sexta-feira, 1 de julho de 2011


Um homem do tempo da Esperança...

Imagens me dizem muito. Lembranças também. Na oração, junto as duas realidades num mesmo olhar. Na tela da memória, a lembrança da imagem de um menino, no alto do quintal da minha infância, contemplando o por do sol nas montanhas do meu belo horizonte...
O sol daquele tempo se punha, ao meu olhar, nas montanhas do bairro Caiçara, onde hoje moro. Engraçado morar, no presente, no horizonte que eu contemplava no passado...
Continuo contemplando o por do sol, apesar de outros horizontes, reais e virtuais, se abrirem à minha frente. Em todos, busco razões para as esperanças que vislumbro, desde menino.
Por falar em esperanças...
Vejo num horizonte múltiplo, quase infinito, chamado youtube, entrevista do monge beneditino Marcelo Barros no programa do Jô, em que ele fala sobre D. Helder Câmara, Arcebispo de Olinda e Recife, um brasileiro que foi indicado quatro vezes ao Prêmio Nobel da Paz. Em 1999, ano em que morreu, às vésperas da chegada do Sec. XXI, Dom Helder foi eleito por um júri de jornalistas o brasileiro mais importante do Século XX, no item Religião. Hoje, poucos jovens o conhecem, sequer ouviram falar dele.
O monge conta uma história surpreendente, confidenciada a ele pelo próprio D. Helder.
Ele já estava velhinho, mas continuava atendendo as pessoas na sacristia da igreja das Missões, em Olinda, onde morava. Ali foi procurado por uma mulher simples, o rosto precocemente envelhecido coberto por uma maquiagem grosseira, que lhe disse:

- D. Helder, vim aqui me aconselhar com o senhor, pois estou muito agoniada. Eu sou prostituta, num sabe, mas gosto muito de Jesus. Pelo que me falaram, ele gostava das prostitutas também, tinha respeito e carinho com elas. Por isso, em homenagem a ele, toda sexta feira da paixão eu vou ao presídio Aníbal Bruno, em Itamaracá, e procuro o preso mais abandonado, mais esquecido, mais pobrezinho e me ofereço a ele, de graça. Quando contei isso às minhas amigas elas se horrorizaram, dizendo que era pecado, onde já se viu, na sexta feira santa, fazer uma coisa dessas, que Deus ia me castigar...
Será que Jesus está com raiva de mim, D. Helder?

Dom Helder ficou um longo tempo em silêncio. Talvez estivesse lembrando a cena de Jesus com a mulher adúltera, depois que seus algozes foram embora. Segurou as duas mãos da mulher, os olhos marejados, e lhe disse com ternura:
- Não, minha filha, vai em paz, Jesus não está com raiva de você...
Numa outra ocasião D. Helder contava que certa vez foi a uma favela, em Recife, celebrar a Crisma com uma comunidade muito pobre. Ao chegar à capelinha tosca, que se equilibrava sobre a lama do mangue, foi recebido pelo povo que cantava:
- “O Senhor é meu Pastor, nada me pode faltar...”.
D. Helder olhava em volta e constatava; estava faltando era tudo...
Na primeira leitura, durante a celebração, foi lido um trecho do livro do Eclesiástico que diz:
“Tomem bolsas que não envelhecem, onde se guardem coisas que o ladrão não leve, nem a traça corroa. Este é o teu tesouro. E onde estiver o teu tesouro, aí estará teu coração...”.
A miséria em volta lembrava ladrões engravatados que roubam tudo, até mesmo o coração, a alma das pessoas...
Mas o evangelho de Mateus, insistente, proclamava:
“Olhai como crescem os lírios do campo. Não trabalham, não fiam, no entanto, nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, vestiu-se como um deles sequer...”
E concluía: “Não vos preocupeis com o dia de amanhã, com o que haveis de comer, ou beber, ou vestir. A cada dia basta a sua preocupação, o seu fardo...”.
Ah, o fardo dos dias daquela gente miserável. De ontem, de hoje, de amanhã. Onde encontrar forças para arrastar esse peso cotidiano...?
Na trilha de D. Helder, penso comigo: porque tanta contradição entre o texto bíblico e a realidade? Quando o pobre será exaltado, os aflitos consolados, os famintos e sedentos saciados? Quando os mansos possuirão a terra? Serão as Escrituras um conto da fadas, um sonho impossível, uma utopia irrealizável?
Há muito aprendi que a utopia cristã não é sonho impossível. É rumo. Para lá caminhamos com nossos frágeis e trôpegos pés humanos. Fossemos anjos poderíamos voar. Mas não. O caminho, longo, é feito a pé. É perigoso e cansativo. Vez por outra nem há caminho. É preciso, então, inventá-lo, como o próprio D. Helder fez nos anos de chumbo da ditadura militar, quando sua casa foi metralhada, assessores foram sequestrados e mortos e seu nome censurado em todos os meios de comunicação.
Mas continuou firme na construção de uma esperança garimpada no cotidiano.
Em agosto completam-se 12 anos da ressurreição de Dom Helder. No horizonte do Sec. XXI ele se foi, em direção à plenitude que aqui, humanamente viveu, como se a vida fosse apenas um trailer do infinito.

Eduardo Machado
30/06/2011

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