“Eles não tem mais vinho!” (Jo 2,3)
Neste dia em que, no
Brasil, celebramos a memória de Maria, a mãe
Aparecida, o evangelho indicado para esta festa nos coloca diante de um
relato muito simbólico; alguns exegetas chegaram a afirmar que, antes de ser
relato, foi simplesmente uma parábola, no qual cada elemento contém toda uma
mensagem carregada de conteúdo. É um evangelho rico
em motivos históricos, cristológicos, eclesiais e marianos.
A
boda, as talhas de água, o vinho, a figura da mãe, as próprias expressões
utilizadas...,
tudo isso está falando da novidade que, segundo o autor do evangelho, Jesus
traz: a passagem de uma religião ritual (a água da purificação) e vazia (“eles
não tem vinho!”) à plenitude de uma vida transbordante de surpresa, alegria e
assombro (o “vinho bom” que surpreende o mordomo).
O contexto é um casamento: isso supõe que há amor,
vida, famílias, encontro, festa, sonhos, esperanças... É o que Deus sente e
deseja para todos os seus filhos e filhas.
E o relato que escutamos
é uma festa de casamento que pode desembocar na frustração, pois o vinho no fim.
Ou seja, vai terminar a alegria, a convivência festiva, o amor...; aos
convidados só lhes restará o mais puro legalismo da água, dos ritos de
purificação, mas sem vida e sem amor.
Uma boa oportunidade não
é buscada premeditadamente, senão que ela é aproveitada quando aparece. Ali, a
perspicaz e atenta é Maria, a mãe de
Jesus.
Precisamente, conforme o evangelho,
Maria é aquela que se coloca a serviço do amor e da vida, do vinho e da festa.
Por isso, critica as bodas antigas (de Israel e talvez de grande parte das
bodas de nossas Igrejas, carregadas de leis e normas de pedra e água, com pouco
vinho de vida).
Maria também está presente, intimamente
unida à missão do seu Filho; presença com sabor do vinho especial, prolongando
uma festa que corria o risco de acabar. João realça sua presença: o “vinho bom”
da alegria que não termina nunca.
Porque estava presente a Deus, Maria fez-se presente nos momentos decisivos de
seu Filho, bem como fez-se presente na vida das pessoas. Uma presença que fez a
diferença: presença solidária, marcada pela atenção, prontidão e sensibilidade,
próprias de uma mãe.
Sua presença não era presença anônima, mas
comprometida; presença expansiva que mobilizou os outros, assim como mobilizou
seu Filho a antecipar sua “hora”.
Nas
bodas de Caná, a novidade está numa nova forma de presença de Maria, que não se
encontra interessada, em princípio, por fazer coisas, por resolver problemas,
senão para traçar uma presença. Ela não está aí para “arrumar” as coisas, mas
para escutar e compartilhar um momento festivo. Ela se encontra presente, num
gesto de solidariedade que transcende e supera toda atividade.
Há nela uma densidade
existencial, um sabor de cotidianidade que perfuma a fé: o espaço é o doméstico da casa de família; a oportunidade é a de uma festa de casamento; o contexto é o das relações; o exercício
é o do cuidado e da atenção. E há em Maria uma sensibilidade envolvente ao todo
da vida, mesmo quando o vinho começa a se tornar escasso. Com sua atuação
discreta, da escassez brota a surpresa.
Trata-se de uma presença que é “música calada” nos lugares cotidianos e escondidos,
que sabe enternecer-se e escutar as inquietações que procedem desses lugares.
Uma presença que descobre o próximo no próximo, que sabe resgatar a
solidariedade na vida cotidiana. Uma presença que se manifesta na ausência de
recompensa ou de interesse próprio.
Em definitiva,
Maria descobre que é chamada a dar de graça o que de graça recebeu. Sabe entrar
em sintonia com os sentimentos dos outros e construir vida festiva, e vida em
abundância.
Sua
presença revela um gesto profético de solidariedade e de anúncio: presença que
aponta para uma outra presença, a de seu Filho. Sua presença dignifica e revela
um novo sentido à presença de Jesus numa festa de casamento.
A presença silenciosa, original e
mobilizadora de Maria des-vela e ativa também em nós uma presença inspiradora, ou
seja, descentrar-nos para estar sintonizados com a realidade e suas carências.
Tal atitude nos mobiliza a encontrar outras vidas, outras histórias, outras
situações; escutar relatos que trazem luz para nossa própria vida; ver a partir
de um horizonte mais amplo, que ajuda a relativizar nossas pretensões absolutas
e a compreender um pouco mais o valor daquilo que acontece ao nosso redor;
escutar de tal maneira que aquilo que ouvimos penetre na nossa própria vida;
implicar-nos afetivamente, relacionar-nos com pessoas, não com etiquetas e
títulos; acolher na própria vida outras vidas; histórias que afetam nossas entranhas e permanecem na
memória e no coração.
Disto se trata:
aprender dos outros; recarregar nossa própria história de um horizonte diferente,
no qual cabem outras possibilidades e outras responsabilidades; descobrir uma
perspectiva mais ampla que ajuda a formular melhor o sentido de nossa própria
vida.
Jesus, mobilizado por
Maria, ao transformar a água em vinho, o que faz é transformar a realidade, os
afazeres duros em atividades prazerosas, a vida rotineira em alegria, a
tristeza em bom humor, a água das purificações em vinho novo. Jesus
se fez presente com o vinho da melhor qualidade. Que dure a festa!
Jesus não fez isso no
Templo, nem na sinagoga, nem em uma reunião de grupo, mas em uma festa de
casamento. E dentro dela, o convite à festa perene do Reino.
Habitualmente, em nossa existência
parecem alternar-se a “água” e o “vinho”, a rotina e a novidade, os dissabores
(sem sabor) e a sensação viva de plenitude. É importante sermos conscientes de
que a causa de nos encontrar em uma ou outra dessas vivências não depende
daquilo que acontece, mas do “lugar” a partir do qual nós estamos vivendo.
É penosa a quantidade de pessoas
que encontramos na vida queixando-se, lamentando-se, sentindo-se mal. É preciso
realizar o gesto de mudar a água da rotina em vinho de salvação; fazer da realidade
uma oportunidade inspiradora. Um motivo para transformar a queixa – “não temos
vinho” – no milagre. Uma maneira de sair de nossa estreita maneira de olhar e
entrar na largueza do olhar de Deus.
E assim, tudo começou: os sinais, a
glória e a fé.
Texto
bíblico:
Jo 2,1-11
Na oração: inspirado
na presença original de Maria, ter presente os lugares
onde você vive e transita; sua presença dá
“sabor e calor” a esses ambientes? Você é capaz de sintonizar com as
oportunidades únicas para mul-tiplicar o “vinho” da boa palavra, do gesto solidário,
da atenção descentrada?
Você vive na rotina da “queixa” ou
no prazer da presença?
Nenhum comentário:
Postar um comentário