NO PRINCÍPIO ERA A IGUALDADE…
“…desde o
começo da criação, Deus os fez homem e mulher” (Mc. 10,6)
As
bases das relações humanas foram profundamente abaladas pela presença e atuação
de Jesus.
No
seu tempo, a única glória que uma mulher poderia possuir era um corpo
fecundo. Entretanto, no Reino de Deus, esta reclusão da mulher ao campo
biológico sofre uma transformação radical.
Quando a mulher fica reduzida à condição de
objeto e acorrentada por inteira às suas funções biológicas, perde sua voz
e sua palavra; seu lugar na sociedade e na religião se esvazia.
Portadora
de um desejo e de uma palavra, a mulher deixa de ser, para Jesus, um
objeto que se possui, um instrumento que se usa e uma propriedade a dominar e a
destruir.
A
mulher, que não está mais limitada às suas funções biológicas, recupera sua palavra,
sua voz e torna-se protagonista na instauração do Reino de Deus.
Marginalizadas,
convertem-se nas preferidas de Jesus.
No
meio de uma cultura marcadamente machista e patriarcal, Jesus desativou o machismo
e rompeu com tabus intocáveis, adotando uma atitude de reconhecimento e
valorização da mulher em nível de igualdade com o homem; e isso desde “o princípio”,
ou seja, por vontade divina. Em um contexto no qual o mundo feminino era
invisível, Jesus o fez visível, superando preconceitos e atitudes de dominação.
Ao
renunciar sacralizar a sociedade patriarcal de sua época, Jesus restituiu à sua
fonte original a relação entre homem e mulher, o matrimônio e a família.
Homens
e mulheres aparecem em seu projeto como iguais, sem prioridade de
um sexo sobre o outro.
No
discipulado igualitário de Jesus, as mulheres encontraram espaço para se
desenvolver em liberdade, rompendo a submissão à ordem patriarcal.
Jesus
as emancipou e as fez companheiras itinerantes, em companhia dos homens, para
escândalo daque-les que olhavam o corpo da mulher como perigoso e contaminante.
Ao
fazer referencia “ao princípio” Jesus vai diretamente à essência
do problema, tratando de descobrir as exigências mais profundas do ser humano (vontade
de Deus). O único absoluto é a pessoa e seu desen-volvimento como tal.
O
homem e a mulher são um lugar privilegiado de revelação e de experiência do
sagrado. Cada pessoa jamais deixa de ter suas raízes plantadas no coração do
próprio Criador.
Os
fariseus estão fechados ao mundo da ternura, do amor e do perdão. Só estão
abertos à Lei.
O
mais interessante do Evangelho de hoje é que Jesus vai mais além de toda lei.
Busca desvelar a raiz antropológica do matrimônio (o projeto de Deus) para não
anular nunca o que é verdadeiramente humano.
O
ser humano se humaniza quando em companhia, e uma estável relação
de casal alcança o grau mais profundo de relação humana. Esta é a chave de todo
o discurso.
Este
projeto matrimonial é para Jesus a suprema expressão do amor humano. É Deus
mesmo que atrai mulheres e homens para viverem unidos por um amor livre e
gratuito. O matrimônio é a verdadeira escola do amor. Nenhuma
outra relação humana chega a tal grau de profundidade. Em nenhum outro âmbito
pode-se expressar melhor o dom total. O amor só emerge na pessoa quando
esta amadurece como humana. O amor não é puro instinto, não é
paixão, não é interesse, não é simples amizade nem o simples desejo de um
querer mútuo. É a capacidade de ir ao outro e encontrar-se com ele(ela) como
pessoa, ou seja, para ajudar-lhe a ser mais humana, e experimentando no dom, o
mútuo crescimento em humanidade.
Uma
das qualidades mais bonitas do amor é que pode estar crescendo toda a vida.
