segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Lc 2,22-40- "MEUS OLHOS JÁ VIRAM"...


MEUS OLHOS JÁ VIRAM...”

 

“…porque meus olhos viram a tua salvação, que preparaste diante de todos os povos” (Lc 2,30)

 

O texto de Lucas se transforma na história de uma espera e de um encontro surpreendente.

“O ar está cheio de nossos gritos” (Beckett).

Esse suspiro de expectativa e de esperança não fica sem resposta. Toda a narrativa lucana é invadida por uma atmosfera festiva, litúrgica, musical: o menino Jesus é ofertado a Deus no Templo.

Simeão é um homem justo e temente a Deus, que espera a consolação de Israel, que não teme e morte, porque sabe que ela será precedida pela grande surpresa, o encontro com o Messias do Senhor.

O Espírito age em todos os justos, movendo-os e consolando-os;Simeão bendiz a Deus cantando um hino de paz, de luz e de alegria;o pai e a mãe do menino são tomados de espanto, e testemunham um mistério glorioso e tremendo; há também Ana que diante da criança explode em louvores a Deus.

 

A vinda do Cristo é, portanto, o grande evento que agita os corações: aterrorizou Herodes e, com ele, toda Jerusalém, mas fez exultar o coração dos justos.

Simeão, como Ana, pertencem ao povo dos “Anawim”, os “pobres de Javé”, pois é descrito como“justo e piedoso”. Sua característica fundamental é a profunda, a confiança total em Deus.

Simeão toma o menino Jesus entre os braços. A arte dos ícones vai representá-lo como o Theodochos, “aquele que acolhe Deus”.

Homem “pobre”, homem da espera, homem do Espírito: por essas qualidades Simeão é também profeta, no sentido bíblico de conhecedor do mistério de Deus e revelador da sua Palavra.

 

Simeão é um homem bom do povo que guarda em seu coração a esperança de um dia ver “o consolo” de que tanto precisam. Ele é também o homem da espera, um pouco como todos os personagens do Evan-gelho da infância.Ele recolhe em si a longa expectativa da esperança messiânica.

Ele não é prisioneiro da “cotidianidade”: mantém o olhar fixo no horizonte, para a consolação, para a revelação da glória. Se o presente é sem sol, ele está seguro da aurora. Deus quebrará seu silêncio, a noite escura será iluminada, a primavera substituirá o inverno. Ainda que “avançado em anos”, nele ainda não se apagou a chama da esperança e da juventudede espírito.

Simeão guarda em si o fogo do Espírito Santo, que o mantém sempre vivo, forte, aberto ao futuro.

Ele não olha para o passado; vê longe e sonha grande, sonha com asalvação de todas as nações.

Seu olhar é limpo, diáfano, que desarma, que não esconde engano ou segundas intenções;olhar admirado e gratuito que transforma, que liberta e que se comove diante da realidade, especialmente a realidade humana de uma criança.

O olhar de Simeão nasce da camada mais profunda e secreta do seu ser, onde a vida se torna vida que sente, vida que acolhe toda a realidade e traduz as ressonâncias em estados de espírito.

Esse é o seu modo habitual de olhar que é, ao mesmo tempo, o seu modo habitual de sentir; um olhar afetuoso, que não intimida e não se sente intimidado, um olhar desarmado, acolhedor, estimulante...

 

Em um gesto atrevido e paternal, “toma o menino em seus braços” com grande amor e carinho. No entanto, este menino que tem em seus braços será uma “bandeira discutida”: sua presença será rejeitada e ocasião de conflitos e enfrentamentos; ele desvelará o que há no mais profundo das pessoas.

Uns o acolherão e sua vida adquirirá uma dignidade nova: sua existência se encherá de luz e de esperança. Outros o rejeitarão e sua vida terminará na ruína.

