sábado, 8 de setembro de 2012

Texto para o Evangelho de amanhã.


VIDA DESTRAVADA, HORIZONTE ABERTO

“Imediatamente abriram-se-lhe os ouvidos e a língua se desprendeu” (Mc. 7,35)

Na religião judaico-cristã a palavra ocupa um lugar central.
Para um judeu, poder escutar a Deus e poder orar a Ele fazia parte da sua identidade; ele repete todos os dias o “Shema Israel” (“escuta, Israel”), a oração de Deut. 6,4-9, que determina que o viver diário, em todos os seus momentos, esteja permeado desta escuta.
Por isso, ser “surdo e mudo” significava estar afastado da essência da devoção, incapaz de realizá-la pelo ouvido e pela palavra; não escutar e nem falar significa não desenvolver a característica mais íntima do ser humano: o acesso à linguagem.
De fato, nós somos as palavras que escutamos e aquelas que falamos; a capacidade de escutar e de falar revela nossa verdadeira identidade.
Considerar o mistério escondido naquela palavra que saiu de nossa boca e de nosso coração de forma afirmativa, redentora... bendita. Quando assim conseguimos comportar com nossas palavras, estamos contribuindo, literalmente, para a “edificação humana” do outro. Com isso, estamos falando de um ser mais saudável, equilibrado, integrado em suas dimensões (psíquica, social, corpórea, espiritual).

É extraordinário perceber como as palavras ditas com cuidado e amor (pedagogia de Jesus) produzem efeitos benéficos para o ser humano. Como é importante para uma pessoa, travada na sua capacidade de comunicação, escutar palavras ordenadoras de emoções, de auto-estima. Essas palavras são bem-aventu-radas, pois se tornam capazes de fazer crescer, sustentar, enfim, edificar pessoas mais saudáveis no convívio social, humano-afetivo, espiritual.
Este é o pano de fundo para a consideração do relato da cura do surdo-mudo, que o Evangelho de hoje nos propõe. Nele encontramos a ação personalizadora de Jesus, que será feita de acordo com a linguagem de compreensão do enfermo. Com sua presença terapêutica, Jesus gera vida, destrava as pessoas para que vivam a partir da verdade mais profunda de si mesmas.

A ação começa com o movimento de algumas pessoas anônimas que conduzem um surdo-mudo (também anônimo) até Jesus. O que aparece claro são suas perceptíveis carências. A surdez lhe impede ser autô-nomo. Ele não se desenvolve por seus próprios meios. Seu grau de dependência é tal que nem sequer tem consciência para reconhecer a dimensão de seu problema. Outros tomam a iniciativa por ele. Sua situação é agravada pela incapacidade de falar. A surdez que anulava sua receptividade, unida à sua anormalidade na fala, lhe impediam uma relação normal com o mundo exterior. Ele vive fechado em si mesmo, sem poder comunicar-se com ninguém. Está aprisionado em seu isolamento, travado em sua existência.
Portanto, Parece lógico, que alguém tivesse que atuar para conduzir o surdo-mudo até Jesus, para que fosse “tocado”; aqui aparece a força do contato.
Sabemos pouco da riqueza de nosso contato. O contato nos cura. É um caminho de comunicação maravi-lhoso. Na enfermidade, muitas pessoas não buscam mais que o contato. Um verdadeiro contato nos envia sempre para dentro. Não é somente o contato da pele, mas o que nos põe em marcha para nosso interior.
O contato nos faz despertar. Existe a idade da palavra, a do ouvido, a do olhar..., mas neste momento Jesus se detém na idade do contato. O caminho do contato é o da mais profunda comunhão.