“O amor é faísca
de Javé” (Cant. 8,6-7)
Nesse
sentido, o matrimônio não é uma realidade estática, mas uma realidade
dinâmica, é chama divina, é mudança, é abertura ao novo, é projeto a ser
construído cotidianamente a dois, é movimento na direção de um “Amor maior”,
“amar
melhor”, fundado
sobre o amor incondicional de Deus.
Viver
o matrimônio como dinamismo de vida é entrar no dinamismo expansivo do amor
de Deus: “por
ser exato
o amor não cabe em si; por ser encantado o amor revela-se”.
O amor
não se fecha a dois; abre-se, amplia-se, envolve outros...; amor expansivo e
que se expressa na compreensão, no perdão, no apoio, na paciência, no
companheirismo...
“Projeto
a dois”, mas sem anular a identidade, a originalidade do outro. O amor faz do
homem e da um-lher não “duas metades” que se encontram, mas dois inteiros que
se doam, e que generosamente acolhem e transbordam o Amor de Deus semeado em
seus corações, desde sempre.
Cada
um é chamado a ajudar o outro a ser mais humano, mais gente, mais pessoa, mais
santo(a)... possibilitar que o outro cresça e desenvolva suas capacidades,
riquezas...
É
querer bem, respeitar, valorizar, sentir a falta do outro, conceder espaço,
querer que o outro cresça, alegrar-se com as vitórias do outro, compadecer-se
com os seus fracassos...
É
ajudar a manter sempre acesa a “faísca de Javé”, a chama do amor.
Amor que encontra expressões diferentes de acordo com as circunstâncias e as
fases da vida.
Por
isso, o matrimônio deve ser re-inventado, re-construido cada dia. Isso
implica ser criativo na maneira de vivê-lo, buscar novas expressões, novos
gestos...
Há
sempre o perigo da “faísca
divina do amor” se apagar pela rotina, cansaço, pela desencanto...
A
cada dia, o casal deveria dizer, um ao outro: “Hoje eu te recebo novamente como minha
esposa/meu esposo, e te prometo ser fiel, na alegria e na tristeza...”.
Re-encantar
o “sim” e carregá-lo de sentido, de afeto, de ternura... Sim que se
prolonga...
O “sim” dado ao outro
diante de Deus, torna-se sagrado, compromete, faz cúmplice... Não é um “sim”
que se fecha, mas que se expande, repercute nos outros, desencadeia outros “sins”...
Sim com a marca da
coragem, da ousadia... que arranca do imobilismo e desperta o sentido dos
pequenos “sins” cotidianos.
Texto bíblico: Mc. 10,2-16
Na
oração: Que a “faísca
de Javé”, presente nos corações de tantos casais, se transforme numa
labareda, ilu-
minando
e aquecendo o cotidiano de suas vidas, inspirando e apontando caminhos para
todos a-queles que, em meio às sombras, vivem tateando um sentido para suas
existências.
“Nascestes
juntos no matrimônio, e juntos
permanecereis para sempre.
Estareis
juntos mesmo quando as asas brancas da morte separarem vossos dias.
Estareis
juntos também na silenciosa memória de Deus.
Deixai,
porém, que exista espaço no vosso estar juntos; deixai que os ventos do paraiso
dancem entre vós.
Amai-vos
reciprocamente, mas não permitais que o amor se torne uma prisão:
Deixai,
antes, que haja um mar em movimento entre as orlas de vossas almas.
Ficai
alegres, cantai e dançai juntos, mas deixai que cada um esteja só.
As cordas de
um alaúde também estão sós, e, no entanto, vibram com a mesma música.
Recebei o
coração um do outro, mas não para possuí-lo,
porque só a
mão de Deus pode conter vossos corações.
Ficai de pé,
juntos, mas não muito próximos, pois as colunas do templo estão separadas,
o carvalho e
o cipreste não crescem um na sombra do outro”.
(Kalil Gibran, poeta libanês)
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