sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Uma voz que move...



UMA VOZ QUE MOVE...

“Segui-me e eu farei de vós pescadores de homens”(Mt 4,19)

Entre as tentações do deserto e as bem-aventuranças, Mateus apresenta um relato que é como uma síntese  de toda a atividade futura de Jesus, incluindo o chamado dos primeiros discípulos. Como excelente “resumo programático”, marca as linhas diretrizes de todo seu evangelho.
Desde o ponto de vista teológico, é muito importante para Mateus deixar claro que Jesus começa sua atividade longe da Judéia, de Jerusalém, do templo, das autoridades religiosas. Quer desligar a atividade de Jesus de toda possível conexão com a instituição religiosa.
Jesus foi viver e desenvolver sua atividade, pregar sua mensagem numa região distante, habitada por humildes camponeses e pescadores pobres, pessoas que, naquele tempo, eram consideradas uma população sem influência e de má fama. Os “galileus” do tempo de Jesus não gozavam de especial estima (Jo. 7,52); eram considerados ignorantes e impuros com os quais se devia manter distância.

Para evangelizar, ou seja, comunicar uma “boa notícia” à sociedade de seu tempo, Jesus não buscou conquistar para si os notáveis e as classes influentes da sociedade, nem procurou os postos de privilégios, nem o favor dos mais influentes, e nem, muito menos, os que detinham o poder e o dinheiro.
Todos sabemos que as “mudanças profundas e duradouras” na sociedade não vem de cima, mas de baixo, a partir da solidariedade e da identificação de vida com os últimos deste mundo. Há uma esperança alentadora, que vem das periferias e das margens, que se empenham por imprimir um movimento novo à história; nele está a semente na qual Jesus viu a possibilidade de uma vida diferente, nova e mais promissora. E Jesus foi o ponto de partida de uma profunda mudança na história da humanidade.
Por isso, Galiléia foi a primeira decisão importante que Jesus tomou no início de sua vida pública.
“Deixou Nazaré e foi morar em Cafarnaum, que fica às margens do mar da Galiléia”.Uma decisão que foi essencial em sua vida, porque Jesus permaneceu na Galiléia até pouco antes de morrer.
Galiléia é o lugar do compromisso pela vida, o lugar dos excluídos e desprezados, o lugar dos discípulos, o lugar no qual Jesus realizou os gestos libertadores contra tudo aquilo que atenta contra a vida.
Ele percorreu vilas e cidades despertando a vida e fazendo renascer a esperança nas pessoas.

“Galiléia” é também o lugar do chamado ao seu seguimento.
A primeira intervenção de Jesus, o evangelho de hoje,não tem nada de espetacular. Não realiza um milagre prodigioso; simplesmente, caminha junto ao mar, chama alguns pescadores que se deixam impactar por um convite ousado: “Segui-me”. Assim começa o movimento dos seguidores de Jesus e o germe humilde daquilo que um dia será sua comunidade. Aqui, pela primeira vez, se manifesta a relação que há de se manter sempre viva entre Jesus e aqueles que deixam ressoar em seu coração o mesmo convite.
Fica claro, então,que a fé cristã não é apenas uma adesão doutrinal ou uma prática piedosa, mas conduta de vida marcada por nossa vinculação a Jesus. Crer em Jesus é viver seu estilo de vida, assumir suas opções, deixar-nos conduzir pelo seu Espírito para nos fazer presentes, de maneira criativa, junto às Galiléias excluídas do mundo de hoje.

Mateus destaca o elemento de irradiação e sedução de Jesus.Tudo começou às margens do mar da Gali-léia... um encontro.Ele vai em busca de pessoas,  chama-as pelo nome; sua presença  e  sua voz  arranca-as do seu ambiente,  da sua rotina... e lança-as para novos desafios. Jesus entra no cotidiano de 4 homens, no meio daqueles movimentos difíceis e repetitivos, próprios de pescadores. Não estamos no templo, nem num dia sagrado, mas junto do mar, depois da fadiga de um dia de trabalho.
Jesus caminha e, ao passar ao longo do mar, entra no espaço vital daqueles homens, que estavam retornando da pesca. Exatamente ali, naquela vida tão normal, acontece algo novo.
Partindo do lugar e das coisas que representam as esperanças, as dificuldades, as decepções, os sucessos, as derrotas daqueles homens pescadores, Jesus lança a sua promessa:
“Segui-me e farei de vós pescadores de homens”.

