“A MORTE, MENOS TEMIDA, DÁ MAIS VIDA”
“O Amor é
Deus, e a morte significa que uma gota desse amor deve retornar à sua fonte” (Tolstoi)
E
que é a morte, essa perturbadora irmã da vida?
Ao
celebrar o “Dia dos mortos”, todas as culturas e religiões, cada uma à
sua maneira, intuíram o que não se pode dizer, ou o que só pode ser dito com
muito recato: que a morte é passagem, eclosão, nascimento; que nela
entramos nesse processo definitivo de libertação, de transformação, de acesso à
Plenitude da Vida, à Comunhão dos santos, à Santidade de Deus...
No
entanto, há um dado que nos afeta a todos nestes tempos pós-modernos: a
incapacidade cultural de abordar os limites, perdas, fracassos, mortes...
Vivemos uma cultura na qual a dor e a morte foram expulsas da
experiência humana. A morte é distante e virtual: procuramos negá-la,
escondê-la, dissimulá-la. É algo feio, de mau gosto, algo a ser eliminado da
vida cotidiana. Vivemos como se tivéssemos que ser imortais. Quando ela está
perto, as pessoas se afastam dela, ou então, ela é afastada para locais
específicos.
A
vida marcada pelo medo da morte é uma vida “em terra de sombras”, que
contradiz nossa vocação de ser filhos do dia e da luz.
O
medo da morte impede de viver adequadamente o presente. Mais grave
ainda, o medo da morte pode chegar a escravizar-nos e angustiar-nos a ponto de
impedir-nos de viver a vida com sentido, qualidade e prazer. Ela nos golpeia em
dimensões muito sensíveis e frágeis de nossa experiência humana.
A negação da
morte sempre cobra um preço – o encolhimento da nossa vida interior, o
embaçamento da visão, o achatamento da racionalidade, a atrofia dos sonhos. Ao
final, o auto-engano toma conta de nós.
Mas
o confronto com a morte não precisa desembocar em um desespero que possa
destituir a vida de todo sentido. Ao contrário, ela pode ser uma
experiência que nos faz despertar para uma vida mais rica.
Como
diz o refrão: “A
morte, menos temida, dá mais vida”.
Ao desvelar a precariedade de nossa existência,
a morte nos faz reingressar na vida de uma maneira mais rica e
apaixonada; ela aumenta a consciência de que esta vida, nossa única
vida, deve ser vivida intensa e plenamente. Ao compreendermos, de verdade,
nossa condição humana – nossa finitude, nossa fragilidade, nosso breve período
de tempo sob a luz -, não só passamos a saborear a preciosidade de cada momento
e o simples prazer de existir, como também intensificamos nossa compaixão por
nós mesmos e por todos os outros seres humanos.
Encarar a morte, com serenidade, não só nos
pacifica como também torna a existência mais leve, mais preciosa, mais vital.
Essa abordagem da morte leva a um compromisso maior para com a vida.
Alguém
já teve a ousadia de afirmar que a morte é mais universal que a vida;
todos morrem, mas nem todos vivem, porque incapazes de
re-inventar a vida no seu dia-a-dia. Uma vida pensada sem “mortes” perde-se, no
final, na total irresponsabilidade. E viver significa esvaziar-se do ego
para deixar transparecer o que há de divino em seu interior. O grão de
trigo que não morre, apodrece, e não multiplica as mil possibilidades latentes
em seu interior.
O
“depois da vida” é um grande encontro onde seremos perguntados: “o quanto você
viveu sua vida?”
Portanto, devemos confrontar a morte
como fazemos com outros medos. Devemos contemplar nosso fim último,
familiarizar-nos com ele, dissecá-lo e analisá-lo, raciocinar com ele e
descartar aterrorizadoras distorções infantis sobre a morte.
Vencer
o medo da morte é reconhecer que a vida
sempre é um dom, não o resultado de nosso esforço; e que, por isso mesmo, o
essencial não é encontrar um caminho para alcançar a imortalidade, mas aprender
a “morrer em Cristo”.
Jesus
entrou por dentro da morte, redimiu-a a partir de seu interior. Jesus entrou no
túnel escuro da morte e no final dele nos revelou a imensa luz do amor
do Pai que o ressuscita.
É
na escuridão da dor e da morte que a fé se manifesta e nos revela que
fomos feitos por mãos celestiais, chamados à vida, para a liberdade, para a
bondade, para a amplidão dos céus.
Confessamos
que a vida é de Deus e, como Ele, é eterna. E nossa última morada não é
sob a lápide fria de um túmulo, mas no coração do mistério de um
infinito Amor.
A
morte do ser humano é um “trânsito para o Pai”, “morrer para dentro de
Deus”. Vivemos
“travessias” provisórias até a grande travessia para Deus. A
morte é nossa confirmação na mão de Deus: Ressurreição.
A vida
e a morte não são, portanto, inimigas que se destroem; elas são amigas,
irmãs inseparáveis.
Morre-se
ao longo da vida. Este é o caminho normal de morrer.
A vida
é o lento amadurecer da morte. Morre-se na vida, durante
a vida, na medida em que a morte é fruto maduro das opções de
toda a vida. As escolhas fazem e farão a nossa morte. A morte nos ronda e nós
rondamos a morte. “Começamos
a morrer no dia em que nascemos”.
A
experiência cristã nos revela o caminho de uma morte preparada ao longo
da vida, porque a entende em relação com a vida e a vida em relação com a
morte. Vida sem morte é irresponsável; viver sem morrer é viver menos. Tira a
seriedade da vida.
Só
assumida em liberdade e ativamente, a morte se humaniza. Na fé, cristianiza-se.
Na
verdade, a morte nunca fala sobre si mesma. Ela sempre nos fala sobre
aquilo que estamos fazendo com a própria vida, as perdas, os sonhos não
realizados, os riscos que não tomamos por medo...
Nesse
sentido, a morte não é o fim da vida, mas sua plenitude, quando esta é
vivida com sentido.
A
vida não deve ser corroída pela tirania do egoísmo mesquinho: vida é
encontro, interação, comunhão...
A
existência histórica cresce no útero do tempo e a morte é o parto para a vida
plena. A morte é este instante de ruptura, onde toda uma vida incubada,
trabalhada no silêncio e no sofrimento, marcada de alegrias e tristezas,
vitórias e fracassos, desponta luminosa para a vida eterna.
Participando
da morte de Jesus, podemos também fazer de nossa morte um ato de
decisão, de entrega, de oblação. A certeza de nossa fé em Cristo morto e
ressuscitado nos ajuda a ir tirando do coração os medos, os impulsos egoístas
de busca de segurança e imortalidade, e ir encontrando uma paz profunda que nos
permita fazer de nossa vida uma oferenda gratuita para a vida de outros.
De
fato, segundo o Evangelho de hoje, aqueles que mais desfrutam da vida são os
que deixam a segurança da margem e se dedicam apaixonadamente à missão de
comunicar vida aos outros.
Para a fé cristã, a morte
é passo para a comunhão plena. Último passo. Por isso, não pode ser escondida;
antes, preparada. A fé revela-nos a morte como momento em que a pessoa
se abre para dimensões nunca antes imaginadas. A fé cristã não é masoquista ou
sádica quando nos ensina a bem morrer. Assim nos dá maior responsabilidade
diante da própria vida.
Texto bíblico: Mt. 25,31-46
Na oração: recordar os
grandes silêncios da vida
(perdas, fracassos,
crises, mortes...) onde não há razões, não há uma lógica... mas no silêncio
profundo, algo novo começa a germinar...
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