Jesus começa por usar uma linguagem não-verbal; é a linguagem mais primitiva, anterior à palavra: através dos gestos, o surdo-mudo vai sendo reconstruído em sua humanidade.
Jesus, no início da cura, “o conduz à parte, longe da multidão”; uma condução não-verbal, um afasta-mento da multidão, para longe da massificação.
E lá, na intimidade do contato, o doente é cuidado na individualidade das suas dores.
- “Pôs-lhe os dedos nos ouvidos”; literalmente, “pôs o dedo na ferida”.
   A mão é fonte de contato, é canal de passagem da energia curativa.
- “Depois tocou-lhe a língua com saliva”;  força terapêutica da saliva.
- “Levantando os olhos ao céu..” Jesus Cristo olha para o alto, em direção ao Pai. Com o olhar para o alto, encaminha-o para além de si. É preciso remetê-lo ao Pai, origem de toda vida.
- “Jesus suspirou”. Com o sopro, prolonga o gesto do Criador no 6º. Dia da Criação: lembra como Deus “fez tudo bem” no início. Recorda o sopro do Espírito, que transforma o “caos” existencial do surdo-mudo em “cosmos”, ou seja, a presença do sopro que passará pelas cordas vocais e pela língua, para ser transformado em palavras.
- “E disse-lhe: ‘Effatha’ (que quer dizer: ‘abre-te’)”. Palavra dirigida ao coração do surdo-mudo. É como se dissesse: “abre-te à tua identidade! destrava teu interior!”
Depois de tantos passos no não-verbal e primitivo, vem a palavra. E o surdo-mudo desata sua língua e começa a falar. Insere-se nos devotos que ouvem a Deus e proclamam que Ele é o único, com todos os órgão do corpo.

Uma vez libertado de sua limitação, o personagem se emancipou, recuperou sua autonomia e pode mani-festar-se sem entraves. Agora nada o limita. Possui plena capacidade para integrar-se na convivência social. Desaparecem as causas que lhe impediam optar com liberdade. A possibilidade de uma nova vida se abriu para ele.
Contrariamente aos outros milagres, desta vez Jesus faz uma série de gestos; mais precisamente, eram ações que demonstravam relação e envolvimento: tocou o corpo do homem, olhou para o céu, exprimin-do sua comunhão com Deus, e suspirou como sinal de participação profunda no acontecimento.
A cura não é um ritual exterior, mas brotava de um encontro, de um gesto que demonstra comunhão entre a pessoa doente, Jesus e Deus.

Marcos, narrando o milagre da cura do surdo-mudo, nos leva, ao mesmo tempo, a intuir que acontece também outro milagre: em pleno território pagão, Jesus abre os ouvidos das multidões para que escutem a Palavra de Deus, desata o nó da sua língua de modo a se unir ao cântico de louvor que se eleva a Deus por todos aqueles que crêem nele. De fato aconteceu que, aqueles que levaram o doente a Jesus, no final, também foram “curados”.
Em todo o trecho, o surdo-mudo não diz uma palavra, não toma nenhuma iniciativa, não exprime um pensamento ou um sentimento que tenho sido relatado pelo evangelista. De resto, a sua doença o tornava incapaz de se comunicar.



Mas, depois do encontro com Jesus e da cura, aquele que estava distante de todos tornou-se pólo de atração, no sentido de que, por meio dele, a multidão reconheceu e louvou o Senhor.
Sua doença, sua cura, sua vida, se tornaram sacramento, um ponto de encontro, um “lugar” no qual também os outros puderam e podem encontrar Jesus.

Texto bíblico:  Mc. 7, 31-37
A missão de Jesus é a de devolver à pessoa a sua palavra. Não apenas a palavra aprendida, mas a palavra que exprime verdadeiramente o que ela pensa, que expressa seus profundos desejos, que revela sua real identidade.

Na oração:  “O que não consigo ouvir?”
                                                              - em mim - do meu caos de impulsos, afetos e desejos?
                                                              - do meu próximo - seu grito de dor, seu clamor, seu desamparo, sua alegria?
                                                              - de Deus – do Seu caminho, do Seu chamado, da Sua bênção?