Este chamado deve ser lido não no sentido proselitista, ou seja, convencer pessoas a fazer parte de um determinado grupo religioso. Trata-se de“pescar” o que há de mais humano e nobre em cada pessoa, ajudar as pessoas a viverem com sentido, tirando-as do mar da desumanização;“pescar homens” é extrair o melhor e mais original versão humana de cada pessoa, garimpar a autêntica qualidade humana misturada nesse cascalho de inumanidade que todos carregamos dentro.
E Jesus tem a capacidade de extrair o maior bem possível de cada um, de ativar as melhores possibilidades de vida latentes no seu interior, sem necessidade de dar-lhe lições ou arrastá-lo com argumentos racionais.
Logo que ouviram a Sua voz, aqueles pescadores se dão conta d’Aquele que estava passando: eles já tinham sido vistos, conhecidos, amados, escolhidos por Ele.
“Eles deixaram as redes e o seguiram”: seguir Jesus não é só assumir o estilo de vida d’Ele; é também uma libertação. Na realidade, o que eles deixam não não só redes, mas tudo aquilo que aprisiona, enreda e que impede a vida ter uma dimensão maior.

Aquela voz abre os olhos, a mente e o coração daqueles pescadores do lago. Sentem-se chamados pelo nome e conseguem compreender melhor a si mesmos, confrontam-se com Aquele que os chama e redescobrem um sentido novo, um significado inimaginável para a própria existência.
Finalmente, não se sentem mais sozinhos.
O olhar e a voz de Jesus atrai aqueles pescadores à verdade da própria vida: eles descobrem a luz e compreendem para onde devem ir.Jesus os chama do mar, os faz descer da barca e os convida a segui-Lo, para mergulhá-los no Seu mar, para fazê-los subir noutra barca, para atraí-los a uma vida diferente.
O seguimento só se realiza quando alguém se deixa conduzir para águas profundas num novo mar.
A vida de Jesus se torna norma, uma maneira de proceder, um estilo próprio de ser e de viver...
O fundamental é o “estar com Ele”, conviver com Ele, participar de sua Vida, compartilhar do mesmo sonho: a realização do Reino.
Jesus está inteiramente polarizado por esse sonho, por essa utopia esperançada capaz de despertar e mover outras pessoas a participarem do mesmo movimento; toda Sua pessoa foi capaz de despertar nos outros o melhor de si mesmos e de mobilizá-los frente a um novo projeto de humanização.

Os quatro homens são atraídos pela voz, mais do que pelas palavras ou pela promessa do Desconhecido que passa, vê, chama, conhece também o nome de seus pais, e sabe bem quantas e quais são as barcas e as redes que lhes davam segurança. O objetivo da promessa não se refere somente a algo que haverá de acontecer, mas a Alguém que já está presente. A promessa que os atrai é, justamente, Aquele desconhecido, que, das margens, os chama pelo nome.
Depois de tê-los despojado de suas seguranças e levado a intuir que a vida não é questão de certezas, mas de busca e de desejos, Jesus chama aqueles pescadores para ficarem com Ele e entre eles, fazendo comunidade.
Aquele Desconhecido se aproxima, ainda hoje, do nosso mar da Galiléia, que representa os lugares, os afetos, os segredos, os costumes da nossa vida cotidiana... nos faz a proposta para entrar em outro mar.
Seguir o Desconhecido do lago significa alargar a vida num novo horizonte de sentido; esta proposta é para corajosos e ousados.
Que impacto isso tem em minha vida?



Texto bíblico:  Mt 4,12-23

Na oração:No fundo do seu coração cheio de velhas barcas, redes inúteis, mar
estreito... é aí que o Senhor passa... e com sua voz provocante o acorda para uma ousadia maior. Compete a você dar-lhe acolhida e entrar na dinâmica do Reino. “Convertei-vos, porque o Reino dos céus está próximo”.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Tempo do Espírito



Tempo do Espírito, espírito do tempo

“Aquele sobre quem vires o Espírito descer e permanecer, este é quem batiza com o Espírito Santo”

