“A INSUPERÁVEL LEVEZA DA ESCUTA”
“As minhas
ovelhas escutam a minha voz...” (Jo. 10,27)
Tudo
começa com a escuta; por sua vez, só escuta quem se encontra numa
atitude de busca. Quem crê estar em posse da verdade, deixou de buscar;
blindado a qualquer questionamento, permanece instalado na “zona de conforto”
de sua comodidade.
A pessoa
que se põe em movimento, começa escutando. A escuta requer uma
disposição de abertura inicial, que implica flexibilidade para permitir
inclusive que as convicções prévias possam ser removidas. A escuta
revela seus próprios segredos para quem sabe desnudar-se nela.
Quando
aquilo que “escutamos” encontra eco em nosso interior, reconhecemos estar em
contato com nosso eu verdadeiro e em profunda “sintonia” com a pessoa que nos
fala. Isto é o que acontecia com os seguidores de Jesus e o que continua
acontecendo com os leitores do evangelho: ao perceber que a pala-vra de Jesus
“lê” nosso interior, a reconhecemos como própria e “comungamos” com sua pessoa,
na vida de uma unidade que transcende o tempo e o espaço.
Segundo os antigos, “fides
ex auditu”, a fé vem
pelo ouvido e por isso Jesus nos
convida a aguçar a nossa escuta: “Quem tem ouvidos para ouvir que ouça”.
Na Sagrada Escritura, o exercício do
ouvido, a escuta, é prerrogativa tanto
de Deus como do ser humano.
O próprio Deus deixa-se perceber pelo
ouvido; faz-se “audível” para o ser humano.
É Deus mesmo que abre cada manhã os
ouvidos dos discípulos e os torna atentos para a escuta.
Em toda Palavra de Deus existe sempre um
dinamismo que nos desnuda e nos traz à nossa verdade origi-nal. Voltar a escutar é voltar a ser criança.
Retornar a esta atitude básica tão bela que é a admiração,
a capacidade de assombro..., primeira
virtude necessária para que o Evangelho nos chegue em toda a sua inesgotável
força de surpresa desconcertante.
Tudo é palavra e silêncio. Tudo no universo
vibra, emite, transmite, fala, vive.
E ao mesmo tempo tudo é escuta e percepção.
Deixar Deus ser Deus e deixar que o outro seja sempre uma
surpresa.
Permitir que cada realidade fale para nós sua própria
linguagem. Isso é ter ouvidos para a escuta.
Dentre os seres vivos criados por Deus, o
ser humano é o único capaz de escutar
e de falar, porque é o único criado
à imagem e semelhança d’Ele, d’Aquele que é a Palavra cheia de verdade e a
escuta cheia de amor. “Deus é a Palavra suprema e o Silêncio infinito”.
É importante progredir pelo caminho do silêncio, em que a pessoa se educa na escuta autêntica, que é aúnica capaz de
nos conduzir ao puro amor. Porque o grau supremo da escuta é o silêncio
cheio de amor.
No meio da gritaria ensurdecedora do mundo moderno como sintonizar na onda da Voz do
Bom Pastor? Como distinguir, no meio de tantas vozes, aquela VOZ verdadeira que
não fala aos ouvidos, e sim aos corações?
Carlos Vallés sj, missionário na Índia,
nos apresenta um simbolismo, tirado
da cultura hindu, na arte do discernimento, para distinguir e
seguir a verdadeira Voz do Mestre:
A flauta é o
som suave, o toque leve, o sopro delicado... e as notas que dançam nas asas da
brisa. A selva de Vindravan, onde Deus mora, é vasta e densa e a cada momento é
cruzada em todas as direções por cantos de mil pássaros e pelos rugidos das
feras, pelo trovão na tormenta e pelo farfalhar das folhas tangidas pelo vento.
Símbolo gráfico do mundo e da vida, com seus cuidados e preocupações, suas
distrações e falsos chamados que afogam as pulsações do coração nos ruídos da
existência. Muitos viajantes cruzam a selva. Muitos homens atravessam o bosque
dos ruídos.
Alguns vão tão depressa que não ouvem nada, outros tremem
ao ouvir o rugido do tigre ou o silvo da serpente, outros seguem o som de vozes
humanas para chegar ao povoado mais próximo. Outros se perdem. Outros morrem
sem saber para onde iam. Outros dão voltas e mais voltas, de uma voz a outra,
de um caminho a outro.
Mas para aqueles que tem ouvidos para ouvir e amor para
querer ouvir há outro som, suave,
mas agudo, que atravessa todos os demais sons, chega aos ouvidos e entra no
coração com uma mensagem e um chamado diferente: a flauta. Ela é o símbolo,
o instrumento e a companheira fiel de Deus. Brincalhona,
insistente, inconfundível, exigente, carinhosa. Traz alegria e música e, sobretudo, um sentido e direção. O som
vem de algum lugar. E é ali que está Deus.
Cada dia num lugar
diferente, numa direção inesperada,
para que a “alma” esteja sempre
alerta, atenta e disposta a partir. Aquele que escuta a primeira nota, deixa o
que estiver fazendo e salta, corre, voa na direção do som e tira forças do desejo
e chega à plenitude. Isto é discernimento: a capacidade de
distinguir o SOM da flauta entre
todos os outros sons. E sua base é o AMOR.
Vivemos mergulhados num mundo de vozes; um “vozerio” nos cerca:
vozes que nos levam à morte, vozes que nos chamam à vida; vozes contaminadas pelo egoísmo, adulteradas pelo medo,
deturpadas pela impureza, e vozes que são o eco do paraíso convidando para a
festa, comunicando paz, convocando à comunhão... É possível que as vozes do egoísmo,
do orgulho
e da ambição
tentem se disfarçar em voz de Cristo, a fim de arrastar-nos para o vazio e a
ruína. Mas o Pastor verdadeiro não fala por ruídos, e sim pelo silêncio; não fala pela força dos
pulmões, e sim pelo vento suave de seu Espírito...
Para escutá-la requer-se interioridade
e atenção aos sinais de sua presença:
pode ser a voz de um irmão pedindo
socorro; pode ser a linguagem de um acontecimento
alegre ou triste; pode ser uma palavra lida
ou proclamada; pode ser uma inspiração misteriosa
captada no silêncio...
Texto bíblico: Jo. 10,27-30
Na oração: Inimiga
número um da escuta é a pressa e a ansiedade que ela costuma
trazer consigo.
A oração, por si mesma, é uma
rebeldia contra a pressa dominante: uma oração mesclada de silêncio profundo,
de respeitosa contemplação, isto é, de verdadeira escuta.
A voz do
Pastor não se dirige à multidão anônima, mas é chamado pessoal: cada um tem rosto e nome.
- Que voz estou seguindo?
Tomo
consciência daquilo que obstrui os meus ouvidos e os torna “incapazes de prestar atenção” (Jer. 6,10)
Tomo
consciência da superficialidade diante da voz da consciência e da incapacidade
de escutar o outro, fazendo ressoar a sua voz no meu coração. Tomo consciência
de todas as mensagens negativas que transformaram, seduziram e enganaram meus
ouvidos, tornando-os surdos às mensagens celestes, à Pala-vra da verdade e da
vida.
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