E o que está mudo em mim?
– Quê linguagem está presa, quê órgão fonador não se articula com o sopro do Espírito?
- Quê palavras são emudecidas e alojadas no corpo, na forma de dores, doenças, tensões musculares, inibições
- Quê afetos são sufocados na forma de mutismos, angústias, raivas, tristezas e depressões?
- Quê palavras são inibidas e transformadas em condutas de agressão contra outros e contra mim?
- Quê órgãos são esquecidos? Minhas entranhas ainda são consultadas?

terça-feira, 28 de agosto de 2012


ESSES CRISTÃOS DE MÃOS LIMPAS...

“Quando o Deus da história vier, olhará nossas mãos” (Menapece)

O relato do evangelho deste domingo se abre com a apresentação dos personagens. Jesus aparece como ponto de referencia frente a dois grupos de indivíduos (“os fariseus e alguns letrados”) representantes do poder religioso oficial, ou seja, grupos de piedosos que exercem uma pressão religiosa sobre o povo em sua pretensão de submetê-lo a uma existência marcada pelo rigorismo religioso.
Aqui, no embate com Jesus, eles não fazem nenhuma referência ao anterior evento da “multiplicação dos pães” e nada dizem sobre a refeição de Jesus com a multidão; eles não se preocupam com aqueles que não comem, mas observam a compostura daqueles que comem. Sua visão míope foge do essencial para permanecer no periférico. Desviam a atenção para o terreno de seus domínios, uma moral superficial, descompromissada. Assim, pois, centram sua atenção em alguns dos discípulos para captar uma irregula-ridade em sua forma de comer, pois eles comem com “mãos impuras”.

Os líderes religiosos tem “mãos limpas” porque não as usam para o serviço aos outros; são “mãos assépticas” porque não se “contaminam” no contato com as pessoas. Eles se mostram incapazes de ver as mãos como mediação para uma nova humanização, reduzindo-as e atrofiando-as devido a seus esquemas religiosos e morais. Suas mãos carregam censuras, traficam destruição, encarnam a falsidade... Suas mãos são temidas porque fecham o futuro, excluem e espalham o medo, pesam porque julgam...
O coração é o lugar onde o ser humano se revela. As mãos são expressão daquilo que está presente no coração; um coração cheio de ternura, bondade, compaixão... se expressa através das mãos ternas, bondo-sas, compassivas, que praticam a partilha... Um coração cheio de violência, arrogância, ambições, malí-cias... se expressa através de mãos violentas, maliciosas, fechadas... As mãos... o espelho da alma.
O ser humano vale pelo que vale seu coração, isto é, por aquilo que deseja, busca e ama desde o mais profundo de si mesmo. É no coração – no mais íntimo de seu ser – que o ser humano acolhe ou rejeita Deus e os outros. É o coração transformado que dirige a mão santificada, delicada. É o coração agrade-cido que transforma as mãos em instrumentos de graça.

Podemos fazer e dizer muitas coisas com nossas mãos. Admiramos as mãos dos artistas, as mãos curati-vas dos médicos, as mãos terapêuticas de quem transmite energia libertadora, as mãos de uma mãe que amassam o pão e acariciam, as mãos eloquentes dos mudos, as mãos calejadas do trabalhador, as mãos daqueles que abençoam, servem, partem e repartem...
As mãos estão sempre associadas à ação, como a cabeça à razão e o coração aos sentimentos.
As mãos, portanto, adquirem uma infinidade de formas: mãos que levantam para abençoar, mãos que baixam para levantar o caído, mãos que se estendem para amparar o cansado. São como as mãos de Deus que criam, que guiam, que salvam... Quando estendemos os braços e as mãos e tocamos o outro esponta-neamente descobrimos a compaixão e a riqueza que existe em todos nós.
As mãos são o instrumento mais universal de que o ser humano dispõe. Além de instrumento, as mãos são ainda meio de comunicação entre pessoas de línguas diferentes. Através das mãos comunicamos energia, nosso coração, nossos sentimentos...
Benditas são as mãos que se abrem, que quebram resistências e preconceitos; benditas são as mãos carre-gadas de entusiasmo e que apontam para um horizonte. Somente uma mão aberta está em condições de fazer-se encontro, de apertar, de acolher, de cuidar; somente uma mão aberta se transforma em promessa de novo encontro.


