quarta-feira, 1 de junho de 2011

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Saudades de Júlia

Dois anos depois, o túmulo marinho das vítimas do vôo da Air France é reaberto e os corpos “exumados”. A dor também. O caso ocupa novamente a primeira página dos jornais, é tema de reportagens especiais em todas as mídias.
          Aos poucos, as “caixas pretas” vão sendo abertas e detalhes do acidente vêm à tona, assim como os corpos que, finalmente, serão sepultados. Como o acidente é de Primeiro Mundo, as causas da tragédia devem ser esclarecidas, os culpados identificados e punidos, um Globo/Record Repórter será arquivado para ser desengavetado e usado, um dia, como comparativo quando outra tragédia acontecer.
Enfim, para além e apesar da morte, a vida seguirá seu curso...
            Mas, para muitas pessoas, a vida que segue está definitivamente marcada, pois onde há memória, amor e ausência, certamente haverá saudade.
            E se a memória, hoje, se conta em tera, giga e mega bytes, o amor e a saudade não tem medidas...
           No HD do arquivo da memória eletrônica, a lembrança é registrada em números, estatísticas, fotos, dados e informações. Mas para parentes, amigos, gente que vê, lê e sente para além das manchetes e estatísticas, onde a mídia vê um número, eles vêem um nome. Onde se publica uma foto, eles lembram uma história.
            É assim, para mim, com Júlia, uma das passageiras do vôo 447. Sobre ela, à época do acidente, disse um jornal:
            Júlia Chaves de Miranda Schmidt (foto), 27, era advogada. Morava na Alemanha havia três anos e estava no Brasil de férias. Falava inglês, espanhol e alemão. Formou-se na FUMEC (Fundação Mineira de Educação e Cultura), de Belo Horizonte. Cursou doutorado na Bucerius/WHU, em Hamburgo. Era especialista em direito internacional.
            Dois anos depois, releio a nota, pensativo...
            O jornal registra, com precisão, que Júlia falava vários idiomas. O que os leitores massificados não sabem é o que ela dizia nos momentos de alegria em família, entre os muitos amigos.
            Tinha 27 anos, dizia a nota. Eu a conheci quando era uma lourinha espevitada de quatro anos, colega do meu filho Thiago, da Educação Infantil até a formatura no Ensino Médio, em 2000.
            Eu a vi crescer. Testemunhei lágrimas adolescentes naqueles olhos e tive o privilégio de merecer aquele sorriso.
            Morava na Alemanha. Mas eu fui à sua casa, aqui no Grajaú, levar e buscar meu filho nas festas infantis nas quais as meninas levavam pão de queijo e os meninos guaraná. Bons tempos...
            Júlia era advogada, com mestrado e doutorado. Fui seu professor, no Colégio Loyola, onde “ralou muito”, como costumava dizer. Sua rebeldia adolescente e atrevida não se enquadrava nos rigores da educação jesuíta. Mas, teimosa, fez a travessia.
            Ela, que vivia em comunhão, celebrou comigo a Primeira Eucaristia e a Crisma. Visitou creches e participou de encontros. Cresceu, em todos os sentidos. Para além do cargo que eu ocupava, me fez seu amigo, privilégio que herdei graças à sua amizade com o meu Thiago.
            A última vez que a vi foi numa exposição da Casa COR, em BH. Estava trabalhando num stand. Sua beleza exuberante, seu jeito comunicativo já chamavam a atenção.
            Em seus vinte e sete anos de vida Júlia foi e fez tantas coisas boas. Mas foi a tragédia que a fez virar notícia...
            Paro de escrever e olho a tela do computador à minha frente. Diante de mim, a primeira página do Terra. Velhas notícias sobre o acidente. De novo, fotos, infográficos, vídeos, um mundo à minha espera em intermináveis janelas...
            Eu sei, logo as manchetes sobre o vôo 447 deixarão de novo as primeiras páginas. Então, 228 pessoas voltarão a ser números em estatísticas e nomes em listas. Homenagens serão feitas, indenizações serão discutidas, refutadas, pagas ou contestadas. Depois, o esquecimento, a morte na memória digital...
            Mas em mim, em muitos, sobreviverá a saudade da alegria da Júlia menina, que entrou em minha vida pela porta da ternura. Que ela me ajude a não me deixar pasteurizar pelo rolo compressor da insensibilidade que atropela, engole e descarta as pessoas e suas histórias.
           Somos mais que números e estatísticas.
           Júlia é muito mais...
                                                                                                         Eduardo Machado
31/05/2011

2 comentários:

  1. Achei emocionante o texto escrito pelo meu eterno professor de religião Eduardo Machado.
    Ele tem razão ao escrever que as pessoas que morrem nesse tipo de acidente viram estatísticas e acrescento mais, depois viram notícia velha. Por uma triste coincidência também perdi meu irmão Alexandre Magalhães Vaz de Mello em um acidente aéreo quando ele tinha 27 anos. Prof. Eduardo também deve se lembrar dele pois fez primeira comunhão e crisma no Loyola e participava ativamente e com muita alegria dos estágios sociais, de um grupo de jovens que na época se chamava GVX, das semanas santas inacianas e de todos os encontros de jovens relacionados a religião que ele podia comparecer. Após sair do Loyola, formou-se em engenharia e ciência da computação, com mestrado na Unicamp e na ocasião do acidente estava a trabalho para uma multinacional. Para quem teve o privilégio de conhecê-lo não me deixa mentir que era uma pessoa muito alegre, inteligente e pronta para ajudar a qualquer momento e que não fazia mal nem a uma mosca. Mas como disse o Prof. Eduardo, quase 15 anos após a tragédia, ele virou apenas um número para a população, mas para nós da família ficamos com a imensa saudade de uma pessoa tão maravilhosa que nos deixou muito cedo pois teria muito ainda para nos mostrar e ensinar...

    Luciana Magalhães Vaz de Mello

    ResponderExcluir
  2. Muito lindo Lu. Você soube falar muito bem sobre seu irmão, mostrando o carinho que tínhamos por ele e a falta que nos faz até hoje. Obrigada!
    Conceição Magalhães Vaz de Mello

    ResponderExcluir