QUANDO AS
PARÁBOLAS TIRAM O VÉU DE NOSSOS OLHOS
“Um pobre, chamado Lázaro, cheio de feridas,
estava sentado à porta do rico” (Lc 16,20)
Toda vez que Jesus tem uma coisa importante
para comunicar, ele cria uma história e conta uma parábola.
Sabemos que, em toda parábola, o ouvinte passa por uma transformação interior; ele se
abre porque ela o fascina, e, sem que perceba, a narrativa o leva a outro
nível. De repente, o ouvinte se sente envolvido na cena. Algum aspecto seu, que
até então havia permanecido no escuro, é iluminado; agora é capaz de se ver de
modo diferente.
Uma parábola “dá o que pensar”.
Por isso, é importante prestar atenção até nos seus mínimos detalhes. Dizem os
especialistas que, quando Jesus contava parábolas, apelava aos sentimentos mais
primários de seus ouvintes (muitas vezes adversários) para fazê-los mudar.
Assim, ao contar a parábola da ovelha perdida, do filho pródigo que retorna à
casa, estaria dizendo aos seus adversários: “Vocês não sentem compaixão por essa
pobre gente? Não sentem revirar suas entranhas?”.
Talvez ao contar a parábola do “rico
e de Lázaro”, estaria nos dizendo: “Vocês não se envergonham de viver em um mundo assim, de ricos e de
lázaros, de milionários e de famintos?...
Se esta parábola não provoca em
nós nenhum tipo de incômodo, se não desperta nossa vergonha, se não nos faz sentir afetados pelo que ali há de insulto ao pobre, se não nos mobiliza para uma
superação desse escândalo..., é sinal que a desumanização chegou ao fundo do
poço.
Na parábola do evangelho de hoje aparecem três
personagens: o pobre Lázaro, o rico sem nome e o pai Abraão. De um lado, a riqueza
agressiva. Do outro, o pobre sem recurso, sem direitos, coberto de úlceras,
impuro, sem ninguém que o acolhe, a não ser os cachorros que lambem suas
feridas. O que separa os dois é a porta fechada da casa do rico.
A coexistência de riqueza e
pobreza é, em si mesma, ruptura fundamental da solidariedade humana, negação de
humanidade; é uma flagrante violação da convivência humana, ou seja, da própria
natureza do fundamento dos direitos humanos.
“O luxo de uns converte-se em insulto contra a
miséria das grandes massas” (Puebla 28).
O “rico e Lázaro” constituem um
enorme escândalo em nosso mundo. É uma ofensa que se faz aos pobres pelo
simples fato de serem indigentes ao lado de opulentos.
O foco para compreender o sentido
da parábola é o pobre Lázaro,
sentado à porta. Ele representa o grito calado dos pobres do tempo de Jesus e
de todos os tempos. Deus vem até nós na pessoa do pobre, sentado à nossa porta,
para nos ajudar a transpor o abismo intransponível que a riqueza criou.
A parábola é cheia de ironia. Para começar, o
rico aparece sem “nome”: não ter nome naquela cultura era praticamente sinônimo
de não existir; às vezes o rico é designado como “epulão”, mas é um
adjetivo, que tem sua raiz no costume romano dos “épulos” ou banquetes; o
pobre, pelo contrário, se chama “Lázaro”, ou seja, “Deus ajuda”. Ele
tinha identidade; O rico era tão pobre que só tinha bens.
Com sua morte, o mendigo “é levado pelos anjos para o seio de Abraão”; o rico, pelo
contrário, “morreu e foi enterrado”. O “seio de Abraão” é a
fonte de vida, de onde nasceu o povo de Deus. Lázaro, o pobre, faz parte do
povo de Abraão, do qual era excluído enquanto estava à porta do rico. O rico
pensa ter fé e ser filho de Abraão; mas só há um jeito de estar com Abraão:
abrir a porta ao necessitado. A salvação para o rico não é Lázaro trazer uma
gota de água para refrescar-lhe a língua, mas é ele, o próprio rico, abrir a
porta fechada para o pobre e, assim, transpor o grande abismo que os
separa.
A chave de compreensão da
parábola podemos encontrá-la justamente nesta expressão:“um grande abis-mo”. Um abismo que se revela não só
após a morte, mas que ficara visível na indiferença do rico frente á
presença do pobre à sua porta. Ele não tinha feito mal ao necessitado; simplesmente
não o tinha visto. O rico não vê o pobre, não vê a Deus; não escuta o pobre,
não escuta a Deus. Não está contra Deus , nem contra o pobre; unicamente está
cego. A riqueza o cega e o impede de viver para o outro; a riqueza endu-rece
seu coração e o torna insensível. Esse “não ver” (“olhos que não veem, coração que não sente”) é o que cria um abismo
intransponível em nossas relações pessoais, em nossos países e em nosso mundo.
Por que caímos tão facilmente na indiferença? A indiferença diante dos
outros e diante do mundo, esconde, sem dúvida, uma maior ou menor insensibilidade.
Uma sensibilidade bloqueada ou endurecida isola a pessoa, deixa-a encapsulada
em sua própria armadura egocêntrica e a instala em uma atitude indiferente – oposta à compaixão -, que está na origem das
injustiças que diariamente vemos em nosso mundo. Em sua redoma protetora, o
rico não vê os outros a não ser quando necessita deles, considerando-os como se
fossem “objetos” a seu serviço; sua capacidade de amar fica bloqueada.
A compaixão é o sinal mais claro da maturidade humana; a indiferença, pelo contrário, revela imaturidade e atrofia nossa humanidade.
A conclusão de tudo isso parece clara. Para
viver a compaixão, precisamos, an-tes de mais nada, despertar nossa sensibilidade
diante dos outros, sobretudo aqueles que estão à nossa porta e não os vemos.
A cegueira diante dos outros, sintoma de uma
sensibilidade rígida ou congela-da, torna impossível a compaixão. Precisamos
restabelecer o contato com nossos sentimentos; despertada nossa capacidade de
sentir, poderemos depois sentir-com-os-outros, ou seja, experimentar compaixão.
A transformação do coração exige uma renovação
de nossa sensibilidade. O discípulo de Cristo, com sua sensibilidade cristificada, não fugirá
da realidade das pessoas e da natureza, mas se relacionará com elas, buscando
também nelas a presença de Deus. Nesse sentido, a sensibilidade cristificada
é o motor da nossa vida e da nossa conduta. E os “abismos” serão superados.
Portanto, mediante uma acolhida
contemplativa da Parábola, vamos transfigurando nossos sentidos e convertendo nossa sensibilidade,
para aproximar-nos da realidade como Jesus se aproximava, com uma sensibilidade
cada dia mais parecida com a d’Ele.
À medida que vai se realizando
esta conversão de nossa sensibilidade,
nós nos fazemos capazes de nos fazer presentes junto aos mais necessitados
à maneira de Jesus de Nazaré, abrindo a porta de nossa casas para acolhê-los.
Texto bíblico: Lc
16,19-31
Na
oração: diante
do mundo da exclusão e da miséria, quê sentimentos prevalecem: indiferença,
compaixão,
insensibilidade, espírito
solidário...?
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