Mas também, através das nossas mãos, podemos comunicar algo maior que nós e que não nos pertence. “Temos uma Mão na nossa mão”.
Encontramos esta expressão em diferentes tradições religiosas: “a Mão de Deus”. Algumas vezes podemos nos sentir guiados, como se tivéssemos uma Mão pou-sada em nosso ombro, em nossa cabeça, nas nossas costas, para nos fazer avan-çar, para nos manter de pé. Na nossa mão há a Mão da Vida; podemos traba-lhar e co-perar com esta Mão. Nossas mãos são o prolongamento da Mão providente e cuidadosa de Deus.

Mãos abertas, estendidas, oferecidas

Olha tuas mãos. Toca-as com carinho: os dedos, a palma, o reverso.
Quantas coisas podes fazer com as mãos.!!!

Mãos que compartilham, que acariciam, mãos unidas no trabalho solidário, esforço generoso.
Também mãos abertas, necessitadas, que expressam confiança ao dirigir-se a Deus na oração.
Ao orar elevamos nossas mãos ou as unimos.
Estende tuas mãos ao Pai com confiança. Tu... chamado a ser “a mão amiga de Deus”.

Nossas mãos... uma maravilhosa linguagem. Expressão de nosso calor de felicidade, alegria, amor, ajuda,
Temos mãos que saúdam ou aplaudem e felicitam o que é bom nos outros; mãos que perdoam ou se abrem para compartilhar.
Expressamos um gesto de perdão e reconciliação com o irmão mediante um aperto de mãos.

Mãos estendidas: Tua vida... para dar a mão, levantar o caído, sustentar o fraco, curar o enfermo, guiar o ce-
                                go, compartilhar com o pobre, libertar o prisioneiro.
Onde há um necessitado... uma mão estendida. Dar a mão... uma mão amiga.
Sem paternalismo que alimenta o ego de quem dá e humilha a quem recebe.
Pensa em pessoas com quem tu podes ser mão estendida.

Mão unidas: Darás sentido à tua vida se constróis pontes de solidariedade e formas o círculo da fraternidade.
                      A comunidade cristã... um conjunto de mãos unidas. Os cristãos curam feridas, enxugam lágrimas, repartem carícias, prestam serviços. Vives tu com as mãos unidas?

Mãos abertas: Chamado a oferecer tua mão aberta, amistosa, desarmada, pacífica. Não os punhos fechados.
                          Mãos para acariciar. Mãos para proteger e cuidar, não para submeter.
Mãos abertas para compartilhar. Mãos que não retém o que o irmão necessita. Abrir a mão, abrir o coração, abrir as entranhas de misericórdia. Caminhas tu pela vida com tuas mãos abertas?

Tuas mãos... sacramento de Deus. Fazem presentes e visíveis as mãos de Deus.
Tens no coração o Amor de Deus. A força que te leva a amar o pobre como Deus o ama.
Serás a mão amiga de Deus, sua mão boa e carinhosa, sua mão forte e libertadora, sua mão criadora de vida, sua mão generosa que protege e cuida a vida.
Mãos para unir-se, criar, curar, compartilhar... como as de Jesus.
Quando apresentas tuas mãos para bendizer o Senhor, ou abençoar os irmãos, não te preocupes se estão vazias ou cheias; apresenta-as desgastadas.
                                                                                                          (cf. Revista Testimonio, n. 213)

Texto bíblico:  Mc. 7,1-8.14-15.21-23

Dá-me, Senhor, mãos como as tuas:
Mãos ternas para acariciar epidermes e corações.
Mãos fortes para sustentar os que já vergam.
Mãos enérgicas para levantar os caídos e colocar de pé os paralíticos.
Mãos suaves para abrir os olhos dos cegos e dar luz aos que caminham tateando.
Mãos misericordiosas para curar toda dor e toda doença.
Mãos corajosas para desvelar a injustiça dos homens.
Mãos atrevidas para descobrir o que os corações ocultam.
Mãos acariciadoras para despertar fibras adormecidas na vida dos homens.
Mãos trabalhadoras para empregá-las onde faltam.
Mãos artesãs para modelar a tua imagem e semelhança. (Antonio González Paz)

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Convite


 

Caro(a) amigo(a),



Veja nossa programação para este sábado, dia 25/08:

- “Clarice Lispector e o livro “Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres”, de 8h30 às 11h30, com a professora Marília Murta. Ainda é possível participar do curso.

