QUEM É O CULPADO?
“...
pensais que eram mais culpados do que todos os habitantes de Jerusalém?”
(Lc. 13,4)
No seu caminho de vida
Jesus se depara com acontecimentos trágicos; algumas pessoas lhe dão a notícia
de uma horrível matança de alguns galileus no interior do Templo.
O quê estas pessoas
esperam de Jesus? Desejam que Ele se solidarize com as vítimas? Querem que Ele
lhes explique qual é a culpa dos galileus para merecer uma morte tão
violenta? Por que Deus permitiu aquela morte sacrílega em seu próprio templo?
Para os judeus não há castigo sem culpa.
Esta é a nossa permanente
tendência em buscar culpados pelas desgraças, sejam provocadas
pelo próprio ser humano, pela força da própria natureza, pelas doenças
inesperadas, acidentes, etc...
Jesus desmascara tal
atitude e rejeita toda crença de que as desgraças são um castigo de Deus, ou
que as pessoas, de uma maneira ou de outra são culpadas. Jesus não revela o
rosto de um Deus “justiceiro” que castiga seus filhos e filhas, “distribuindo”
enfermidades, desgraças ou acidentes... por causa de seus peca-dos. Ele não
perde tempo com considerações teóricas sobre a origem última das desgraças, nem
da culpa das vítimas ou da vontade de Deus. Ele convida as pessoas a dirigirem
o seu olhar para o presente, fazen-do
uma “outra leitura” dos acontecimentos trágicos.
Certamente, a primeira coisa
não é perguntar-nos onde está Deus, mas, onde estamos nós diante
das calamidades e sofrimentos. A pergunta não é “por quê Deus permite esta
terrível desgraça?”, mas “por que nós consentimos e não
reagimos solidariamente diante de tantos seres humanos que são violentados, que
vivem na miséria e fome, que são indefesos diante da força da natureza?
Aquele que acompanha Jesus no seu caminho de vida, também
“vai sendo talhado” pelas cenas que con-templa, com o coração aberto à dor e à
aflição da humanidade. Essa dor esvazia nossas auto-suficiências e purifica
nossas auto-imagens narcisistas, humanizando-nos. Ao contemplar o amor redentor
de Deus revelado em seu Filho Jesus, nós nos perguntamos onde está Ele
quando acontecem desgraças.
Há aqui uma inversão de perguntas: Para responder à interrogação -“Onde
está Deus nas situações de sofri-mento e
morte?”-, Deus nos desafia
a responder à sua própria questão: “Onde está você no meu sofrimento?”.
Na Quaresma, de modo
especial, “descemos” com Jesus até às dores da humanidade.
A solidariedade com os pobres,
a fidelidade à vida evangélica, nos fazem descer aos porões das contra-dições
sociais e políticas, às realidades inóspitas, aos terrenos contaminados e
difíceis, às periferias insa-lubres das quais todos fogem e onde os excluídos
deste mundo lutam por sobreviver. Ali nos encontra-mos com o rosto Compassivo
de Deus, identificado com todas as vítimas da história.
É o Deus que se identifica com a
dor do mundo, com a marginalização dos excluídos e com a desgraça de todos os
miseráveis da terra. Não podemos chegar ao Deus de Jesus pelo caminho largo e
fácil do poder e da razão, senão pela senda
escarpada e dura da solidariedade e da loucura da Cruz.
A questão determinante para os
cristãos está em buscar a Deus e crer na sua transcendência a partir da solidariedade
com as vítimas, com os crucificados deste mundo e com todos os que necessitam
calor humano, compreensão, tolerância, companhia e carinho.
O tempo da Quaresma desperta
em nós o sentido profundo da conversão, e isto não significa pedir contas a um
“deus distante”, mas identificando-nos com as vítimas; não descobriremos Deus
quando protestamos sua indiferença e frieza diante das desgraças, ou negando
sua existência, mas colaborando de mil formas para “aliviar a dor humana”.
