A PALAVRA LAVRA E SEMEIA
“”Anunciava-lhes
a Palavra por meio de muitas parábolas...” (Mc. 4,33)
Retomamos o tempo litúrgico chamado “Tempo
comum”. Cada tempo, cada dia, cada mês... com sua originalidade, novidade e
surpresa, chamando-nos a fazer a travessia para descobrir o sentido da
existência escondido na apressada rotina do cotidiano.Vivemos no tempo e
desejamos a eternidade.
Para compreender o tempo de cada coisa e dar respostas ao
que a vida pede e espera de nós, a liturgia nos faz mergulhar na luz da Palavra.
A Palavra se faz tempo e se aproxima de nós, criando pontes, horizon-tes,
chegando a lugares jamais imaginados ou tocados por nós.
É no encontro com a Palavra revelada que
brotam palavras criativas, carre-gadas de esperança e de sentido.
Por que
será que o Criador usou da Palavra para dar início à Criação?
Quê
mistério e força contém a palavra para merecer tanta exclusividade dian-
te da
Encarnação do Filho de Deus? (“E a Palavra se fez
carne...” – Jo, 1,14).
“Nós somos palavras”. Temos respirado e respiramos palavras
desde que nascemos. Basta abrir a boca que as palavras jorram. Povos de
todos os tempos e lugares sempre chamaram a atenção para o vínculo que existe
entre as palavras e a vida.
Conhecemos expressões comuns que
demonstram a força e o peso da palavra: “as
tuas palavras me fizeram bem”, “me fizeram pensar”, “me feriram”,
“me ajudaram a ver as coisas de maneira diferente”, “eu esperava essas
palavras”, “eu precisava daquela palavra”, “nunca me esqueci das tuas
palavras”, “agradeço pelo que você me disse”, “bastou-me aquela palavra”, “a
tua palavra foi diferente”...
Muitas vezes, o presente mais precioso
que podemos dar a uma pessoa é o de uma “palavra
diferente”.
O futuro de uma amizade rica e
enriquecedora depende daquela palavra.
As palavras
promovem a circulação dos pensamentos e sentimentos com os quais as pessoas
revelam a si mesmas, se expõem e se propõem ao encontro, dando a cada uma a
possibilidade de semear em outros aquilo em que ela crê e ama. Um “falar-semear”
que é o sentido belo do viver.
A amizade, o amor e todos os sentimentos
fortes, tem necessidade de palavras.
Esta é a nossa vida.
Somos feitos para a comunhão, para unir
as nossas vidas. É graças à força das palavras que derrotamos o silêncio
angustiante da solidão, derretemos o gelo da indiferença, aprendemos a
partilhar o ser e o ter.
De modo particular os poetas, os
amantes, os místicos e os filósofos perceberam, desde sempre, a força e a
sedução da palavra.
Não
possuímos nada que tenha, ao mesmo tempo, o poder e a leveza das palavras.
As palavras
podem mudar a vida, para o bem ou para o mal. Há palavras que ferem e há palavras
que curam. Há uma palavra que constrói e uma que destrói, uma palavra
que comunica calor e luz, outra que semeia frieza, uma que infunde confiança,
outra que o arrasa...
As palavras
nos tocam e nos modelam; às vezes, elas nos tocam como brisa suave, às vezes
como punhais, mas sempre nos deixando marcas profundas de estímulos ou de
desânimo: sentimentos de a-legria ou tristeza, de paz ou guerra, de
tranqüilidade ou inquietação, de fé ou descrença, de amor ou ódio... Sinceras
ou falsas, pensadas ou espontâneas... são um de nossos maiores tesouros.
Há
uma palavra pela qual tudo começa e
re-começa, outra pela qual tudo termina, deixando o silêncio atrás de si.
Depois de certas palavras, não resta
mais nada a dizer.
Todos
conhecemos pessoas destruídas pelas palavras,
como também pessoas reconstruídas, recriadas pelo toque das palavras. A palavra tem
uma força ressurreicional.
Todo
encontro com o nosso semelhante revela a nossa relação com as palavras, as boas e as más, as que unem
e as que dividem, as que consolam e as que amedrontam, as que curam e as que
matam.
“Morte e vida estão em poder da
língua”
(Prov. 18,21).
As palavras perdem força e criatividade
quando não nascem do silêncio. O mundo está repleto de “papos”
vazios, confissões fáceis, palavras ocas, cumprimentos sem sentido, louvores
desbotados e confi-dências tediosas. Vivemos cercados de “palavras vãs”,
condenados a uma civilização que teme o silêncio
Fala-se muito para dizer bem pouco. Jornais, revistas, tevê, outdoors,
celular, redes sociais... há demasiado palavrório. Carecemos de poesia.
