faz presente em meio à tragicidade da morte para comunicar vida a umamigo morto.
Com esse coração,Jesus nos ama a todos e a cada um; com um amor singular, pessoal, único, eterno.

- O que ainda existe para ser descoberto em sua vida? Há espaço para o novo?
- Ou está tudo amarrado, costurado nas bordas, selado contra qualquer surpresa?

Anchieta



ANCHIETA: admirável peregrino, todos seguem teu caminho

“Se você não mover os pés, não reconhecerá o ritmo da vida”

O peregrino é alguém que “entra” numa terra estranha, que se afasta dos apoios comuns da existência;
                      é alguém livre, que “saboreia” cada passo em cada momento, que não se acomoda num de-
                      terminado lugar, que está sempre na expetativa do novo, do diferente, do inesperado...
A estrada, são os caminhos do mundo... de Portugal, da Espanha, do Brasil... Mas é muito mais a senda de mistério e luz que o Senhor o faz seguir no decorrer de suas longas caminhadas.
Na estrada do peregrino há o despojamento, a pobreza, por vezes a fome e a sede, os caprichos das estações, a incerteza dos dias de amanhã. Há a liberdade do espírito, horizontes infinitos, desafios que despertam a criatividade, ousadia que ultrapassa o momento histórico...
Há o imprevisto, o acontecimento inesperado, que comanda o ritmo da marcha, as paradas, as estadias, as mudanças de rumo... Há o encontro com “fiéis e infiéis”, companheiros que se agregam, amigos que ajudam, inimigos que espreitam, pobres que compartilham o mesmo pão...
Finalmente, a estrada aproxima o peregrino, a cada instante, da meta ainda escondida, mas certa. Ao voltar-se para trás, ele se dá conta que o itinerário foi realmente maravilhoso, que a experiência o transformou, que está mais livre, mais autêntico, mais rejuvenescido...

Anchieta é o homem “peregrino”: vai contemplar a outra face da fronteira geográfica e cultural, até então inédita para ele e para todos; busca viver em profundidade esta “experiência de travessia”, até os limites extremos do despojamento e de tudo. Percorre, a pé e de barco, todo o litoral brasileiro. Seu caminho ti-nha de ser desbravado com criatividade, ousadia e destemor. “Tinha o coração maior que o mundo...”

Anchieta é o homem de “fronteira”; há nele uma força interior que o arranca da acomodação, o coloca em contínuo movimento e o transforma em cidadão do mundo.
Mais que um simples deslocar-se, trata-se de um modo de viver e de situar-se no mundo.
Invadido por uma paixão que não lhe dá repouso, Anchieta está presente em tudo, sem extraviar-se nunca na confusão das coisas. Tudo lhe interessa e em tudo deixa o seu “toque”: literatura, educação, medicina, teatro, catequese, botânica... Sempre em marcha, sem encurtar os passos, o peregrino Anchieta avança como homem livre, sem deixar-se aprisionar por nada nem por ninguém, aberto aos acontecimentos, pronto a servir a Deus e seus pobres preferidos.

O “seguidor de Jesus” é, em sua essência, mudança, movimento, dinamismo, energia... pois Deus não nos deu um espírito de timidez, de medo, de fuga, de acomodação... mas de audácia, de criatividade, de luta, de participação.... A “fidelidade criativa” no mundo de hoje nos impulsiona a “inventar” constantemente, a “ousar” sem medo, a “deslocar-nos” sem parar, a “sair” de nossos esquemas fechados, mentalidades ultrapassadas, formalismos frios, modos de agir arcaicos...
Fidelidade criativa significa uma “leitura” atenta dos sinais dos tempos e abertura dócil a uma realidade em contínua mudança que define o campo de nossa criatividade.
É a ousadia, motivada e sustentada pelo amor de Deus, mas também pelo zelo apostólico e por uma sensibilidade para perceber as novas “necessidades” do nosso tempo.

Para isso é importante reconhecer o momento atual, espreitar possibilidades de mudança... que os horizontes sejam ampliados, que a imaginação seja desempoeirada, que os sentidos sejam ativados, que se renovem os tecidos da alma e sejam removidos os véus do espírito... para que avancemos, como Anchieta, em direção às novas fronteiras do espaço sem limites, que nos espera aberto e acolhedor.
Isto consiste em colocar-nos nos “passos” de Deus, com suficiente visão da realidade para ir adiante, e com bastante disponibilidade para mudar de caminho quando o sopro do Espírito assim nos sugerir.  

Textos bíblicos:   Mt. 4,18-25   Mc. 4,1-9   Mt. 9, 9-13

Nas nossas vidas acontece algo de verdadeiro e belo quando nos dispomos a viver em “estado de êxodo”: existem ainda céus por explorar, aventuras por empreender, experiências por aceitar, idéias por experimentar... Ainda existe uma “terra desconhecida” que nos desafia, que suscita curiosidade, nos põe a caminho...