- Tarde de Espiritualidade – das 14h30 às 18h, com a presença do querido padre Nilo Ribeiro sj. Na delicadeza do Tempo Comum, o tema será: “Que o mistério se desvele e outra vez mistério seja”.


 

Informações no telefone: 3342-2847


 

Atenciosamente,

Equipe do Centro Loyola de Belo Horizont

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

CRISE; RISCOS E OPORTUNIDADES (Para rezarmos o Evangelho de domingo).


CRISE; RISCOS E OPORTUNIDADES

 

“Esta palavra é dura. Quem consegue escutá-la” (Jo. 6,60)

 

É hoje quase “lugar comum” afirmar que nos encontramos num tempo de crise, no mundo, na Igreja, nas instituições, na vida pessoal e familiar, no mundo do trabalho, da economia,da política, da educação...

Rejeitada por muitos como algo perturbador da ordem e destrutivo da “normalidade” da vida, a crise  é um processo normal e faz parte da essência da vida e da história. Ele emerge de tempos em tempos para permitir a vida permanecer sempre vida, poder crescer e irradiar. O simples fato da crise é bom sintoma. É sinal de que se abriram novas possibilidades, de que fermenta um processo depurador e salutar.

 

O termo chinês para a palavra “crise” (“wei-ji”) fala de duas coisas: perigo e oportunidade.

No grego, crise (“krisis”, krinein”) significa a decisão num juízo.

De crise vem também a palavra “critério” que é a medida pela qual se pode discernir e distinguir o autêntico do inautêntico, o bom do mau.

No sânscrito “kri” ou “kir” e significa “desembaraçar”, “purificar”, “limpar”. Crise designa, então, o processo de purificação do cerne, para trazer à tona o essencial e eliminar os elementos secundários que foram se acumulando no interior da vida, comprometendo-a e esvaziando-a de sentido.

Todo processo de purificação implica ruptura, divisão e descontinuidade. Por isso esse processo é tam-bém doloroso e assume aspectos dramáticos. Mas é nessa convulsão que se catalisam as forças e se purificam os valores positivos contidos na situação de crise.

 

Toda situação de crise, para ser superada, exige uma decisão (a pessoa é convocada “não a opinar sobre algo, mas a decidir sobre algo). Esta marca o caminho novo e uma direção diferente que é dada à vida. Sem essa decisão não há vida. Idéias, nós as temos, mas decisões, nós as vivemos.

Por isso, uma situação de crise é muito rica; não constitui uma tragédia na vida, mas seu vigor e transformação. É oportunidade de crescimento. Não é perda do chão debaixo dos pés, mas desafio que esse chão vital lança para uma maturação maior. Na crise tire o “s”: crie!

Para os despreparados (imediatistas) a crise representa estresse e colapso. Para os atentos (contempla-tivos), significa um trampolim para o aprendizado e para o novo.

A crise provoca uma decisão que abre um novo caminho de crescimento e rasga um horizonte de possibilidades que vão moldando um novo estilo de vida. Não havendo decisão, protela-se a crise, e as forças positivas nela contidas nunca chegam a se manifestar.

Crise é o momento crítico da decisão, onde algo é deixado para trás e se abre um patamar superior que possibilita uma nova forma de vida.

 

O Evangelho de hoje nos ajuda a interpretar e viver a crise com profundidade mais evangélica.

Segundo o evangelista João, Jesus resume assim a crise que está se criando em seu grupo: “As palavras que vos disse são espírito e vida. Mas entre vós há alguns que não crêem” (v.63).