Neste início do chamado “Tempo Comum”, após a celebração do batismo de Jesus, a liturgia continua nos pedindo e nos propondo que “façamos memória”, mais uma vez, daquele evento tão significativo; desta vez, é-nos oferecida uma passagem tomada do evangelista João. Neste, não se narra o acontecimento do batismo em si, mas ele vai diretamente ao núcleo e nos fala do Espírito, que é o verdadeiramente impor-tante em todos os relatos do batismo de Jesus.
A humanidade de Jesus está inundada do Espírito; é a humanidade do Filho de Deus possuída pelo Espírito, guiada pelo Espírito. Jesus é, por excelência, o homem nascido do Espírito e se deixa conduzir pelo Espírito do Pai, vivendo intensamente o seu tempo presente. “Tempo carregado” da presença do Espírito; por isso, tempo criativo, inspirador...
Com Jesus chega um “novo tempo”,um tempo decisivo para a história da humanidade.
É Deus quem irrompe de maneira definitiva na temporalidade. A partir desse momento, a história fica dividida em dois tempos: o anterior e o posterior a Jesus.
Desta maneira, o Senhor do tempo faz de Jesus o centro e o ponto de referência do tempo dos homens. Todos os acontecimentos do mundo, tanto passados como futuros, encontrarão seu lugar e sentido a partir do “tempo central”, que é o tempo de Jesus.
Por isso, aos seus olhos, as realidades da vida cotidiana se tornam transparências. Jesus as olha com olhos contemplativos; todas lhe falam do Reino de Deus e do Deus do Reino que está a caminho.

O Espírito é o que habita o tempo, e nos habita. Estamos no tempo do Espírito que nos faz perceber o “espírito do tempo”; só assim viveremos o tempo de maneira criativa e ousada, como Jesus.
Não é raro encontrar-nos numa situação na qual vivemos o tempo como um túnel, contínuo, repetitivo... Tempo que absorve, desgasta, esgota... e nos faz entrar numa frenética corrida por rentabilizar ao máximo os minutos e as horas. O tempo torna-se cada vez mais veloz, fugaz, estressante...
Diante desse tempo não há futuro auspicioso, nem esperança que se sustenta. Nesse “tempo apertado” o Espírito não consegue entrar e a nossa maneira de viver fica desabitada e estéril.

Para Jesus, o tempo deve ser recebido em graça e se converte na missão que dá sentido à sua vida neste mundo. Jesus aceita de seu Pai o “dom do tempo” e o encarna na história humana de maneiraoriginal e única. Vivendo “no tempo” Jesus descobre uma presença que completa seu ser, que plenifica sua existência e o inspira a ser presença inspiradora junto àqueles que vivem o tempo como fardo pesado.
Com os olhos fixos na “Hora do Pai”, Jesus mostra com sua mobilidade que, participando no tempohu-mano, não se deixa prender pelas ataduras da preocupação, da ansiedade, da pressa...; Ele busca viver com alegria e prazer cada momento como um dom inesperado.
O Filho do Homem vive na espera paciente de seu momento. Sua sabedoria consiste em saber aguardar que o tempo chegue à sua colheita, sem cair na tentação de forçar sua maturação.

A tirania da agenda, a pressa descontrolada, o ritmo frenético, a antecipação dos acontecimentos, a impaci-ência diante do desejado, a falta de respeito pelo tempo interior das pessoas,... são atitudes que caracteri-zam o ser humano pós-moderno, mas que estão ausentes na pessoa de Jesus.
O Espírito está no coração do tempo; Ele está ali como força explosiva que dá à nossa vida nova dimensão e uma densidade de sentido à nossa existência. De agora em diante, cada um de nossos momentos está cheio de Sua presença, transformando o “kronos” em “kairós”; de agora em diante nada em nossas vidas é insignificante, nem rotineiro. A ação mais simples é transfigurada e assume uma dimensão divina. Nada é banal, nada é comum para alguém que se deixa conduzir pelo Espírito.
É nesse nível do tempo inspirador onde respiram nossos desejos, onde nossa esperança bebe, onde nossos sonhos criam raízes... É nele que podemos moldar a arte de viver.

