segunda-feira, 27 de junho de 2011

HOSPITALIDADE HUMANIZADORA



“Deus não perguntará a dimensão de vossas casas, mas quantas pessoas acolheis nelas”



O contexto social pós-moderno nos coloca numa situação inusitada: milhões de pessoas “hospedam-se” em nossas casas virtualmente, mas ninguém fisicamente. Podemos encontrar algumas características próprias de nosso tempo que complicam de modo peculiar a vivência da hospitalidade; daí as dificuldades que o ser humano atual tem para abrir-se e escutar uma voz diferente da própria, bem como uma disfarçada resistência para acolher a grandeza do mistério do outro que vem ao seu encontro.Há um medo generalizado do outro, do diferente... e as casas se tornaram verdadeiras fortalezas, cercadas de parafernália eletrônica de segurança.

No entanto, a virtude da hospitalidade é um modo de proceder característico do seguidor de Jesus: “quem acolhe a um destes pequeninos é a mim que acolhe”; implica a capacidade de abertura e acolhida daquele que vem de “fora”, o estranho.

A hospitalidade é uma das múltiplas manifestações da capacidade de amar. O amor verdadeiro se exprime, sobretudo, através de uma relação em que o outro é acolhido como próximo.

A melhor metáfora da hospitalidade é a imagem da mãe que “faz espaço dentro de si para acolher o outro” e assim multiplica a vida.



A hospitalidade se apresenta como um valor humano e espiritualmente vital, conectado, ao mesmo tempo, com a vulnerabilidade do ser humano que sempre requer ser acolhido e aceito, que sempre precisa encontrar  espaços humanizadores de convivência e comunhão.

Essa relação de hospitalidade supõe abrir-se de verdade à realidade do outro, sem reduzi-lo às nossas projeções nem submetê-lo às nossas categorias mentais, sem anular seu mistério e contando com o imprevisível, com o inesperável, com o radicalmente novo; em definitiva, com o que supera o plano das  nossas expectativas.

Quem acolhe um hóspede parece estar dando algo, mas, na realidade está recebendo. Se a hospitalidade é “receber” uma pessoa, o hóspede é um dom para nós.

Receber as pessoas com atenção, escutá-la, pode ser uma ocasião para receber a única coisa verdadeira-mente necessária. A hospitalidade implica uma integração entre escuta e serviço.

Por isso os pobres são especialistas em hospitalidade e acolhida.



Como homem e como mulher trazemos esta força interior que nos faz “sair de nós mesmos” e criar   laços, construir fraternidade, acolher o diferente, fortalecer a comunhão. O olhar do outro é o fato originante da fraternidade.

O ser humano está comprometido com os outros; por sua própria natureza, ele se torna pessoa humana somente em interação com os outros; ele possui impulsos naturais que o levam em direção ao convívio, à cooperação, à comunhão...; ele é reserva de humanidade e compromete-se com a dignidade humana.

Estamos sempre em contato com o “outro”. E o outro é pessoa. O outro revela certa magia, ao mesmo tempo sedutor e enigmático. O outro é plural, apresenta múltiplos rostos; é diferente, inédito...

Num mundo em que a competência se degenera em competitividade sem limites, e em que o individua-lismo e a falta de solidariedade criam novas fronteiras e exclusões, é preciso recuperar o discurso e a prática do “ser-para-os-outros”, o saber e o agir como serviço, a solidariedade, a compaixão, a partilha, o perdão, a gratuidade, a hospitalidade, o dom de si mesmo, o amor...



A experiência de viver permanentemente sob o olhar compassivo de Deus nos permite descobrir que “o ser-com” e “o ser-para”  é a autêntica condição humana que se desloca em direção ao outro, na arte de deixar e abrir lugar ao excluído, ao estranho, ao “sobrante”...

A hospitalidade implica também iniciativa de sair do próprio “lugar” e mergulhar no lugar do outro.

O filme “Diário de motocicleta”, de Walter Salles, tem uma cena em que Ernesto Guevara decide, na noite de seu aniversário, mergulhar no rio que o separava da comunidade de hansenianos.

Naquele momento, Che optou pela margem oposta – a da cidadania e da solidariedade. Não ficou na margem em que nascera e fora criado, cercado de confortos e ilusões.

