quarta-feira, 16 de março de 2011



Os retalhos de Dona Conceição

Viajo pelo interior de Minas, sem pressa, apreciando as paisagens geográficas e humanas, meio sem destino, como gosto de fazer, passo diante de uma casinha, dessas de beira de estrada.
Chama-me a atenção, bem à frente da casa, uma bela colcha de retalhos estendida num varal de bambus. Paro o carro, desço e me aproximo. Só então percebo que a colcha é usada, até meio desbotada, mas seu colorido ainda enche de alegria a paisagem árida daquele cantinho esquecido do norte da minha Minas Gerais.
Bato palmas e numa das janelinhas de moldura azul destacando-se na parede branca, surge o rosto crestado de sol de uma senhora de idade indefinida.

              Lenço na cabeça, um sorriso simpático, olhinhos vivos e mineiramente desconfiados, ela me cumprimenta com um aceno.
- Esta colcha está à venda? Pergunto.
- Não, seu moço, é coisa antiga, não vê? Lavei e pus pra secar. Se bem que tô mesmo precisando de um dinheirinho...Mas se chegue, entre, venha tomar um cafezinho...
Em mim falou o cidadão urbano e dei uma olhada no relógio. Que mania essa de conferir as horas, mesmo quando não tenho nenhum compromisso urgente!
Mais urbano ainda acionei o controle remoto no chaveiro e, com um apito agudo, o carro travou portas, subiu os vidros e ativou o alarme.  A senhora franziu a testa, surpresa com aquela novidade que contrastava com suas portas e janelas fechadas à tramelas. Percebi no seu olhar o estranhamento e senti um certo constrangimento em exibir aquela parafernália eletrônica de segurança, ali, em meio ao quase nada.
Mas a senhorinha abriu a porta, o sorriso ainda mais aberto numa boca de poucos dentes.
- Bem vindo seja, a casa é sua.
- Licença
- À vontade, senta aí, seu moço, ela disse, tirando uma sacola de panos de cima de um sofá surrado num canto da sala pequena.
Sentei-me e corri os olhos pelo cômodo. Tudo muito simples, limpo e arrumado. Diante de mim uma estante onde uma TV ocupava o espaço central. Não contive um sorriso ao ver o chumaço de bombril na ponta da antena. Outro mundo, pensei...
Ao lado, um vaso com absurdas flores de plástico. No alto da parede, quase no teto, lado a lado, quadros antigos, com aquelas imagens de família, meio pinturas, meio fotografias. Junto, um pôster de Leandro e Leonardo, uma foto do Papa João Paulo II e uma gravura coloridíssima do Coração de Jesus.
A senhorinha, que tinha saído um instante, veio da cozinha com um generoso e fumegante copo de café com leite, acompanhado por uma fatia de broa de fubá molhadinha e que, adivinhei, tinha gosto de infância.
-          Obrigado. Hum, tá uma delícia...! O nome da senhora?
-          Maria da Conceição, mas aqui todo mundo me chama de Ção.
-          O meu é Eduardo. Mas e a colcha, se a senhora fosse vender, quanto custaria?
-          Ah, seu moço, primeiro deixa eu lhe contar a história dessa colcha...
E Dona Conceição levantou-se e foi tirar a peça do varal.
Olhei de novo o relógio, meio impaciente, mas me consolei com mais uma mordida na broa. Estava mesmo uma delícia.
Ela voltou com a colcha dobrada nas mãos e a estendeu sobre o sofá, ao meu lado.
Por uma fração de segundo, não registrada pelo meu relógio digital, mas na minha percepção afetiva, houve um momento de silêncio entre nós, enquanto ela corria as mãos, suavemente, sobre o tecido. Os dedos calosos pararam sobre um quadrado vermelho, numa das pontas da colcha.
- Esse retalho aqui foi sobra do vestido que usei no casamento do meu último filho. Ele mudou pra São Paulo e nunca mais o vi. Já vai pra mais de dez anos...
E as mãos de Dona Conceição acariciaram o pano como se fosse o rosto do filho ausente. Naquele instante de silêncio mágico aquele quadradinho vermelho transbordou saudades...
Com os olhinhos miúdos brilhando, ela continuou o desfile de retalhos e histórias.  Esse pedacinho xadrez aqui era de uma toalha da mesa onde eu tomava café com a família toda reunida, bem cedinho, antes do meu falecido Antônio e os meninos saírem para a lida na roça. Faz tempo...
E os olhos marejados de Dona Conceição se fixaram nas fotografias da parede.
Ela continuou falando, acariciando cada pedacinho colorido de pano, deixando vir à tona seu estoque de personagens, acontecimentos, memórias e histórias.
Esqueci definitivamente o relógio e me deixei ficar ali, saboreando palavras que também tinham gosto de infância, me deixando tocar, envolver e agasalhar por aquela colcha que era, na verdade, um resumo de anos e anos de vivências e experiências intensamente, profundamente humanas.
Dona Conceição desfilou mãos e palavras pelos quadrados quase todos, esquecida também do tempo, agradecida, talvez, por esse viajante imprevisto e improvável (viajantes, em geral costumam ter tanta pressa...) que teve, justamente, tempo para sentar-se ali e ouvi-la, acolhê-la, tal como foi acolhido: carinhosamente.
De repente, no último retalho de história, Dona Conceição se recompôs, como se estivesse voltando pra casa depois de uma longa viagem, e disse:
- Mas o senhor perguntou pelo preço da colcha... Nem sei... quanto o senhor acha que vale...?
Em meus trinta e cinco anos como professor, nunca, nenhum aluno havia feito uma pergunta tão difícil de responder...
- Dona Conceição, a senhora me desculpe, mas não vou comprar a colcha, não. Na verdade quero lhe pedir um favor. Eu quero comprar é a receita da broa de fubá.
- Como assim, seu moço, comprar receita de broa? Coisa mais jeito. Tem receita não, é pegar e fazer...
- Mas eu quero é a receita, sim, a senhora dita e eu escrevo. E faço questão mesmo de pagar, pois é uma obra de arte.
- O que é isso, seu moço, onde já se viu, eu ensino, mas não cobro não. É pelo gosto de saber que o senhor apreciou esse quitute que vem desde a minha mil avó...
Um poema de Adélia Prado cruzou a tela da minha memória...
- Dona Conceição, pode acreditar em mim, a receita dessa broa, eu sei, não tem preço. Tem é o sabor da minha infância, de casa de vó, de fogão de lenha e parede enfumaçada. Tem o calorzinho das brasas que, até hoje, aquecem minhas saudades.
- Eita, que agora o moço falou bonito como quê. Mas e a colcha, não vou vender?
- A senhora é quem sabe, mas eu gostaria que ficasse com ela.
- Intão tá. Anote aí a receita da broa e o modo de fazer. Quatro ovos, mas tem que ser caipira, um punhadinho de fubá de moinho d’água...
O Tempo, que passava apressado pela estrada, parou, chegou à janela, espiou dentro da casa e nos contemplou, cheio de inveja. Sobre meus joelhos a colcha dobrada, a modo de apoio. Num bloco, eu anotava, sem pressa, os ingredientes tão raros quanto o momento.
Os olhos de Dona Conceição brilhavam. Os meus, admiravam.
Na verdade, o que brilhava ali era a vida, admirada, tecida e colorida em cada pedacinho de pano, em cada palavra, gesto, lembrança e memória que partilhamos e saboreamos, com gosto de infância, saudade, broa de fubá e café-com-leite clarinho, adoçado com açúcar mascavo e carinho...


Eduardo Machado
03 de julho de 2008
BLOG  : http://eduardomachadobh.blogspot.com

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