TENTAÇÕES: “há coisas que são
mentira, mas que aparecem como
verdadeiras; aí se
enraíza seu atrativo”
“Jesus,
cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão e, no deserto, era guiado pelo
Espírito”
(Lc. 4,1)
O batismo é um evento de primeira
importância na vida e na missão posterior de Jesus.
Nesse momento Ele fez a experiência de
sua vocação, deu-se conta perfeitamente da missão que o Pai lhe
confiava e acolheu-a com todas as suas conseqüências.
Ora, aquela missão comportava, de
fato, não só um fim, que havia de realizar (a salvação e a
libertação total da humanidade) senão, também, um meio, ou seja, um
caminho e uma maneira de proceder, tendo em vista alcançar aquele fim. E
esse meio ou esse procedimento era, essencialmente, a solidariedade
com todos os pecadores e excluídos da terra, a ponto de morrer com eles e por
eles.
Aqui é decisivo compreender que o meio
– ou o como – da missão de Jesus é tão importante como o fim
mesmo dessa missão. Isso, por uma razão muito simples: o ser humano pode ser
enganado mais facilmen-te no que diz respeito ao meio ou ao “como”
que no tocante ao fim mesmo da missão.
Daí a relação tão profunda e
estreita que os evangelhos estabelecem entre o batismo de Jesus e as tentações
no deserto que o mesmo Jesus sofreu.
As tentações, na
realidade, são o prolongamento do relato do batismo; e isso se vê claramente
por uma série de detalhes que os Evangelhos apontam: é o Espírito, que pousou
sobre Jesus no batismo, Aquele que O leva “imediatamente” ao deserto; a primeira
tentação faz referência direta ao título “Filho de Deus”, proclamado no
batismo... Desde o início, Jesus aparece como o homem que “se deixa
conduzir”, a partir do centro, pelo
Dinamismo divino – isso é o Espírito – precisamente porque não está aferrado ou
identificado com seu eu. É o homem des-centrado em quem o Espírito pode
expressar-se com liberdade.
Não podemos esquecer que o tentador não
propõe a Jesus que se afaste de seu fim, ou seja, de seu projeto
messiânico de salvação (“Se és o Filho de Deus...),
senão que, na realidade, o
que ele faz é oferecer a Jesus alguns meios determinados para realizar a
salvação.
De
fato, os meios que o tentador apresenta são os meios, humanamente
falando, mais eficazes que nin-guém poderia imaginar: possibilidade de
transformar as pedras em pão, o prestígio indiscutível de quem salta do alto do
templo, sustentado pelos anjos e, para culminar, todo o mundo a seus pés.
Quem
resiste a um homem com tais meios?
Todos
serão atraídos porque, em definitiva, terá entre suas mãos o poder total e o
domínio absoluto.
Eis
aqui a intuição e a genial proposta do tentador: salvar e libertar toda a
humanidade, mas mediante o poder, o prestígio e a dominação. O
tentador não pretende que Jesus se afaste de seu fim, senão que procure
atingir esse fim, usando os meios que são exatamente o oposto da solidariedade.
Mas Jesus rejeita a tentação do poder,
porque para Ele, não há outro meio de salvação e libertação que a solidariedade
até a extrema radicalidade.
A tríplice tentação condensa as “pulsões”
mais importantes que o ser humano experimenta e que, quando alimentadas, podem
afastá-lo do melhor de si: o ter, o poder e o prestígio
(fama). Nesse sentido, Jesus não vive para seus interesses, mas em docilidade à
Vontade de Deus; Jesus não é um Messias que se impõe pelo poder nem pelo êxito;
a única força que o move é a fidelidade ao Pai e à missão.
Hoje
estamos condenados, pelos meios de comunicação, a alcançar o sucesso custe o
que custar, doa a quem doer, impedidos de realizar gestos de gratuidade e
solidariedade. A Ética e a Moral são apenas con-ceitos idealistas que não
correm mais nas nossas veias.
Por que ser transparente num
mundo de pessoas opacas e “brilhantes”, que só querem ofuscar
os outros com tanto brilho individual? A ideologia da vaidade é aquela que responde por essa ânsia de tudo ganhar, de
comparar-se com os outros num ritmo frenético.
Como recuperar os sonhos e utopias quando precisamos
manter nossos rostos com aparência de jovens enquanto nossos espíritos estão
carcomidos pela angústia e pela não-superação dos fracassos que são sinais das
nossas tentativas de avançar cada vez mais?
“Esta fome de prazer, de posse e de poder, esta sede de reconhecimento
pelo êxito e admi-ração, esta é a perversão do homem moderno. Este é seu
ateísmo. E assim o homem se con-verte num desgraçado e
altivo semi-deus” (Moltmann).
As “tentações de Jesus” constituem a melhor mediação que dispomos
para uma aproximação ao espaço de nosso próprio coração. E o
coração é lugar onde se encontram dois dinamismos, dois impulsos:
a)
impulso para “ir além de si mesmo” – impulso de vida
b) movimento de retração-medo-apegos – impulso
de morte
Aqui, trata-se da consciência da presença
destas duas forças opostas (uma de alargamento ou expansão de si mesmo
em direção aos outros, à criação, a Deus; e outra de fechamento, resistência e
medo).
O tempo
Quaresmal ajuda a des-velar (tirar o véu, pôr às claras...) os
dois dinamismos, as duas tendências, dois impulsos... que se fazem presentes em
nosso interior. Não se trata de alimentar uma luta entre eles, como um combate
entre o bem e o mal; tampouco se trata de uma leitura moralista diante da
presença das chamadas “tentações” (tendências, impulsos, inclinações...
presentes em todos nós).
O seguimento de Jesus não é
luta interna que desgasta, levando ao sentimento de impotência e desânimo. O
combate dualístico (entre o bem e o mal) desemboca no puritanismo, no
farisaísmo, no legalismo, no perfeccionismo, no voluntarismo... onde o centro
sou “eu”.
A questão de fundo é saber qual
dos dois dinamismos eu alimento; é aqui que entra a liberdade (ordena-da)
para deixar-se conduzir pelo Espírito. O centro é o Espírito.
Trata-se de sermos dóceis para
deixar-nos conduzir pelos impulsos do Espírito, por onde muitas vezes não
entendemos e não sabemos.
Não é possivel
conseguir uma situação de paz e reconciliação interna se não se parte de uma
escuta muito atenta das vozes que
ressoam em nosso interior, atraindo para direções contrárias. O engano acontece quando nosso coração
se apega “pulsionalmente” aos
dinamismos de morte (riqueza, poder, prestígio) até depender deles; nesse caso,
eles deixam de ser mediações do Reino para converter-se em ídolos do próprio coração. Deles se espera a salvação, e
não de Deus.
Não será através do voluntarismo que poderemos
calar essas vozes, negar oposições internas existentes, conci-liar diplomaticamente
os impulsos e os movimentos que se opõem em nosso interior ou reconciliar as
desavenças íntimas existentes. O decisivo é “deixar-se conduzir” pelo Espírito. Aqui não há engano.
Texto
bíblico:
Lc. 4,1-13
Na oração: A oração sobre as “tentações de Jesus” nos ajuda a tomar
consciência das alianças e cumplicidades nas
quais
podemos cair em nossas relações com o mundo
e com aqueles elementos que de modo mais decisivo põe em perigo nossa
liberdade: as riquezas, o poder, o prestígio. É uma espécie de
"embriaguez existencial" na qual a alteridade
desaparece, a abertura a Deus se atrofia e a gratidão frente aos bens se
esvazia.
- Rezar minhas “pulsões desordenadas”.
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