Vamos então descobrir que Deus está nas vítimas, identificando-se e sofrendo
com elas, defendendo sua dignidade eterna de filhos e filhas; vamos descobri-Lo
presente naqueles que lutam contra tudo aquilo que desumaniza o ser humano.
A busca em apontar culpados
nos limita, nos afunda, alimenta a irresponsabilidade que infantiliza, e nos
faz cair no angustiante sentimento de culpabilidade e desespero; a atitude
sadia é a da responsabilidade, como sentimento maduro de quem
acolhe a vida com as diferentes situações que ela apresenta.
É a responsabilidade
que desperta pesar e dor frente às situações de desgraças e calamidades; mas
esse pesar doloroso não nos paralisa e nem nos afunda, mas nos mobiliza para a
mudança.
É esta responsabilidade que
podemos associá-la com a conversão, pedida pelo Evangelho de hoje. Porque o
“perecer” de que fala não deve ser entendido em chave de ameaça, culpa ou
castigo, mas simplesmente como a conseqüência de uma atitude e um comportamento
desajustados.
Em outras palavras: se não
somos responsáveis, ou se não respondemos humanamente aos diferentes desafios
que a vida nos apresenta, estamos fechando as portas de saída, criando
infelicidade para nós e para os outros, tornando a convivência impossível e
destruindo o planeta; ou seja, estamos provocando nosso próprio desastre. É
precisamente a isso que aponta a parábola da figueira plantada na vinha.
A
“experiência
de fé” constitui, muitas vezes o lugar onde a culpa pode nos armar as piores trapaças, impedindo a manifestação
da força vital que há em nós.
Desse modo, a fé, em vez de libertar, converte-se num
verdugo a serviço das forças de morte, traindo assim o que há de mais profundo
em sua mensagem de liberdade.
A mensagem alegre do Evangelho se perverte e a vivência cristã deixa-se
invadir por um mal-estar difuso, uma tristeza, uma angústia, um pesar... que
muitas vezes tornam difícil reco-nhecer no anúncio de Jesus uma mensagem da Boa
Nova.
Também a imagem do “Deus sempre maior”, do Deus vivo e
prazeroso, do Deus livre e libertador, fica diminuída segundo o tamanho de
nossa consciência e incons-ciência, marcadas pela culpabilidade.
Por obra e graça da culpa, “Deus” converte-se num Deus de
morte, num Deus oprimido e opressor, num Deus “onivigilante”, que
investiga morbidamente em nossa interioridade qualquer pensamento ou desejo.
D’Ele nada escapa: tudo vê, tudo escuta, tudo controla... Um “deus”
assim é inaceitável e insuportável.
“Assim como Deus nos libertou
do pecado... torna-se urgente libertar Deus da culpa”
(Dominguez Morano). Um “Deus de vida” nos foi revelado, mas
nossa culpa o transformou num “Deus de
morte”. “Libertar Deus da culpa”
significa “deixar Deus ser Deus” em nossa vida. Poderíamos, assim,
redes-cobrir e viver na presença de um Deus compassivo, um Deus festa, um Deus
afeto, um Deus liberdade, um Deus criança...
Foi justamente para nos libertar do atoleiro da lei e da culpa
que Cristo assumiu nossa condição humana. N’Ele, o Pai nos libertou da angústia
da culpabilidade mórbida, para tornar possível em nós um encontro fecundo e transformador da vida. Libertados do “circulo
infernal da culpa”, agora sim,
podemos aderir à novidade do Reino, na plenitude da alegria e da festa.
Texto bíblico: Lc. 13,1-9
Na
oração: Examinar com cuidado a origem e a finalidade dos sentimentos de culpa pode produzir
um grande avanço
no caminho da saúde interior e espiritual. Esclarecer, desmascarar a culpa,
pode ser muito libertador, pois fortalece nossa atitude esperançosa e nossa relação com Deus, com o mundo e com os outros revela-se
mais transparente e otimista.
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