Jesus introduz um espírito novo naqueles que o seguem; suas palavras comunicam vida; o programa que propõe pode gerar um movimento capaz de orientar o mundo para uma vida mais digna e plena.

Mas existem aqueles que resistem aceitar seu espírito e sua vida. O narrador diz que “muitos voltaram para trás e não andavam mais com Ele”. Na crise revela-se quem são os verdadeiros seguidores de Jesus.

O opção decisiva sempre é essa: quem volta para trás e quem permanece com Ele, identificados com seu espírito e sua vida? Quem está a favor e quem está contra seu projeto?

 

O grupo começa a diminuir. Mas Jesus não teme o fracasso e não pronuncia nenhum julgamento sobre eles. Só faz uma pergunta decisiva àqueles que permaneceram junto dele: “Não quereis também vós partir?” Seguimento é questão de decisão pessoal; é exercício de liberdade.

Esta é a pergunta que ressoa no interior de cada um de nós: Quê queremos? Por quê permanecemos? É para seguir a Jesus, acolhendo seu espírito e vivendo seu estilo? É para trabalhar em seu projeto?

A resposta de Pedro é exemplar: “Senhor, a quem iremos nós? Tu tens palavras de vida eterna”.

Os que permanecem o farão por Jesus. Só por Jesus. Comprometem-se com Ele. O único motivo para permanecer em seu grupo é Ele. Ninguém mais.

 

Jesus põe seus seguidores em crise porque tem consciência de que há momentos na vida em que, para continuar, é preciso romper, entrar num processo de agitação, de instabilidade e radical questionamento.

A crise é esse momento angustiante, mas profundamente criativo, que permite o evoluir da vida sobre outras bases e com outros valores.

A crise não é um mal que surge inesperadamente, interrompendo o curso normal da vida; é um momento de virada. Caímos em crise quando algo novo quer entrar em nossa vida e não podemos ou não queremos dar-lhe espaço e atenção. Crise na vida é chance de vida.

A crise traz sempre incômodos, aflições e dores tremendas, mas também as promessas de uma nova vida, uma forma mais integral de viver, de amar, de sonhar, de lutar, de sofrer e de ser feliz.

A crise é portadora de vitalidade criadora; não é sintoma de uma catástrofe iminente, mas é o “momento crítico” em que a pessoa se questiona radicalmente a si mesma sobre o seu destino, sobre o mundo que a cerca, sobre a sua missão... A crise aparece como uma dimensão da transformação.

As crises tem sempre uma dimensão instrutiva, isto é, sempre uma oportunidade de aprendizagem, de evolução, de crescimento. Elas podem sinalizar mudanças positivas e dão início a profundas transforma-ções, rompendo coisas incrustadas, atitudes acomodadas, visões estreitas...

O caminho torna-se mais claro, a vida mais agradável, o futuro mais empolgante.

Depois de qualquer crise, seja corporal, psíquica, moral, seja interior e religiosa, o ser humano sai purificado, liberando forças e criatividade para uma vida mais vigorosa e cheia de renovado sentido.

 

Nos momentos de crise vive-se com especial intensidade o “kairós” (momento de graça), onde o essen-cial surge com mais clarividência. Tudo o que é acidental, periférico, empalidece em sua consistência e va-lidade. É chance de vida nova num outro nível e dentro de um horizonte mais aberto.

Se compreendermos que a crise é o nicho generoso onde se prepara o amanhã, então teremos a oportuni-dade de amadurecer e de dar um salto para dentro de um horizonte mais rico de vida, humana e divina. Nesse sentido, a crise é oportunidade para desper-tar nossa humanidade; ela nos humaniza.

 

Texto bíblico:  Jo. 6,60-69

 

Na oração: fazer memória das crises na vida pessoal

                      – elas foram ocasião para uma mudança ou acomodação, movimento em direção do novo ou re-

                         traimento? Medo ou ousadia? Criatividade ou “normose”?