Essa “travessia” não é apenas geográfica; trata-se de uma experiência que requer a atitude de abrir-se ao outro como diferente; e isso implica em “passar” para o seu lugar, aprender a ver o mundo a partir de sua perspectiva, deixar-se questionar e desinstalar-se pelo outro, despojado da condição de pessoa.

Não se trata de “dar coisas” mas deixar-se “afetar cordialmente” pela situação do outro.



A hospitadade nos leva a reconhecer no outro (sobretudo o outro que é excluído, marginalizado...) uma dignidade e uma capacidade criativa de superar sua situação; ela gera protagonismo e nunca dependência; compartilha sem humilhar; cria humanidade em seu entorno, com generosidade, humildade e silêncio; supera todo exibicionismo, sentimentalismo ou instrumentalização do outro.

No Evangelho, Jesus deslocou Deus, transferindo seu “habitat” do templo para o corpo daquele que está à “beira da estrada”. O excluído é doravante, a revelação da Sua presença.

“Onde está Deus?”: está lá, onde ninguém O espera; quem não é “nada”, O hospeda e O aponta.

O motivo pelo qual o lugar de onde Deus fala é o excluído da vida é porque é desse lugar que Ele convo- ca o eu para “fazer estrada”, viver o êxodo permanente, gerando-nos continuamente para a responsabili- dade como pura gratuidade e generosidade.

É o rosto do outro que derruba o eu de seu pedestal e de seus preconceitos e o convoca à bondade, à acolhida, à compaixão. A experiência cristã entende a hospitalidade como hábito do coração; não é um evento, um ato isolado; ela fermenta, dá calor e sentido ao nosso cotidiano e se encarna nos pequenos gestos de inclusão. Importa “re-inventar” com urgência a hospitalidade como valor ético e como atitude permanente de vida.



A hospitalidade alimenta coragem de romper as fronteiras do preconceito, da indiferença e da intole-rância; ela impede que as fronteiras se transformem em frias barreiras, ou seja, distância e negação do outro. Muitas vezes, já não sabemos quem são os outros, como vivem..., e passamos a acreditar que o nosso modo de viver, nossa cultura, é o centro do mundo. Quando não se vê o resto do mundo, o centro somos sempre nós. Com isto, a fronteira que carregamos dentro se torna rígida, porque nos sentimos inseguros, carregados de medos, muitas vezes medos ocultos, inexplicáveis, inconscientes...

Sair de si mesmo é um grande risco; por isso mesmo muitos não querem passar por isso. No entanto, sem isso, não seremos afetados e mudados pelos outros. Esta capacidade humana de encontrar o outro, entrar na vida do outro e deixar que a própria vida seja questionada pela presença do outro é a qualidade maior daqueles que alargam sua hospitalidade e não se deixam dominar pelo medo e pela suspeita.

O encontro com o diferente é verdadeiramente o único modo para superar as dificuldades que temos para abrir-nos aos outros.  Quando nos encontramos, encontramos pessoas vivas que tem idéias, imaginação, criatividade, com as quais podemos crescer e com as quais podemos nos relacionar.

No encontro com o outro temos uma oportunidade única de encontrar-nos a nós mesmos.



A hospitalidade do outro diferente é inata, mas pode ser ativada através de diferentes mediações: familia, esco-la, igreja... A impressão geral hoje é que tais instituições se encontram deslocadas frente à realidade, reforçando a exclusão. Daí brotam a indiferença, o pré-conceito, a frieza social, a carência de espírito voluntário, de compromisso com os excluídos...




A vivência cristã consiste em abrir todas as janelas do interior das pessoas, para que cresçam e tenham o direito de fazer-se sensíveis a todas as realidades humanas e naturais do mundo. Abrir, comunicar hábitos mentais, ativar os afetos do coração, expandir relações, reforçar a hospitalidade: só assim podemos formar pessoas flexíveis, abertas, que não sentem medo diante do outro ou de algo diferente, mas que estão prontas para apreciar todas as possibilidades humanas. Com isso, elas estarão dispostas a correr o risco de ter empatia, compaixão, proximidade com outros, poderão abrir as portas de sua casa, de seu coração, de seus talentos para caminhar com eles.



Textos bíblicos:  2Reis 4,8-16   Mt. 10,37-42

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