Nossa biografia humana se estende e se distende no tempo cotidiano. Sob o impulso do Espírito quere-mos viver este tempo de forma extraordinária: queremos enchê-lo de sonhos, de aspirações, de criativi-dade. Queremos viver o tempo intensamente, vivificá-lo, cuidá-lo e artisticamente orientá-lo para aquilo que desejamos. Queremos viver de uma maneira original como tempo de sentido único, como tempo irreversível. Este “tempo presente” é oportuno, precioso e não volta mais. Não há um “segundo tempo”.“A vida não dá duas safras”.
O grande programa da vida é precisamente aprender a viver, acolhendo a novidade e a surpresa de cada tempo. Como o sedento busca a fonte, como o peregrino busca a meta, como o náufrago a orientação do farol, o ser humano vive no rio do tempo; está sempre a caminho; é sentinela do futuro.

O Espírito é “atmosfera de Deus”,“herança de Jesus” e “ambiente de realização do ser humano”; n’Ele a vida adquire profundidade, consistência; n’Ele o tempo é vivido sem sobressaltos e sem pressas.
Carregamos dentro de nós o melhor da vida. Somos uma história sagrada. Exercitar o olhar contemplativo buscando “ler” a vida pessoal e comunitária com o olhar mesmo de Deus.



Deixar o Espírito “pousar sobre nós” é dispor-nos a algo grande. A missão que Ele nos anima a viver é alucinante, imenso, fora do nosso tempo rotineiro. É Ele que nos faz mais lúcidos, mais sensíveis, muito mais corajosos para descobrir a profundidade e a riqueza de tudo o que acontece ao nosso redor e dentro de nós. Somos feitos disso: desejo, busca, esperança... No mais profundo de cada um há uma carência que nos faz clamar:“Vinde Espírito Santo!”

Texto bíblico:Jo 1,29-34

Na oração: Enquanto seguidores de Jesus, não somos homens e mu-
lheres escravos da regularidade, dos costumes, dos horá-rios e das normas; somos pessoas “tocadas pelo Espírito”, inspiradas por Ele. Fazer “experiência do Espírito” é abrir-se à novidade, criativi-dade, mobilidade...
- Quem prevalece mais em minha vida: o costume, as normas, as expectativas dos outros... ou a inspiração do Espírito?
- Diante das mudanças sociais, eclesiais e pastorais... vejo-me na defensiva? Sou capaz de olhar com simpatia e empatia a sociedade que me cerca e ver nela os sinais do Reino?

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Batismo



BATISMO: deixar-se conduzir pelo Espírito

“O céu se abriu e Jesus viu o Espírito de Deus descendo como pomba...”(Mt 3,16)

Começamos o Tempo Comum do ano Litúrgico, seguindo o evangelista Mateus (Ano A). Ao longo de todo o ano vamos tendo acesso aos mais importantes acontecimentos da vida pública de Jesus. E o primeiro fato importante desse caminho é seu batismo no Jordão por João Batista.
Sem dúvida foi um momento decisivo para Jesus:sua vida se alarga e, tomado pelo Espírito, parte para sua missão de evangelizador dos pobres e libertador do mundo. O batismo de Jesus foi também muito importante para os primeiros cristãos que tentavam compreender sua vida e milagres; o batismo deixa claro que o motor de toda a trajetória humana de Jesus foi obra do Espírito.
Jesus “desce ao Jordão”; esse deslocamento revela, mais uma vez, o realismo da Encarnação: Jesus “desce” e afunda os pés na humanidade ferida. Com o seu batismo Jesus “entra na fila dos pecadores” e faz uma experiência única: os céus se abrem e Ele vê claro o que Deus espera dele. Fiel ao Espírito, faz uma mudança radical em sua vida e se dispõe a pregar o Reino de Deus. A partir deste momento, abandona sua vida em Nazaré e dedica todo seu tempo ao anúncio e realização da Boa Nova. Começa sua vida pública.