A acolhida deste menino pede uma mudança profunda. Jesus não vem trazer tranquilidade, mas gerar um processo doloroso e conflitivo de conversão radical. Quanto mais nos aproximamos de Jesus, melhor veremos nossas incoerências e desvios, o que há de verdade ou de mentira em nossas vidas, o que há de fechamento e resistência em nossos corações e em nossas instituições.

 

Podemos pensar também no simbolismo do sentinela:como o guarda noturno espera ansioso que chegue outro para substituí-lo, assim Simeão espreita a aurora, porque sua vigília está terminando, e então poderá descansar no Senhor, adentrando em seu Reino.

O cântico de Simeão, porém, não é uma despedida melancólica, porque sua missão foi cumprida.

É, antes, uma saudação festiva à Palavra de Deus que agora se realiza, é uma oração de serena e alegre entrega, de suave abandono, de confiança, pronunciado por um homem que pressente o fim, mas um fim cheio de luz e, portanto, não assustador.

Seus sentimentos são os mesmos da bem-aventurança de Lucas:“Felizes os olhos que vêem o que vós vedes” (10,23)Um canto de e de esperançasegura, não um sonho melancólico. Esse é o sentido da existência cristã.

 

O perfil de Ana é também todo luminoso e alegre. Como Miriam, irmã de Moisés, como Débora, como a mulher de Isaías, ela também é profetisa, está atenta aos sinais da história, e a este sinal decisivo que é Cristo.Porque está aberta ao Espírito, não permanece espectadora e passiva.

Ana é o retrato da velhice feliz, abençoada por Deus, no estilo das narrações patriarcais, segundo as quais a velhice veneranda é sinal de justiça e de recompensa divina.

Ana,portanto, é modelo de velhice alegre e pacífica, uma velhice ativa e cheia de esperanças.

Seus 84 anos não são um tempo que fugiu, que escapou das mãos como a areia, deixando-as vazias.

Para ela não existem apenas recordações. Lucas a descreve como a mulher de oração, uma “pobre doSenhor”. O Salmo do ancião canta (Sl. 92,12-16):

“O justo floresce como a palmeira, cresce como o cedro do Líbano. Quem está arraigado na casa do Senhor, floresce nos átrios de nosso Deus; ainda dará fruto na velhice, con-servando toda a exuberância e frescor, para proclamar que oSenhor é justo...”

 

Pertencemos a uma geração devorada pelo imediatismo e pela rapidez, com enorme dificuldade para aco-lher processos de longa duração: navegamos na Internet, viajamos em carros super-velozes, cozinhamos em micro-ondas, consumimos “fast-foods”...

O problema é quando aplicamos estes mesmos ritmos às relações humanas; no entanto, nem uma amizade, nem uma família, nem uma comunidade se forjam com essa medida ultrarrápida do tempo, senão que necessitam de processos lentos de crescimento, difíceis de serem aceitos.

Ana, a profetisa, nos oferece a sabedoria do saber esperar; o Evangelho de hoje nos apresenta esta anciã, durante toda sua vida, esperando a chegada do Messias e celebrando o fato de ter podido encontrá-lo em seus últimos dias de vida. A imagem que dela nos dá Lucas é que foi recompensada por ter passado a vida inteira à espera e que agora sua alegria se transborda em louvor e agradecimento.



Texto bíblico:Lc 2,22-40

 

Na oração:S. Inácio, nos Exercícios Espirituais, recomenda que o

exercitante eleve o pensamento para o alto,conside-rando como Deus nosso Senhor o olha. Talvez seja este o momento de maior recolhimento e elevação da oração, quando ele se tor-na diálogo silencioso de olhares, como acontece entre duas pes-soas que se amam.

Deveríamos nos situar diante de Deus desse modo com mais fre-qüência, deixando os olhos, os d’Ele e os nossos, se falarem silen-ciosamente. Em momentos de aridez do coração e de resistência interior, o olhar é tudo o que resta para rezar.

 

 

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