domingo, 3 de abril de 2011

Para rezar o evangelho deste domingo.

OUTRO OLHAR, OUTRA VISÃO

 “A verdadeira viagem do descobrimento não consiste em buscar novas paisagens, mas novos olhares” (Marcel Proust)

Vivemos sob o signo do olhar, sob o impacto da imagem, da sociedade do espetáculo. Nunca como hoje o olhar adquiriu tanta soberania e status diante dos outros sentidos; no entanto, é o sentido mais violentado pela quantidade de imagens despejadas sobre nós a todo momento.
O ser humano primitivo tinha um olhar limitado pelas suas necessidades; já o ser humano moderno, devido à complexidade da vida, ao progresso da ciência e da tecnologia, está ficando com um olhar truncado pelas imposições artificiais criadas; cerceado em sua visão, ele não sente a realidade; agredido pelo acúmulo de imagens, ele não se deixa “afetar” por nenhuma delas. “Vê”  tudo e não “olha” nada.
A urgência em “ver” tudo tira a atenção e o tempo necessário para poder “olhar pausadamente”.

Pobre olhar! Prisioneiro do sistema, é manipulado e não dá sentido à realidade captada, não rompe, não vai além, não busca o novo nem faz mudanças... Portanto, um olhar desprovido de sentimento, de imaginação, de profundidade, de horizontes....
Treinado para ver o mundo através da lente das grandes redes de poder, de manipulação e de acordo com seus interesses, o olhar  estreita-se, o mundo torna-se opaco e a superficialidade da visão não capta o “mistério” das coisas e das pessoas.
O “olhar contemplativo” está perdendo sua força criativa; marcado pela ansiedade de querer “ver” tudo ao mesmo tempo, a pessoa não é mais capaz de fazer uma “pausa” para se deixar “ver” pela realidade.
Marcado pelo olhar do racionalismo, ela tudo examina, compara, esquadrinha, mede, analisa, separa... mas nunca “exprime”. Daí o olhar reprimido, desviado, insensível, frio, duro, ríspido...
Este é o pecado contra o olhar: olhar supérfluo e imediatista, olhar esquizofrênico e narcisista, olhar morno, sem vibração, sem brilho, sem assombro... Nesse olhar não há lugar para a admiração, nem para a acolhida e a presença do outro. Só existe o olhar que “fixa”, escraviza e aliena.
Na verdade, o que imobiliza e petrifica é o olhar que se fecha no egocentrismo, que não se abre ao outro numa atitude de respeito, de fidelidade criativa. “Nossa civilização, que já ultrapassou a era do trabalho escravo, ainda está na era do olhar escravo” (Eugênio Bucci).

Sentimos a urgência de uma conversão do olhar; é preciso que o olhar busque a sua libertação de tudo aquilo que o oprime, o manipula e o intimida; há necessidade de recuperar o direito de olhar... de ver e de ser visto. Um olhar gratuito e desinteressado, “janela da alma”, que expande o ser humano numa atitude acolhedora de tudo que o rodeia; olhos que possibilitem o trânsito do olhar, revelando a interioridade e dialogando com o exterior, num movimento de ir e vir constante e interpelativo, onde ocorre a contínua criação de si, do mundo, do outro.
É possível debruçarmo-nos sobre o mundo, a história, a vida, através do olhar. Recuperar o olhar que expressa acolhida e comunhão, olhar carinhoso que rompe a distância e a rejeição.
O olhar verdadeiramente humano não é um olhar de medusa, possessivo, mas um “olhar contemplativo”, que admira e acolhe o ser olhado e comunga sinfonicamente com ele.
O olhar contemplativo, que vê todas as criaturas e todas as pessoas, admirando-as e amando-as na singularidade do seu mistério, é um olhar feliz, pacífico e encantado.
Por ser um “olhar encantado” quer ver e olhar, admirar e contemplar sempre mais em profundidade, comprometendo-se com a realidade que o cerca.
Se nosso olhar se detivesse por um tempo em pousar e repousar no que ele vê, descobriria também que todas as coisas nos olham, que todas as coisas oram.
“Uma das verdades fundamentais do cristianismo, verdade por demais desconhecida, é esta: o que salva é o olhar” (Simone Weil).

Texto bíblico:  Jo. 9

Nosso olhar, normalmente é carregado de lembranças negativas, de julgamentos, de suspeitas, de comparações...  Na cena do “cego de nascença”, onde os discípulos viam um pecador, Jesus via um ser humano. Seu olhar não se detinha na máscara, mas contemplava um rosto.
Com o olhar, podemos transformar uma pessoa, destruí-la ou reconstruí-la, aniquilá-la ou fazê-la renas-
cer, restituí-la a si mesma e ao futuro, fazê-la chorar ou consolá-la, expressar-lhe ódio, indiferença ou amor... Há em todo ser humano um ponto sobre o qual podemos apoiar a alavanca que o ajude a sair da condição de solidão e de insignificância em que se encontra e a recuperar a auto-estima e a esperança.
O “cego de nascença” encontra em Jesus um olhar encorajador, compreensivo, que acredita nele e lhe inspira confiança; um olhar que não se prende ao passado, mas abre uma nova possibilidade de vida. Um olhar que prolonga o sexto dia da Criação.

É preciso purificar o olhar, cristificá-lo. Olhar com os “olhos cristificados”: eis o desafio. Não se trata de qualquer olhar. É o olhar limpo, diáfano, que desarma, que não esconde engano ou segundas intenções.
Contemplar o rosto do outro é sentir sua presença, sem pré-conceitos e pré-juízos..., vendo nele o sinal da ternura de Deus. Passar da contemplação à acolhida: este é o movimento da oração dos olhos.
Muitas vezes, o presente mais precioso que podemos dar a alguém é um olhar diferente; o futuro, a aço-lhida, o perdão, a alegria... dessa pessoa podem depender desse olhar novo, cheio de afeto e confiança.
Em muitas situações  difíceis da vida, o que salva é o olhar.
Num contexto de relações afetivas, onde os sentimentos são determinantes, qualquer caminho de volta ou de diálogo inicia-se sempre dom um olhar conciliador ou reconciliador.
Olhar admirado e gratuito, como aquele de Cristo, que transforma, que liberta e que se comove diante da realidade, especialmente a realidade humana.
Jesus olha cada ser humano como tal, mas este gesto não é um simples “ver” as pessoas, mas um olhá-las a fundo; ou seja, Jesus dirige seu olhar às pessoas para perceber nelas aquilo que para Ele é o mais importante: quer ver quê traços e quê imagem de Deus as pessoas revelam para quem as olha.
O olhar de Jesus não permanece no ato mesmo de olhar o ser humano. Seu olhar possui uma eficácia transformadora encarnada em sua capacidade de amar, isto é, de olhar as pessoas com o amor de seu Pai. Ao olhar os seres humanos Jesus faz refletir a dignidade que eles carregam: filhos de Deus, as criaturas mais apreciadas pelo Criador.


Um comentário:

  1. A riqueza dessa oração completou o meu dia, já abençoado pelo Retiro em Vila Fátima. Obrigada, Pe. Adroaldo. Muito obrigada, Pe. Toninho e Pe. Germano.

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