quinta-feira, 15 de março de 2012

Sugestão do Padre Adroaldo para rezar o evangelho do próximo domingo.


OU DEUS, OU A VIDA: o dilema que nos desumaniza

“Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho Unigênito, para que não morra todo aquele
que n’Ele crer, mas tenha a vida eterna” (Jo. 3,16).

O contexto do Evangelho de hoje é a conversa noturna de Jesus com Nicodemos, uma autoridade religio-as, membro do Sinédrio. Nicodemos representante da religião judaica, Jesus portador de vida.
De fato, muitas pessoas que crêem, com freqüência, estabelecem uma separação entre Deus e a vida; ou seja, Deus e vida como realidades dissociadas e, muitas vezes, contrapostas.
São muitos aqueles que vêem na vida, com seus males, seus sofrimentos e suas contradições, a grande dificuldade para acreditar que existe um Deus infinitamente bom e misericordioso. E, em sentido contrá-rio, outros vêem em Deus o grande obstáculo para viver, desenvolver e desfrutar a vida em toda sua plenitude; pois o Deus que lhes é anunciado é o Deus que manda, proíbe, ameaça e castiga.
Tem-se a impressão que, para viver a vida com todas as suas possibilidades e suas riquezas, é preciso prescindir de Deus.



Na realidade, o que acontece é que, muitas vezes, em Nome de Deus, reprime-se tudo aquilo que na vida significa dinamismos, impulsos, forças... enfim, tudo aquilo que o ser humano mais deseja e necessita: viver com segurança, com dignidade, respeitado em seus di-reitos, acolhido em suas diferenças, com a possibilida-de real e concreta de viver prazerosamente.
Com isso, a religião e a vida entram em conflito, porque a religião complica a vida de muitas pessoas que levam a sério sua experiência de Deus. E a vida, com seus dinamismos, seus direitos e seus instintos mais básicos, é vista com suspeita, como um perigo que impede fazer uma experiência de Deus. 
Daí as conseqüências funestas desta confrontação entre Deus e a vida: a centralidade do sacrifício e da renúncia, a repressão dos instintos da vida, a violência contra os dinamismos afetivos, a agressão ao prazer e à alegria de viver...

No entanto, o Evangelho de hoje deixa muito claro que a mediação entre os seres humanos e Deus é a vida, não a religião. A religião é uma expressão fundamental da vida e deve estar sempre a seu serviço.
Como conseqüência, a religião é aceitável só na medida em que serve para potenciar e dignificar a vida, inclusive o prazer e a alegria de viver. Quando a religião é vivida de maneira a agredir à vida e à dignidade das pessoas, ela se desnaturaliza e se desumaniza, e acaba sendo uma ofensa ao Deus revelado por Jesus.
De fato, para Jesus, o primeiro é a vida e não a religião. Ele colocou a religião onde deve estar: a serviço da vida, para dignificá-la. Ele tomou partido da vida, contra aqueles que, a partir da religião, cometiam todo tipo de agressão contra a vida.
Jesus se deixou conduzir pelo Espírito do Senhor para aliviar o sofrimento humano, levar a Boa Nova aos pobres, devolver a vista aos cegos, dar a liberdade aos presos e oprimidos, dar vida àqueles que tinham a vida massacrada ou diminuída, devolver a dignidade da vida àqueles que eram encurvados pelo peso da opressão e do legalismo.

É bom lembrar que no Evangelho de João o substantivo “vida” aparece 24 vezes; todos os “sinais” (milagres) que ele escolheu se referem à vida, pois são ações de Jesus que dão vida, que devolvem a vida a quem a tem limitada ou perdida.
Ele alegra a vida numa festa de casamento, fazendo com que as pessoas bebessem um excelente vinho (Jo. 2,1-11); devolve a saúde a um jovem que está morrendo (Jo. 4,46-54); cura um pobre paralítico que leva trinta e oito anos sem poder mover-se (Jo. 5,1-9); alimenta milhares de pessoas que, no deserto, não tem o que comer (Jo. 6,1-14); recupera a visão a um cego de nascimento (Jo. 9,1-38); e, mais significativo ainda, devolve a vida a morto em processo de decomposição (Jo. 11,1-46).

Em todas estas situações o que está em jogo é a vida. Não “outra” vida, mas a “vida”.
Para o evangelista João, a “vida” é uma totalidade, que é já a vida presente, a vida atual, mas uma vida que tem tal plenitude que, com toda razão, podemos chamá-la de “vida eterna”, enquanto que é uma vida com tal força e tão sem limites, que nem a morte mesma poderá com ela.
Para fazer-se presente neste mundo, Deus não se pôs a dar-nos doutrina e a ensinar-nos verdades, mas  apresentou-se a nós na vida de um Homem que nasceu pobre, que viveu entre os excluídos e que “morreu de tanto viver”.
Por isso, o sinal decisivo de que alguém crê no Deus de Jesus está na vida que leva; ou seja, está na experiência de viver como viveu Jesus de Nazaré. Isso quer dizer que o sinal de que uma pessoa encontrou o Deus é quando ela se deixa invadir pelo humano e é sensível a toda expressão de vida; ela “aproxima-se da luz” (Jo. 3,20) quando de verdade se relaciona com os outros como Jesus se relacionou, sente o que Jesus sentiu, vive o que Jesus viveu.

A surpresa e a riqueza de cada momento vivido intensamente, já é antecipação do que será a vida plena. Viver a vida neste mundo, em comunhão com todas as expressões de vida, é conhecer a alegria de viver como se fôssemos eternos. Podemos “viver de modo eterno” vivendo as experiências que são eternas: amar, perdoar, ajudar, compreender, aceitar, consolar...
Podemos falar de uma plenitude de vida, que com toda verdade, pode-se chamar “vida eterna”, porque transcende os limites deste mundo. Quem não encontra a Deus “nesta” vida, não o encontrará jamais.
A nos revela que fomos feitos por mãos celestiais, chamados à vida, para a liberdade, para a bondade, para a amplidão dos céus. Confessamos que a vida é de Deus e, como Ele, é eterna.
A espiritualidade que o Evangelho apresenta não é um projeto que centra o sujeito em si mesmo, em sua própria perfeição, ou na aquisição de determinadas virtudes, mas um projeto centrado nos outros, orienta-do aos demais, com a intenção de aliviar o sofrimento alheio. É um projeto centrado na defesa e no respeito à vida, na luta por sua dignidade.
Deste modo, aparece claro que na espiritualidade cristã, funde-se e confunde-se a causa de Deus com a causa da vida; os cristãos encontram a Deus somente na medida em que defendem, respeitam e dignificam a vida.

Texto bíblico: Jo. 3,14-21

Na oração:  “Senhor, saiba eu caminhar sob o impulso da Vida, aceitando crescer graças ao diferente.
                        As cordas da minha vida sejam dedilhadas pelo delicado sopro de vosso Espírito.
Há uma força vital que nos une a todos.
E então dê graças a Deus por tantas vidas, por fazer parte de um mar de vida, que às vezes é tormentoso e outras, pacífico, mas sempre incrivelmente belo”.

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