Experiência de encontro com o Cristo das estradas poeirentas
“Se você não mover os pés, não reconhecerá o ritmo da vida”
A palavra “caminho” concentra em si uma das mais
profundas experiências do ser humano, revela uma das experiências mais
primitivas na sua arte de viver. Viver é caminhar. Em nossas entranhas, fomos
feitos com “fome
de estrada”. Nascemos com essa
inquietude: nossa vida é uma longa jornada. “Temos fome e sede de
estrada, e ela está ardendo por dentro”.
Qual é o caminho da vida? É a própria vida, ou
seja, o modo como se vive constitui o caminho da vida ou a vida
como caminho; isso revela que cada ser humano é essencialmente “viator”,
é um caminhante; ele não recebe a existência pronta; não possui ainda a vida em
plenitude.
Mais
importante que percorrer um caminho é “fazer caminho”. Percorrer
um caminho é andar por sendas abertas por outros e já palmilhadas pela tradição.
O risco é menor e a certeza mais consistente.
Abrir caminho é explorar o desconhecido, enfrentar perigos e correr
riscos. Isto constitui o “meu cami-nho” e a “minha direção” na vida. Não se
trata mais de um caminho como algo já feito e construído do qual fazemos uso;
trata-se de um caminhar, ou seja, auscultar e seguir os apelos
que emergem do cora-ção da própria vida. Nosso caminho pessoal tem de ser desbravado
com criatividade, ousadia e destemor. Fazemos o nosso caminho a partir de um
centro que é nossa individualidade irrepetível, nossa perso-nalidade. Em outros
termos: nunca haverá um simples uso de um caminho feito por outros. Cada um tem
de caminhar. Cada um tem de ser caminho.
“Não tenho caminho novo. O que tenho de novo é o
jeito de caminhar” (Thiago de Mello).
A Sagrada Escritura é atravessada pela revelação de um
Deus que também empreendeu um caminho
em direção à humanidade. O ser peregrino, por parte do ser humano,
corresponde ao ser peregrino por parte de Deus. O caminho se converte, então, em caminho
para um encontro mútuo, um encontro de dois peregrinos.
Também
o cristianismo sempre foi entendido como Caminho e Seguimento de
Jesus Cristo. As diferentes espiritualidades são compreendidas como caminhos dentro do único Caminho que
é J. Cristo.
Os
Evangelhos, portanto, não ensinam chegadas,
só partidas. Esse é o desafio: “entrar” no caminho
de Jesus é viver em terra de andanças. É a pura alegria de caminhar e nesse caminhar
a vida desabrocha como verdadeiramente humana. Nesse caminhar descobre-se Deus
e com Ele todo o sentido do universo.
Guimarães
Rosa dizia que a coisa não estava nem na partida e nem na chegada, mas na travessia.
A
experiência do seguimento de Jesus é “experiência de travessia”, onde
cada um constrói seu caminho diferente, original, não-normal... como Cristo.
No seguimento de Jesus não há caminho, mas caminhos; não
há traçado comum, mas trajetórias dife-rentes, ainda que confluentes. São caminhos de cristificação.
Jesus, o Homem dos
Caminhos, chama para uma Vida nova. Chama na vida e para a
vida e põe as pessoas em movimento, a caminho. A “pegada” que Ele deixa ao
passar é sua própria Vida partilhada.
Jesus é o homem que se definiu. Ele tem um sonho, um projeto. E surge diante das pessoas com força pessoal capaz de
sacudí-las e colocá-las em movimento. Ele “passa” e sua presença as atrai
arrancando-as da acomodação. Faz-se do chamado
um caminho, quando se partilha a
vida com quem chamou. Res-ponder ao chamado feito por Jesus significa tornar
esse chamado um caminho de entrega e de serviço.
O Evangelho de hoje confirma que a missão
requer andanças. A forma de realizar a viagem identifica o
discípulo como representante do Reino. A disponibilidade para colocar-se em
marcha deve ser total, ime-diata e sem distrações. Não há nada imprescindível
para o trajeto senão a vontade de executar o percurso; as autênticas
necessidades estão do outro lado do caminho, de maneira que Jesus nos mobiliza
na atitude do despojamento como estratégia que evita o imobilismo e a lentidão
do deslocamento.