Os evangelhos fazem constante referência ao Espírito para explicar quem é Jesus:“Concebido pelo Espírito Santo”; “Nascido do Espírito Santo”; “Desce sobre ele o Espírito Santo”; “Ungido com a força do Espírito”; “Eu batizo com água, Ele vos batizará com Espírito Santo e fogo”; “O Espírito é o que dá a vida”; “O que nasce da carne é carne, o que nasce do Espírito é Espírito”.
A alusão aos céus que se abrem definitivamente, é a expressão de uma esperança de todo o AT. A distância entre Deus e o ser humano fica superada para sempre. Os céus estavam “fechados”. Uma espécie de muro invisível parecia impedir a comunicação de Deus com seu povo. Ninguém era capaz de escutar sua voz. Já não havia profetas. Ninguém falava impulsionado por seu Espírito.
Finalmente, em Jesus, o encontro com Deus tornou-se possível. Sobre a terra caminhava um homem cheio do Espírito de Deus.Esse Espírito que desce sobre Ele é o Sopro de Deus que cria a vida, a força que renova e cura os viventes, o amor que transforma tudo. Por isso Jesus se dedica a destravar a vida, a curá-la e fazê-la mais humana.
Jesus não é um sacerdote do Templo, consagrado para cuidar e promover uma religião. Do mesmo modo, ninguém o confunde com um mestre da Lei dedicado a defender um legalismo estéril. Os camponeses e pobres da Galileia veem em seus gestos e em suas palavras de fogo a atuação de um homem movido pelo espírito profético: “Um profeta grande surgiu entre nós”. Jesus, como os profetas de Israel, não faz parte da estrutura política nem do sistema religioso. Não é nomeado por nenhum poder. Sua autoridade não vem da instituição, não se fundamenta nas tradições religiosas. Provém de sua experiência de Deus, empenhado em guiar seus filhos e filhas pelos caminhos da justiça.

Segundo a mentalidade bíblica, este Espírito faz Jesus viver a partir do alento vital de Deus, cheio de seu amor e de sua força criadora, movido a libertar, transformar e potenciar a vida.
É este mesmo Espírito que há de alentar aqueles que seguem os passos de Jesus.
Deixando-se conduzir pelo Espírito, Jesus se encaminha para a plenitude humana e, dessa maneira, nos marca o caminho de nossa própria plenitude. Mas temos que ser muito conscientes de que só nascendo de novo, nascendo da água e do Espírito, poderemos desatar todas as nossas ricas possibilidades humanas. Não seguindo a Jesus a partir de fora, como se se tratasse apenas de um líder, mas entrando, como Ele, na dinâmica de vivência interior, movido pelo Espírito.

“Descer” com Jesus ao Jordão para sermos batizados é “descer” em direção à nossa própria humanidade e ser solidário com a humanidade de todos. Ao fazer, junto com Jesus Cristo, o caminho da “descida”, o ser humano vai ao encontro de sua realidade e coloca-se diante de Deus para que Ele transforme em amor tudo quanto existe nele, para que ele seja totalmente perpassado pelo Espírito de Deus.
O “subir”  até Deus passa pelo “descer”  até às profundezas da própria realidade pessoal.
Toda pessoa possui dentro de si uma profundidade que é seu mistério íntimo e pessoal.
“Viver em profundidade” significa “entrar” no âmago da própria vida, “descer” até às fontes do próprio ser, até às raízes mais profundas; é “descendo”ao Jordão interior que poderemos revitalizar a vida que se tornara vazia e ressequida.
Quem “desce” até sua própria realidade, até os abismos do inconsciente, até a escuridão de suas sombras, até a impotência de seus próprios sonhos, quem mergulha em sua condição humana e terrena e se reconcilia com ela, este sim, está subindo para Deus, faz a experiência do encontro com o Deus verdadeiro e escuta a mesma voz que Jesus escutou: “Este é o meu(minha) filho(a) amado(a), no qual eu pus a minha afeição”.

É no “eu mais profundo”  que as forças vitais se acham disponíveis para ajudar a pessoa a crescer dia-a-dia, tornando-a aquilo para o qual foi chamada a ser.
O ser humano é torrente de riquezas, é expressão de vida, êxtase, paixão, criatividade, impulso vital... Aberto à criatividade do Espírito ele é capaz de alçar longos voos, de extrair ousadia de seu medo, de romper seus estreitos lugares...
Aquele que se deixa conduzir pelo Espírito faz-se “peregrino” do Absoluto.O ser humano é itinerante por essência; ele “abre suas asas” quando matura suas potencialidades, multiplica suas capacidades, extrai riqueza e criatividade das profundezas de seu ser...No seu Batismo ele realiza a grande Passagem, deixando seu estreito território e enveredando pela terra que “mana leite e mel”.
Deixa o território da apatia e da neutralidade para o território da opção e do compromisso; deixa o território da mentalidade conservadora e atua no território da mentalidade inovadora; deixa o território que mantém aliança com a morte e caminha para o território que faz germinar múltiplas formas de vida; saído território da rotina e da repetição e ativa o território que gera o diferente e o alternativo. Desloca-se do território da injustiça, violência e exclusão... para o  território da justiça, da solidariedade, compaixão...
Somos batizados para que o Espírito de Jesus possa ser nosso guia e nossa força nos dias de dúvida e de incerteza. Somos batizamos para que sejamos uma luz de esperança na noite angustiosa do mundo. Somos batizados para que sejamos uma gota de água no caminho da vida. Somos batizados para que possamos compartilhar com os outros a alegria e o amor que todos necessitamos. Somos batizados para que vivamos a esplêndida aventura de sentir-nos filhos de um Pai que nos ama desde sempre e para sempre.