“Sim,
senhor, tudo o que queira, mas são as palavras
as que contam, as que sobem e baixam...
Prosterno-me
diante delas... Amo-as, uno-me a elas, persigo-as, mordo-as, derreto-as...
Amo
tanto as palavras... As inesperadas... As que avidamente a gente espera,
espreita até que de repente caem... Vocábulos amados...
Brilham
como pedras coloridas, saltam como peixes de prata, são espuma, fio, metal,
orvalho...
Persigo
algumas palavras. São tão belas que quero colocá-las todas em meu
poema...
Agarro-as
no vôo, quando vão zumbindo, e capturo-as, limpo-as, aparo-as, preparo-me
diante do prato, sinto-as cristalinas, vibrantes, ebúrneas, vegetais, oleosas,
como frutas, como algas, como ágatas, como azeitonas... E então as revolvo,
agito-as, bebo-as, sugo-as, trituro-as, adorno-as, liberto-as...
Deixo-as,
como estalactites em meu poema, como pedacinhos de madeira polida, como carvão,
como restos de naufrágio, presentes da onda... Tudo está na palavra” (Pabro Neruda)
No evangelho de hoje, Marcos afirma que “Jesus
anunciava a palavra usando muitas parábolas...); Lucas
completa: “as
pessoas ficavam admiradas com as palavras cheias de encanto que saíam da
bo-ca de Jesus”. Com exemplos
tomados da experiência dos camponeses, Jesus desperta nas pessoas a espe-rança e o sentido da
própria existência: o decisivo é semear a Palavra que abre novo futuro e
que anima. “Palavra viva” que carrega dentro de si uma força transformadora que
já não depende mais do semeador.
Tal situação nos ajuda a considerar o
mistério escondido naquela palavra que sai de nossa boca e de nosso coração de forma
afirmativa, redentora... bendita. Quando assim conseguimos comportar com nossas
palavras, estamos contribuindo, literalmente, para a “edificação humana” do
outro.
É
extraordinário perceber como as palavras ditas com cuidado e amor
(pedagogia de Jesus) produzem efeitos benéficos para o ser humano.
Principalmente nos primeiros anos de vida.
Como é importante para
um adulto, um dia criança, ter escutado palavras ordenadoras de emoções, de
auto-estima! Essas palavras são bem-aventuradas, pois se tornam capazes de
fazer crescer, sustentar, enfim, edificar pessoas mais saudáveis no convívio
social, humano-afetivo, espiritual.
Formados e purificados pela própria Palavra
no forno do silêncio, estaremos prontos para proferirmos palavras
benditas, palavras que possuem um magnetismo especial, que libertam, acalentam,
invocam emoções. Certas palavras nos acompanham durante muito tempo.
Todos nos lembramos de palavras proferidas por pessoas especiais em
momentos de dificuldade, que nos deram luz e força.
Portanto,
na oração, cave palavras nas minas do seu silêncio, palavras carregadas
de sentido e de ânimo; deixe que o Espírito lhe diga a “palavra”
misteriosa, a “palavra diferente” reveladora de sua verdadeira
identidade. Palavra divinizada que favorece o encontro, a proximidade e
a acolhida mútua.
Para muitos místicos, as “palavras reveladas” são música. Eles
as usam como quem toca um instru-mento, porque elas são belas, pelo prazer que
elas são e despertam no leitor-orante.
Fernando Pessoa diz que a poesia é uma
rede de palavras por cujas fendas se
ouve uma melodia que faz chorar. Todo dizer poético aspira por um silêncio de palavras, para que a música seja
ouvida.
Podemos falar, então, do prazer
do texto. O profeta Ezequiel “comeu” a Palavra e afirma:
“eu comi e
pareceu doce como o mel para o meu
paladar”.
Como polpa de uma fruta madura
na boca, basta provar o sabor da Palavra, antes mesmo de conhecer o seu
misterioso sentido. É o Espírito que
nos diz a “palavra” misteriosa.
Porque não sabemos o que dizer,
na oração deixamos o Espírito gemer em nós com suspiros profundos.
Texto bíblico: Mc. 4,26-34
Na
oração: Percorrer
as palavras proferidas, normalmente, ao longo do dia: são palavras
que elevam? curam?
animam? Palavras
marcadas pela esperança? Palavras carregadas de sentido? Palavras criativas?
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