“Nada para o caminho” favorece a
fixação unicamente no propósito fundamental da marcha.
Há uma exceção: “um cajado somente”. O cajado
exclui, neste contexto, qualquer significado associado a mando, violência, poder,
direção. A necessidade do cajado adquire sentido por sua relação ao caminho e
por sua condição de símbolo do caminhante. O cajado identifica o discípulo em
sua missão itinerante e repele a sedução do sedentarismo.
Os convites de Deus são
absolutos e constantes. Se estamos apegados ao que temos, jamais seremos
capazes de “fazer estrada com Deus” e participar da preciosa vida que Ele nos oferece.
Pioneiras são as
pessoas que vão a lugares em que ninguém esteve antes: “gente de fronteira”.
“Peregrino,
peregrino, que não sabes o caminho: aonde vais? Sou peregrino de hoje, não me
importa onde vou; amanhã? Nunca talvez. Admirável peregrino, todos seguem teu
caminho”
(Manuel Machado).
Na estrada do peregrino,
há o despojamento, a pobreza, por vezes a fome e a sede, os caprichos das
estações, a incerteza dos dias de amanhã. Há a liberdade do espírito, horizontes
infinitos, sem limites nem constrangimentos, os ímpetos de adoração, de
oblação, de ação de graças.
Há o imprevisto, o
acontecimento inesperado, favorável ou adverso, que é o melhor e mais seguro
dos sinais de Deus, que comanda o ritmo da marcha, as paradas, as estadias, as
partidas, as mudanças de rumo ou itinerário. Há o encontro com “fiéis e
infiéis”, companheiros que só por algum tempo “seguem caminho”, ou companheiros que se mantém fiéis, amigos que
ajudam, inimigos que espreitam, gatunos que roubam, pobres que compartilham o
mesmo pão.
Quando
compartilhados, os caminhos transformam os caminhantes. As pessoas
aprendem a se desfazer do supérfluo, a acelerar ou retardar o passo, a
partilhar dramas, a ouvir e a falar, a experimentar a humil-dade de pedir
acolhida... Enfim, achegar-se ao próprio coração.
Finalmente, a Estrada aproxima o peregrino cada dia, a
cada instante, da meta ainda
escondida, mas certa. Ao voltar-se para trás, ele se dá conta de que o itinerário
foi realmente maravilhoso, que a experi-ência o transformou, que está mais
“puro”,
mais “livre”, mais “autêntico”...
numa palavra, que
Deus, que está no têrmo, já palmilhava a Estrada com Ele.
Textos bíblicos: Mc. 6,7-13
Na oração: Jesus das estradas poeirentas
“Dá-me percorrer contigo,
Senhor, tua terra de
andanças.
Dá-me seguir-te a Ti somente.
Tu
passaste deixando tuas “pegadas” no pó da estrada, e sem perguntar “por que”
muitos te seguem. Vás sem nada, peregrino, caminhando qual romeiro; e vás
chamando seguidores, que te seguem sem nada levar. Quem se atreve a pisar
descalço tuas pegadas, sempre em marcha? A cidade não é teu caminho, é dura
para as tuas sandálias. Gostas de deixar na terra a marca de tuas pegadas.
Senhor
dos Caminhos, que tiras as pessoas da segurança, das suas
casas, de seus bens... e as atrai para seguir teu passo, feito atalho estreito,
um convite para ir onde quer que vás.
Quero
ser caminhante, de coração pobre e livre, feito tenda aberta em teu chamado.
Amém!”
- Nas nossas vidas acontece algo de verdadeiro e belo
quando nos dispomos a buscar dentro
de nós mesmos a razão da nossa existência: falta-nos ainda muito por
saber,
por ver, por sentir, por desfrutar...
- No “mapa espiritual” de nosso interior
ainda existe uma “terra desconhecida”,
que proporciona interesse à vida, suscita curiosidade, nos põe a
caminho... Grandes surpresas interiores
estão à nossa espera, e a capacidade de continuar procurando é que dá sentido ao esforço e vigor à vida.
- A nossa vida é um êxodo, um sair constante
de uma realidade para entrar em uma
outra realidade nova.
O peregrinar
é o elemento determinante e com maior valor simbólico para toda a vida.
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