Texto bíblico:Mt 3,13-17

Na oração:Para realizar-nos e desenvolver toda a nossa potencialidade, busquemos, na oração, cavar mais
profundamente, até atingir as raízes de nosso ser, o núcleo original de nossa personalidade. É no mais íntimo de nós que o Espírito clama. É no mais profundo de nossa interioridade que sentimos o Sopro que nos faz criativos. Deixemo-nos invadir pela luz e pela vida d’Aquele que “do caos cria o cosmos interior”.
- Rezar o compromisso batismal, na Igreja e no mundo.

domingo, 5 de janeiro de 2014

Caminho dos magos.

CAMINHO DOS MAGOS: paradigma do discernimento

“E a estrela ia adiante deles, até parar sobre o lugar onde estava o menino” (Mt 2,9)

A festa da Epifania nos revela que diante de Jesus pode-se adotar atitudes muito diferentes. O relato dos magos nos fala da reação de três grupos de pessoas: alguns pagãos que buscam, guiados pela pequena luz de uma estrela; os representantes da religião do Templo, que permanecem fechados em suas tradições e não são capazes de perceber o “novo” que surge; o rei Herodes que, marcado pelo medo de perder seu poder, só vê perigo e ameaça na singeleza de uma criança.

Contemplemos o relato da Epifania e procuremos perceber, por trás do texto, três possíveis ícones de nossa interioridade: Herodes, os guardiões da religião e os Magos.
Todos atuam convencidos de fazer o melhor e de serem até justos. No entanto, somente os Magos tem a autêntica liberdade para ver algo mais além de si mesmos e para abrir-se à Boa Notícia.
Os magos não pertencem ao povo eleito; não conhecem o Deus vivo de Israel. Mas vivem numa atitude de atenção e leitura do “mistério” que se revela no cosmos. Seu coração busca a verdade.
Descobrem uma pequena luz que aponta para um Salvador. Rapidamente se põem a caminho. Não conhecem o itinerário preciso que hão de seguir, mas em seu interior arde a esperança de encontrar uma Luz para o mundo. Neste sentido, eles são o paradigma da atitude de discernimento.

Os outros dois ícones – Herodes e os guardiões da religião – nos sugerem as resistências que nos conta-minam e que a busca de poder e prestígio não nos deixam espaço para o encontro com o outro, nem para escutar o que vem de fora.
A impressão que se tem é que a afetividade de Herodes está dominada pelo medo a tudo o que ameace seu pequeno protagonismo, seu minúsculo poder, a pequena cota de prestígio com a qual sustenta sua frágil auto-estima...; e essas ameaças devem ser eliminadas o quanto antes.
Por outra parte, parece que toda a inteligência e a longa formação dos sacerdotes e dos mestres da lei lhes permite quase tocar a verdade, mas, petrificados em seu próprio saber, não vêem os sinais que os magos percebem; obscurecidos pelo cinismo, perderam a capacidade necessária para abrir-se ao mistério e à novidade que ultrapassa suas sutis racionalizações.
São os guardiões da religião, mas não buscam a verdade. Representam o Deus do Templo, mas vivem surdos ao seu chamado.Sua segurança religiosa os cega. Conhecem onde há de nascer o Messias, mas nenhum deles se desloca até Belém. Dedicam-se a prestar cultos a Deus e não suspeitam que seu mistério é maior que todas as religiões e que revela sua face nas periferias da vida. Por isso, nunca reconhecerão Jesus.

