“Sede
perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,48)
Esta afirmação de
Jesus “Sede perfeitos...”, tirada do contexto, tem gerado profundos
sentimentos de culpa diante de Deus e uma frieza no relacionamento com Ele.
O Pai de Jesus
Cristo, revelado como infinita ternura, misericórdia, amor, proximidade
para com os pecadores não é vivido como Pai, mas como um juiz mal humorado,
esquadrinhando nossa vida atrás de infidelidades, desobediências, fraquezas, e
exigindo o cumprimento rigoroso das mínimas leis.
De fato, desde os primeiros anos de nossa infância
somos impulsionados a buscar a perfeição.
Este conceito assumiu um valor central na compreensão
e na orientação da nossa vida; não só isso, mas assumiu também um caráter
claramente sobrenatural: a vida divina
exige que a pessoa procure a perfeição.Na experiência de fé, esta
idéia se reforçou quando se passou a considerar a santidadecomo sinônimo de perfeição;
o caminho da perfeição coincide
com o caminho da santificação.
Aperfeição se converteu, então, no termo normal da vida, o valor
espiritual supremo, o elemento comum de todas as virtudes. Os manuais de
espiritualidade passaram a destacar a perfeição
como único ideal e a moral evangélica se reduziu à moral da perfeição; por séculos, a perfeição
seduziu, modelou, dominou e controlou a existência dos cristãos.
O pior é que, em pleno novo milênio, ainda
somos educados a perseguir a perfeição como
finalidade suprema da existência humana. Do ideal de perfeição que nos séculos passados seduzia o espírito, passamos ao
ideal de perfeição que seduz o corpo: seres belos, altos, magros...
A sociedade atual valoriza pessoas dominadas
pela eficiência, pelo sucesso a qualquer custo, pelo mérito, pela cobrança do
“vencer sempre”... A vida cotidiana continua a ser invadida pelo ideal de perfeição através da permanente
cobrança do“render ao máximo”, “produzir o máximo”, “nascido para ven-cer”...
Tal fórmula se traduz em competição, rapidez, eficiência, tensão emotiva
permanente, dedicação estressante ao trabalho porque “tempo é dinheiro”...
É necessário repetir
sempre: o ser humano não é capaz de viver “perfeitamente”. Um tal credo não
tem nada de humano, é uma “tortura inútil”.
A perfeição conspira contra a vida
interior, e ameaça, consequentemente, a humanidade
do ser humano.
A perfeição é uma falsa orientação, um
caminho que vai em sentido contrário à nossa realidade.
Assumindo a perfeição como objetivo da vida, o eu entra em contradição com a vida
mesma, que é essencialmente limitada, frágil e pobre.
A procura da perfeição
é um movimento que nega o ser humano como ser humano e põe em movimento uma
visão desumana da vida, pois desconhece sua condição de criatura limitada.
A busca de perfeiçãotorna-se um projeto fechado dentro do próprioeu
orgulhoso, que exige o máximo de si, o máximo de esforço para não falhar em
ponto algum, uma vez que o “perfeccionista” está convencidode
que somente será amado por Deus e pelos outros se for perfeito. Nesse esforço
ele tende a contar exclusivamente consigo mesmo, prescindindo de Deus e dos outros.
A perfeiçãodialoga com um código
de normas e de exigências, dialoga com a lei.
Operfeccionista não suporta o pecado uma vez que elevê o pecado não como uma rupturade laços de amor, não emrelação
a um outro, mas em relação ao próprio ideal.
A perfeição,
humilhada pelo pecado e pelas fraquezas, tende a fechar a pessoa sobre si
mesma, e fechá-la para Deus e para os outros. O Amor desaparece.
Como seguidores de Jesus, somos chamados a viver a santidade, em vez de centrarmos nossa
vida na busca da perfeição, e a santidade está relacionada com compaixão, com misericórdia, com amor,
com o convite que Deus nos faz: “Sede
santos porque Eu sou Santo”.
Deus é Amor e
nisso consiste a santidade de Deus.
Trata-se, pois, de abrir-nos para o Amor,dentro mesmo dessa realidade nossa de criaturas
limitadas, frágeis, pecadoras...
Ora, essa capacidade de Amar nos é dada por Deus, é um dom de Deus.
A santidade,
portanto, nos é dada por Deus e nos é dada agora:
-
Somosamados por Deus, sem condições,
agora, com todas as nossas imperfeições, pecados,
fraquezas,
debilidades, limitações, traumas...
-
e esse Amor de Deus sem condições,
nos torna capazes de amar agora, de
fazer o bem agora,
de
servir agora, de ser santo agora,
apesar de nossas imperfeições e fraquezas.
A santidadenunca
é humilhada pelo pecado, porque um Outro
nos acolhe e nos ama apesar de nosso pecado. A santidade é humildeporque
nos faz descer em direcção à nossa própria humanidade, aceitando-nos ser pobres, frágeis, limitados,
pecadores… e acolhendo, na ação de graças, uma salvação que nos é oferecida
gratuitamente pelo Deus que nos ama.
A santidade
nunca leva ao fechamento em si mesmo, antes abre-nos para Deus acolhendo sempre
o seu perdão e abre-nos para os
outros no amor, no serviço e no dom.
Contrariamente à perfeição
que dialoga com um código, a santidade dialoga com Alguém, com o Pai, com Cristo,
constituindo-se nesse lugar privilegiado de liberdade aberta ao sopro do
Espírito.
Santidadenão é um resultado que possa ser contabilizado; santidadeé um caminhar.
É nesse horizonte que devemos entender a afirmação“Sede perfeitos como vosso Pai celestial é per-feito”
(Mt. 5,48);
elaestá ligada com o texto precedente pela partícula de consequência
“portanto”.
Ora, o texto imediatamente antecedente fala precisamente do Amor sem limites do Pai. Assim poderí-amosconcluir
que o discípulo de Jesus deve ser perfeito
no Amor como o Pai celestial é perfeito no Amor.Ele ama a todos sem distinção, “fazendo nascer o sol e cair a chuva sobre maus e bons,
justos e injustos”.
O Deus de Jesus, portanto, não é um juiz com um
catálogo de leis que tem necessidade de mandar, controlar, verificar...
Basta-lhe a misericórdia, oamor para com justos e injustos..
A misericórdia de Deus constitui a resposta à indigência do ser
humano. Ela oferece a possibilidade de pôr de lado o julgamento, a violência e
a condenação.
A misericórdia é a resposta de Deus ao delírio do serhumano de querer
ser perfeito; é a única força capaz de detê-lo naquele processo de
auto-divinização, própria do perfeccionista.
Jesus propõe um modo de ser humano inseparável da misericórdia do Pai:
“Sede
misericordiosos como o Pai é misericordioso” (Lc. 6,36)
Ser misericordioso “como” Deus constitui o mais elevado
convite e a mensagem mais profunda que o ser humano recebe sobre como tratar a
si mesmo e aos outros.
O caminho de Jesus não vai
pelo terreno pantanoso da perfeição, mas pelo terreno firme do
perdão, da compaixão e da não-violência.
Texto bíblico:Mt 5,38-48
Na oração:Quais são as “marcas” da perfeição
impregnadas no seu interior pela formação
familiar, pela religião, pela educação...
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