Os magos, por sua vez,prosseguem sua busca. Não caem de joelhos diante de Herodes, não entram no Templo grandioso de Jerusalém, pois o acesso lhes é proibido. A pequena luz da estrela os atrai para o minúsculo povoado de Belém, longe do centro do poder. Alí se “esbarram” com algo desconcertante: um menino sem poder e glórias, uma vida frágil que precisa dos cuidados de uma mãe. Mas isso é suficiente para despertar neles a adoração.Os Magos visitam e se vão; retomam a itinerância na fidelidade a uma estrela; isto significa novamente fazer a experiência da busca, da esperança...
Toda viagem que culmina na manjedoura, é ponto de partida para novos caminhos.
Os Magos do Oriente são o símbolo de tantos homens e mulheres que em qualquer parte do mundo, a partir de outras sendas e tradições espirituais, se perguntam, buscam e caminham.
Uma lenda os apresenta como um rei jovem, outro ancião e outro negro, querendo significar que a humanidade toda é mobilizada a “fazer-se caminho”.

Na experiência da vida cristã buscamos ser como os magos: desejosos de encontrar a Vontade de Deus, atentos para reconhecer “estrelas” na noite e ágeis para segui-las, capazes de pedir ajuda quando nos per-demos e apaixonados por descobrir um caminho que, no fundo, é o caminho do mesmo Deus.
Nesse processo, os Magos escutam outras palavras e sinais, aprendem a filtrar aquilo que “ajuda para o fim” e a não seguir qualquer conselho.Herodes e os escribas estão presentes e ameaçam reaparecer antes, durante e depois do encontro dos Magos com o menino.
A Graça também nos precede e nos acompanha sempre e liber a nossa afetividade e nossa inteligência para abrir-nos ao novo, a abertura que permite reconhecer o “mistério” e adorá-lo.
Como os Magos, também nós nos dirigimos primeiramente aos palácios de nossa sociedade do bem-estar e aos “Herodes” contemporâneos, até que nos damos conta de que ali não encontramos o que estamos buscando, que ali se anula e se anestesia a vida, essa vida de Deus que quer crescer em nós.
O ícone bíblico do relato dos Magos ilustra o risco do fechamento em si e de enredar-se nas armadilhas da própria afetividade ou da própria inteligência. Isso se manifesta como rigidez para a mudança, a intensa necessidade de manter a própria imagem, a resistência em aceitar coisas novas que rompam nosso frágil equilíbrio ou os sérios limites da vontade...
A experiência da Epifania supõe uma capacidade de encontro e de escuta de Alguém que chama, uma atenção especial para distinguir vozes diferentes da própria voz, uma sensibilidade para escutar os gritos de nosso mundo e para receber a palavra da comunidade cristã.
O Deus, escondido na fragilidade humana, não o encontramos naqueles que vivem encastelados em seu poder ou fechados em sua segurança religiosa. Ele se revela àqueles que, guiados por pequenas luzes, buscam incansavelmente uma esperança para o ser humano na ternura e na pobreza da vida.

A viagem dos Magos se torna, assim, o símbolo da vida cristã, entendida como seguimento, como discipulado, como busca.
A viagem exige desapego, coragem, movimento, esperança. Quem está preso à terra pelo peso das coisas,pelos apegos, pelos egoísmos, não é capaz de se tornar peregrino. Não pode peregrinar aquele que não se dispõe sinceramente a ultrapassar as fronteiras e os esquemas pré-concebidos que muitas vezes lhe fecham e lhe dão segurança. Isto não o deixa livre para encontrar a Vontade de Deus.
Quem está convencido de possuir tudo, inclusive o monopólio da verdade, não tem a gana da busca contínua; é semelhante aos sacerdotes de Jerusalém, frios exegetas de uma Palavra que não os atrai nem converte. Quem está bem instalado na cidade não precisa de Belém; ao contrário, Belém lhe parece um insignificante vilarejo de província.
Quando aprendemos a aceitar e amar a nossa própria viagem, novamente a estrela surge à nossa frente, indicando o sentido de nossa existência e mantendo acesa a chama da busca inspiradora.

Texto bíblicoMt 2,1-12

Na oração: Discernir é rastrear o coração e deixar-se surpreen-
der pelos “sopros-inspirações-luzes” do Espírito no
ritmo da vida cotidiana e em meio à realidade que nos cerca.
A experiência do discernimento implicacolocar-se a caminho, seguindo as “pegadas” dos Magos, fazendo opções e usando desvios, lançando-se pessoalmente a ações concretas...
- O quê você está buscando na vida? Onde busca?...